quarta-feira, 29 de março de 2023

Angola | ESTRAGAR O QUE ESTÁ ASSIM-ASSIM – Artur Queiroz

Artur Queiroz*, Luanda

A Angola colonial estava nas mãos de multinacionais e os portugueses eram apenas intermediários. Do petróleo ao tabaco, dos diamantes, ferro, cobre e manganés à navegação, da indústria pesada à construção civil. O café e o algodão, que empregavam mão-de-obra escrava, ficaram por conta dos colonos. Trabalho sujo.

Em 1974 tudo se desmoronou. Na Emissora Oficial de Angola abríamos os jornais das 13 e 20 horas com noticiário de Angola e depois África. Passávamos para a Ásia e América Latina. Depois Europa e finamente América do Norte se Nixon estivesse pior da perna. A debandada dos portugueses e outros estrangeiros tornou nulo o que já era precário. Cantineiros dos musseques eram portugueses. Motoristas eram portugueses. Cauteleiros eram portugueses. Funcionários públicos eram mais de 90 por cento portugueses. Quadros técnicos das fábricas, Câmaras Municipais, Junta Autónoma das Estradas e outros serviços públicos essenciais eram portugueses. Angolanos eram uma minoria. 

À medida que partiam os portugueses, tudo parava. Luanda foi arrasada. Os independentistas brancos partiram tudo e mataram milhares de civis nos musseques. Foram derrotados pelo MPLA. A partir de Novembro de 1974 a capital foi invadida por tropas de Mobutu. O almirante Rosa Coutinho ainda conseguiu recambiar um avião militar C-130 cheio de tropas especiais do ditador do Zaire. Mas em Fevereiro de 1975, com a tomada de posse do Governo de Transição, foi estragado totalmente o que ainda estava assim-assim.

As tropas zairenses, sob a capa do ELNA (braço armado da FNLA), prenderam, torturaram e mataram milhares de pessoas. O terror andava à solta nas ruas de Luanda, sobretudo na área da sede central do movimento, Avenida Brasil. E onde existiam as famigeradas “casas do povo”. Também no Cazenga, onde estava o quartel-general das tropas, uma fábrica de borracha entretanto abandonada. 

A comunicação social, em peso, apoiava os esquadrões da morte, os independentistas brancos, os massacres das tropas estrangeiras. A Emissora Oficial de Angola (hoje RNA) resistiu. E o DIP do MPLA. Fizeram um trabalho notável. Em Março de 1975 o Diário de Luanda alinhou na luta pela liberdade. Hoje o panorama é igual. O DIP do MPLA faz bem uma missão quase impossível. E ao seu nível só o Jornal de Angola. Não estraguem o que está assim-assim.

No dia seguinte à Independência Nacional Luanda era uma cidade fantasma. A calma e o vazio estimularam milhares de habitantes dos musseques a ocuparem as moradias e prédios vazios. Ao mesmo tempo começaram os cortes de água e luz. Os Serviços Municipalizados entraram em colapso porque técnicos superiores e operários especializados partiram. A Câmara Municipal de Luanda fechou para obras. Como a política tem horror ao vazio, transformámos órgãos eminentemente técnicos em estruturas políticas. A vertente técnica acabou. Estragou-se o que já estava mal. E assim continuamos alegremente.

A economia angolana, precária desde sempre, morreu. A partir de 1961 cresceu desalmadamente para o regime colonialista enfrentar a luta armada de libertação nacional. Mas era tudo precário. Tudo se comprava a crédito, com as famigeradas “letras” devidamente avalizadas. Quem queria um carro comprava com letras. A geleira, o secador de cabelo, o rádio de pilhas e o gravador portátil eram comprados a crédito. Quando os portugueses debandaram, à sua chegada a Portugal diziam que ficaram sem nada. Mentira. Libertaram-se do pagamento das letras! Ficaram sem dívidas perpétuas. 

Os angolanos herdaram um país paralisado. As grandes e médias empresas fechadas. As pequenas abandonadas. Os circuitos de distribuição acabaram. Ao mesmo tempo tiveram de enfrentar os invasores estrangeiros a Norte e Sul do país. Foi assim durante longos anos. O pesadelo só acabou em 2002. 

A paz encontrou uma Angola destruída e sem massa crítica. Um povo encurralado na pobreza. Um país onde apenas funcionava a indústria do petróleo. Os diamantes ficaram por conta da associação de malfeitores UNITA e seus bandoleiros, ladrões, kamanguistas, assassinos. Nada funcionava assim-assim. Nada havia para estragar. Estávamos no fim da linha. Ao longo dos anos só conseguimos criar umas forças armadas de nível mundial. E já não é pouco. Esperemos que ninguém se lembre de estragar o que temos de muito bom.

Em 20 anos ninguém consegue erguer um país das ruinas. Ninguém consegue pôr a funcionar o que nunca existiu. Ninguém é capaz de tornar definitivo o precário. Dessa coisa de economia e finanças eu sou como Jesus Cristo, não sei nada. Mas sei que desde a Independência Nacional até hoje conseguimos manter o sector informal da economia. O pouco que existia de bom e definitivo foi à vida na voragem da “luta contra a corrupção”. Para vender bebidas geladas na rua ou qualquer outro produto não são necessárias licenciaturas, mestrados ou doutoramentos. Basta ter filhos em casa, com fome. E há tantos!

Um conselheiro do Presidente da República escreveu no Novo Jornal que já tivemos tempo de arrumar a casa e pôr tudo a funcionar. Ele sabe que isso é mentira. Uma mentira hedionda. Mas escreve. Mente. Manipula. Engana. Essa intelectualidade coxa (falta-lhe tudo, das pernas à cabeça) anda a brincar com coisas sérias. Ainda não percebeu que estamos à beira do abismo e todos somos poucos para tirar Angola do perigo. 

O brinquedo deles chama-se eleições autárquicas. Com que técnicos e operários especializados vão reconstituir as Câmaras Municipais? Querem transferir para as populações empobrecidas os prédios em derrocada, as ruas esventradas, o saneamento básico inexistente ou assoreado, a falta de tudo e mais alguma coisa? Quem vai pagar essa aventura de criarem mais uns quantos tachos para os acomodados dos partidos? A ignorância é mesmo muito atrevida e supinamente irresponsável.

Não me digam que ando a fazer o jogo da UNITA por criticar o Presidente da República nas suas desastradas intervenções no Poder Judicial. O jogo da UNITA é feito por quem se comporta como os membros da associação de malfeitores na área da Justiça. Eu até fui suave nas críticas. Porque podia ter escrito isto: As e os magistrados que assistiram à tomada de posse dos novos juízes do Supremo Tribunal deviam abandonar a sala, quando João Lourenço violou o princípio da presunção de inocência. Ao ficarem, passaram a ser coniventes com o crime. Estão feridos de morte na sua credibilidade. Morreram à nascença. Alguém estragou o que era assim-assim. E não fui eu.

* Jornalista

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