quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

O DIA EM QUE O MUNDO MUDOU

Daniel Vaz de Carvalho

“Na noite mais traiçoeira, Ruim, medonha, brutal, Descontada a pasmaceira, Do inferno do normal/.../ A julgar faltas à balda, Num tribunal multimédia/.../Assentado na baixeza, Do programa da nação/.../ Por favor, peço-te só, Não te demores, vem logo, Traz gasolina, põe fogo, Meu amor não tenhas dó!”
- De um poema de Júlio Pomar, Fado do 112 (cantado por Carlos do Carmo)

1 – “O mundo é composto de mudança, tomando sempre novas qualidades” (Luís de Camões)

Os que foram atrás da idiotice – esperteza de outros – do “fim da História”, faziam (como Eça de Queiroz os teria classificado) de ignorantes e atrevidos perante as palavras de Camões, que já na antiguidade Demócrito e Lucrécio o tinham verificado.

Claro que o mundo não mudou num dia, é aliás muito discutível escolher um dia para o efeito. Em termos históricos há o hábito de referenciar datas para definir acontecimentos historicamente relevantes. Isto pode levar as pessoas, os alunos sobretudo, a ignorarem que na realidade o que existe é um processo histórico. Para a compreensão ser o mais correta possível temos de recorrer às leis da dialética (obviamente!), em que o acumular de transformações quantitativas, dá origem a transformações qualitativas, que ocorrem “repentina e subitamente, sob a forma de saltos de um estado a outro, como resultado da acumulação de mudanças quantitativas graduais, muitas vezes impercetíveis.” É o que nos diz o marxismo.

Em Alguns meandros de uma guerra “total” (Andres Piqueras Infante) são elencados “certos passos decisivos do assédio à Rússia dentro da guerra total” imperialista e “algumas peças chaves para entender a ofensiva da NATO contra a Rússia”. Tratou-se, conforme discriminado, de um vasto conjunto de acontecimentos orientados para um dado fim: a insanidade do domínio global pelos EUA, que fizeram suas as palavras de uma canção da juventude nazi: “hoje dominamos a Alemanha, amanhã o mundo inteiro”. Mas esta intenção depara, com uma dificuldade: tal não seria possível sem dominar um Estado tão vasto e tão rico em matérias-primas como então a URSS, agora a Rússia.

A Fundação Rand estabeleceu a estratégia para resolver esse “problema”, sem o qual a China também não podia ser dominada. Se analisarmos ponto por ponto cada uma das ações previstas vemos que foram falhando praticamente todas: o mais que conseguiram, além das sanções suicidas para a UE, foi uma guerra na Ucrânia com a participação da NATO, apoiando-se em organizações nazis que oprimem e aterrorizam as populações, refugiando-se nas cidades, incapazes de enfrentar as forças russas nas estepes ucranianas.

Já aqui dissemos que a Ucrânia não existe como Estado – é uma colónia dos EUA, sustentada económica, financeira e militarmente pela NATO/UE, com a promoção de dirigentes que se destacam por uma patológica russofobia, seguindo padrões do final da 2ª guerra mundial em que criminosos nazis (como o Stepan Bandera) foram cooptados pelos serviços ocidentais particularmente dos EUA e RU.

Neste processo de transformações há um momento que se torna crucial: a decisão da Rússia de apoiar a Síria contra a agressão (encapotada) dos EUA/NATO aliados aos grupos islamistas com seu rol de atrocidades, transformados polos media ocidentais em “combatentes da liberdade” e “moderados”. Na Síria, a Rússia frustrou o plano de dominar o Médio Oriente, a que se seguiria o Irão, colocando em cheque parte da fronteira Sul da Rússia. Foi uma forma de fazer compreender aos EUA que tinham atingido os limites da sua expansão geopolítica.

As revelações de Merkel e de outros políticos sobre a sabotagem dos acordos de Minsk mostraram que não foi a Rússia a fonte do conflito na Ucrânia. Desde 2014 que a estratégia estava estabelecida em Washington, tratava-se apenas de ganhar tempo, com a ajuda de sanções e a preparação de um forte exército na Ucrânia. A UE/NATO europeia obedecia, indiferente às consequências.

Nesta estratégia de “fuck EU” da sra. Nuland, a UE afunda-se em crises económicas e sociais, enquanto políticos e “comentadores” nos dizem que estamos a apoiar a democracia na Ucrânia e no resto da Europa… Uma “democracia”, gerida em Kiev por gente corrupta, que proibiu o uso da língua russa nos territórios que falam russo, erigiu em "herói nacional" Stepan Bandera: um criminoso de guerra que colaborou com os nazis, participando na "Cruzada Judeo-Bolchevista", massacrando até 100 000 polacos, judeus e soviéticos. Estátuas suas foram erigidas pelo clã de Kiev, tal como a Roman Shukhevych outro ucraniano criminoso de guerra nazi, enquanto monumentos à libertação da Republica Soviética da Ucrânia e estátuas de Lenine foram destruídas. Silencia-se a proibição de sindicatos de esquerda e partidos, começando pelo Partido Comunista, com militantes presos e torturados pela polícia política de Kiev.

As regiões do Donbass tiveram toda a razão para não aceitar o regime de Kiev, constituído-se depois como Repúblicas Populares, um regime que oprimiu minorias, combateu tudo o que era progressista ou meramente democrata e se aliou ao imperialismo para eliminar as aquelas populações.

2 – A rutura com a "ordem internacional baseada em regras"

Se quiséssemos referenciar um momento chave da rutura com a "ordem internacional baseada em regras" estabelecida pelos EUA após a queda da URSS, diríamos que o discurso de V. Putin na Reunião do Clube de Valdai em 27 de outubro de 2022, representa a formalização do corte com as “regras” do chamado ocidente, e neste sentido o mundo mudou. Putin não se limitou a críticas, apresentou os princípios de um mundo multipolar, princípios que parecem colher ampla aprovação em terceiros países. Seria um tema que deveria ser discutido e analisado, mas foi tudo silenciado.

Putin não pode ser mais claro quanto à sua posição de se assumir como protagonista das transformações geopolíticas em curso:   “o período histórico de dominação ilimitada do ocidente sobre assuntos globais está chegando ao fim. O mundo unipolar é relegado ao passado. Estamos numa encruzilhada histórica. Provavelmente, vivemos a mais perigosa, a mais imprevisível e a década mais importante desde o final da Segunda Guerra Mundial. O ocidente é incapaz de direcionar a humanidade sozinho e a maioria das nações não quer mais suportar a sua direção. Esta é a principal contradição da nova era. Para citar um clássico, é uma espécie de situação revolucionária: as elites não podem e os povos não querem mais viver assim”.

“Este estado de coisas, denso, com toda uma cadeia de conflitos globais, constitui uma ameaça à humanidade, inclusive para o próprio ocidente. A principal tarefa histórica de hoje é resolver essa contradição de maneira construtiva e positiva”.

No discurso há uma clara contestação ideológica das políticas e da economia “do chamado ocidente” “que nega a soberania dos países e povos, a sua identidade e singularidade e espezinha os interesses de outros Estados. O ocidente, tomou uma série de medidas projetadas para agravar a situação internacional. Isso inclui o fomento da guerra na Ucrânia, as provocações em torno de Taiwan e a desestabilização dos mercados globais de alimentos e energia, resultado de uma série de erros sistémicos cometidos pelas autoridades ocidentais. A situação foi ainda mais agravada pela destruição dos gasodutos pan-europeus”.

“A cegueira ocidental é abertamente racista e neocolonial, adquiriu formas especialmente distorcidas. A crença na própria infalibilidade é muito perigosa; está apenas a um passo do desejo do infalível de destruir aqueles de quem não gostam, dada a aspiração presunçosa de alcançar a supremacia global. Dizem uma coisa hoje e outra amanhã; assinam documentos e renunciam a eles, fazem o que querem. Não há estabilidade em nada”.

“A degradação das instituições globais apresenta riscos, a erosão dos princípios de segurança coletiva e do direito internacional são substituídos por "regras". Regras sobre as quais continuam falando, mas que permanecem um buraco negro incompreensível porque mudam as regras onde quer que vejam uma oportunidade para si mesmos. Esta é uma regra universal: eles tentam transformar todos numa ferramenta, e usa-los para seus próprios fins. Para aqueles que não cedem a essa pressão, todos os tipos de sanções económicas e golpes são preparados”.

Há também afirmações claramente dirigidas aos países do “terceiro mundo”, mostrando que é do seu interesse desligarem-se do “ocidente global”, dado que nas suas ações há um claro interesse abertamente mercantil: ”Ao impor seus valores, hábitos de consumo e normalização aos outros, estão a tentar expandir os mercados para os seus produtos”. “Eles não têm ideias para o progresso e o desenvolvimento positivo. Eles simplesmente não têm nada a oferecer ao mundo, exceto perpetuar seu domínio”.

“A maioria deve beneficiar de trocas no intercâmbio livre e aberto da ciência e tecnologia, não corporações super-ricas individuais. Os seus fornecimentos destroem as empresas locais, assumem mercados e recursos, os países perdem seu potencial tecnológico e científico. Não se trata de progresso; é escravização e redução das economias a níveis primitivos”.

No que se refere à Europa do ocidente e seus dirigentes pode dizer-se que são tratados com displicência: “Na Europa, seus dirigentes são prejudicados pela convicção de que os europeus são superiores aos outros. Essa arrogância impede-os de ver que eles mesmos se tornaram uma periferia estrangeira, transformando-se em vassalos, muitas vezes sem direito de voto. A multipolaridade é, na verdade, a única oportunidade para a Europa restaurar a sua identidade política e económica”.

3 – Arrogância, estupidez, medo

Nada mais evidente da arrogância da NATO/UE que considerar que países que não ajam segundo as “regras” do império, não faz parte da “comunidade internacional”. Uma arrogância próxima da estupidez, sem refletirem sobre as suas próprias fragilidades, políticas, militares, sociais, nem que apenas representem 15% da população mundial.

Podemos entender as ações dos EUA, lógicas porque ilógicas, como na história da rã e do escorpião, seguindo a sua natureza – imperialista. Já quanto aos países europeus UE/NATO o seu percurso autodestrutivo reflete na realidade despropositada arrogância, na aparência estupidez, no essencial medo. Só assim se entende que se tenham envolvido em situações que levaram ao caos ou que foram assumidos como inimigos, países que eram importantes parceiros comerciais, da Líbia, à Rússia, passando pelo Médio Oriente, não falando em Cuba e Venezuela.

A falta de qualidade dos dirigentes dos países UE/NATO, a sua incompetência e aparente ignorância estão abaixo dos mínimos exigíveis para as funções. No BCE a desorientação é total. As sucessivas declarações de Cristine Lagarde mostram que o BCE nada controla e nenhuma “medida” funciona seja para a inflação, o crescimento, as quebras dos ativos, o endividamento. Dirigentes das principais potências da UE, como a Alemanha e a França, limitam-se a frases ocas de apoio à Ucrânia, leia-se ao clã de Kiev – Ucrânia um país que na prática já não existe.

A situação na Ucrânia é na realidade desesperada, a maior parte do seu sistema energético e infraestruturas estão destruídas. A Ucrânia não tem dinheiro para manter um Estado minimamente funcional, quanto mais para proceder à reconstrução do país, que seria meramente agrícola e em que o tráfego de mercadorias por Odessa – caso a mantenha – estaria sempre condicionado por acordos com a Rússia. A queda do PIB em 2022 é estimada em mais de 30%, necessitando de 40 a 48 mil milhões de dólares de financiamento em 2023, segundo o FMI, que no outono tinha previsto 36 mil milhões, ou seja, não há economia na Ucrânia.

Borrel, Macron, Scholz, multiplicam-se em inconsequentes afirmações de que a guerra não pode terminar com uma vitória russa, sendo necessário continuar a apoiar a Ucrânia "tanto quanto necessário". Von der Leyen, que raramente parece saber bem do que fala, afirma que “O nosso apoio inabalável à Ucrânia nunca diminuirá".

Por este apoio “inabalável”, os preços da energia cresceram de forma insuportável para as famílias e indústrias tornadas não competitivas, e os países afundam-se em crises económicas, sociais, políticas, até culturais, consequência de políticas arrogantes e verdadeiramente suicidas.

O facto de não se verificarem novos aumentos nos preços do petróleo ou na inflação, significa que se está perante uma dinâmica recessiva, enquanto manifestações de protesto se sucedem nos vários países europeus da UE/NATO contra a queda dos salários reais ou contra a guerra na Ucrânia. Aquele “nunca” pode ser bastante curto.

À arrogância de pensar que poderiam dominar militar e politicamente a Rússia, colocando gente sua no Kremlin, dividindo-a em Estados submetidos ao “ocidente”, em permanente hostilidade – outras Ucrânias, tal como a arrogância do “nunca”, tudo isto está perto da estupidez, a incapacidade para refletir sobre as consequências das suas opções.

No fundo, o “ocidente” procura esconder o medo, de ter de enfrentar uma guerra com a Rússia que alastre aos seus territórios. Medo de quem sabe que não dispõe de apoio social, e que só a intensa propaganda e rígida censura a outras versões dos factos, consegue ir camuflando o desejo coletivo de que a guerra termine. Medo de quem sabe que a NATO europeia não está minimamente preparada para uma guerra em larga escala. Os países ocidentais enfrentam problemas devido ao esgotamento dos arsenais e à má preparação da indústria para resolver problemas militares de grande intensidade.

As dificuldades e atrasos nos fornecimentos de armas à Ucrânia, mostram além do esgotamento dos estoques – tudo acaba por ser destruído – mas também, o subfinanciamento dos Exércitos europeus da NATO. Afinal, o envio de armamento para a Ucrânia está a conduzir à desmilitarização da NATO. Num memorando interno o chefe do Estado-Maior britânico, Sir Patrick Sanders, admitiu que "dar essas capacidades nos deixará temporariamente mais fracos como exército". Mark F. Cancian, do Centre for Strategic and International Studies, Washington, tem alertado sobre os problemas de logística militar dos EUA. Num artigo recente apresenta uma avaliação de quanto tempo, anos em alguns casos, será necessário para substituir as armas enviadas à Ucrânia. [1]

Por isso, apesar das tentativas do tresloucado fantoche de Kiev para envolver diretamente a NATO numa guerra com a Rússia, tem havido uma recusa a atos que levariam à destruição mútua. Como afirma o coronel Douglas Mac Gregor a Ucrânia tornou-se um absoluto absurdo, com Kiev a capital da falsas notícias e ficção, sem que em Washington haja contabilidade da inevitável perda de fundos que são investidos: a Ucrânia tornou-se um buraco negro de lavagem de dinheiro. [2]

Segundo Stoltenberg, a NATO planeia aumentar as metas de produção de munições e estoques, que estão a ser esgotados: "A guerra na Ucrânia está a consumir uma enorme quantidade de munições (...) Isto coloca as nossas indústrias de defesa sob pressão. (...) Precisamos aumentar a produção e investir em nossas capacidades de produção." "A NATO está com a Ucrânia pelo tempo que for necessário." Portanto: no “ocidente” saúde, educação, níveis de vida, sectores produtivos e infraestruturas podem degradar-se, porque gastar dinheiro para manter de pé o clã de Kiev tornou-se a prioridade.

E é este o futuro que os talibãs do liberalismo proporcionam aos povos do “ocidente”. E não se trata de uma figura de retórica dado o fanatismo das crenças liberais, que a realidade totalmente tem contraditado, a crença num predestinação divina para dominarem o mundo pela sua excecionalidade, a crueldade dos métodos para se imporem, pelo terror se necessário, como vimos na América Latina dos Pinochets, na África dos Mobuto, na Ásia dos Suharto, etc. Ou com os sucessores de Stepan Bandera na Ucrânia.

Uma pergunta devia preocupar os que se dizem defensores da liberdade e dos direitos humanos, mas que ignoraram os milhares de mortos por gente às ordens de Kiev depois do golpe Maidan em 2014, ao mesmo tempo que querem para a Ucrânia as fronteiras que tinha antes de 2014: Que aconteceria às populações do Donbass se Kiev alguma vez voltasse a dominar aquelas regiões? Eis a questão que não vemos ser perguntada nem ao sr. Stoltenberg, nem a sra. Leyen, nem ao presidente Biden. Porque será?

[1] Desde há meses que a propaganda repete que a Rússia está a esgotar as suas munições...
[2] Sobre a corrupção na Ucrânia: The Autumn of Oligarchs in Ukraine ou Zelensky, de celebridade populista a neoliberal impopular estilo Pinochet

18/Fevereiro/2023

Ver também:

  Guerra, desinformação e democracia, Major-General Carlos Branco

Este artigo encontra-se em resistir.info

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