quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023

Portugal | DEUS, PODER, DINHEIRO

Costuma-se dizer "o Estado é laico, o país não". Sucede que é ao contrário, como demonstra a reação ao esbanjo das jornadas. Que o debate, se não vier a tempo de poupar milhões, sirva para concluir que o catolicismo automático dos Censos não pode servir para sustentar privilégios e reverências inconstitucionais.

Fernanda Câncio | Diário de Notícias | opinião

“O Estado deve aumentar a sua participação financeira na construção de novos templos (...). Comparando com o investimento noutras infra-estruturas, a participação do Estado é pequena. Era preciso investir mais e com maior rapidez, porque às vezes fica-se 10 ou 15 anos à espera de uma infra-estrutura deste tipo. Trata-se de uma obrigação do Estado e não de um favor que faz à Igreja Católica. O Governo tem obrigação de apetrechar a comunidade com as estruturas que são precisas. Se a comunidade é religiosa, tem tanto direito a ter uma estrutura religiosa como de saúde ou uma escola."

Estas palavras, proferidas por um clérigo católico - o então cardeal patriarca de Lisboa, José Policarpo - fizeram em setembro 20 anos. Quando as li, esfreguei os olhos: acabara de descobrir que os orçamentos públicos de um país laico, cuja Constituição consagra a separação entre Estado e confissões religiosas, atribuíam, no dealbar do século XXI, verbas específicas para construção de templos católicos. A notícia especificava até existir um quantitativo máximo para o efeito: 648 500 euros, ou até "60% do custo de cada templo". Que, naturalmente, o hierarca achava pouco: "As igrejas incluídas no Orçamento de Estado não são tantas quanto era preciso."

Quem isto dizia, anote-se, lamentaria escassos seis anos depois, numa "carta pastoral à igreja de Lisboa", a existência de um "elevado número de batizados não praticantes ou, porventura, não crentes", que poderia "alimentar a confusão" entre sociedade e Igreja Católica - para concluir não haver identidade entre as duas.

E Policarpo ia até mais longe. Mesmo entre os que frequentavam fisicamente os templos católicos, disse, muitos não agiam como verdadeiros crentes. A essa conclusão levara-o o resultado de um inquérito na diocese de Lisboa: "Embora muitos cristãos declarem ter a Bíblia em casa, são poucos os que a leem frequentemente; na Liturgia a proclamação da Palavra é uma parte do rito, e nem sempre tem a densidade de uma escuta do Senhor. (...) Uma Igreja onde os cristãos não rezam, não é a Igreja que Deus quer e torna-se incapaz de ser sinal de esperança no mundo de hoje."

O mesmo homem que exigia ao Estado mais dinheiro para a construção de mais locais de culto da sua igreja admitia que esta estava em acelerada perda de fiéis - não só em número como em qualidade. Que a sociedade portuguesa estava cada vez menos católica e que mesmo os alegados "praticantes" na verdade eram-no pouco.

Mais templos para menos crentes? A óbvia incongruência não é, na verdade, incongruente na lógica interna do discurso de quem, na citada carta, assumia ser o Estado laico e assegurava que a Igreja Católica "não reivindica privilégios, mas reconhecimento da sua missão e espaço de liberdade." Para José Policarpo, exigir dinheiro ao Estado não constituía a reivindicação de um privilégio, mas o reconhecimento de um direito "natural".

A mesmíssima atitude vemos, 15 anos depois, nos atuais representantes da confissão no que ao investimento de dinheiro público no espectáculo ao vivo denominado "Jornadas Mundiais da Juventude" diz respeito. É tudo naturalíssimo, a ponto de, garantem-nos, nem terem sabido, até ser revelado nos media, o valor astronómico daqueles altares medonhos - para quê interessarem-se, de facto, em quanto orçava o contributo dos contribuintes. Só lhes interessava que fossem o mais monstruosos - no duplo sentido - possível; que exprimissem o melhor possível a ideia que têm de grandiosidade e de poder.

Porque é disso mesmo que se trata: de uma afirmação de poder. Não é por acaso que, como escreveu o arquiteto Lutz Bruckelmänn no Facebook, aquelas estruturas lembram "um cenário de um filme monumental (...), um clone barato de um Ben-Hur ou Cleópatra. Está lá a encenação do poder totalitário das pirâmides aztecas, ou do Reichsparteitagsgelände [campos de desfile nazis] de Nuremberga."

Que uma igreja que se diz "dos pobres" se banqueteie assim no erário público, na ostentação e no esmagamento simbólico do povo não pode ser surpresa. Será assim com qualquer instituição deste tipo, que funda aquilo que considera ser a sua legitimidade e autoridade numa instância divina, sendo portanto essencialmente autocrática.

Porque o problema não está na Igreja Católica; está na forma como o Estado lida com ela, na forma como representantes eleitos ou confundem o seu catolicismo com o interesse público ou se aprestam a servir os interesses de uma igreja num misto de oportunismo e de ausência de noção.

Um presidente de Câmara que, apanhado a assinar o contrato de um altar de mais de quatro milhões de euros, afirma "fazer tudo o que a Igreja e o Presidente [da República] quiserem" nunca pode ter pensado um segundo no que é ser representante eleito e no que significa o princípio constitucional da separação entre Estado e confissões religiosas. Pensasse e não apenas negaria a possibilidade de um tal gasto sumptuário numa missa campal de um dia; nunca ponderaria apresentar-se como pau-mandado de uma confissão religiosa.

Como escreve o constitucionalista Vital Moreira no blogue Causa Nossa, a questão no que respeita aos investimentos camarários e estatais nas JMJ não se atem ao disparate de dinheiro público que os representantes eleitos se propõem esbanjar no acontecimento, ainda por cima em estruturas que claramente nunca poderão servir para mais nada. Encomendar e pagar um altar, com, como diz Vital Moreira, "cruz e tudo", é uma violação chocante de princípios constitucionais básicos - revelando, por sua vez, a chocante incapacidade da generalidade da sociedade portuguesa, todos os partidos incluídos, de reconhecer o facto.

"Cobardia institucional", chama-lhe Vital. Seria se sequer se dessem conta - mas, temo, não sabem o que fazem.

Sem comentários:

Mais lidas da semana