José Sócrates* | Diário de Notícias | opinião
A situação é a seguinte. O
Parlamento legisla, a justiça não obedece. Preocupada com o escândalo de
manipulação na distribuição de processos, a Assembleia da República aprovou em
2021 uma lei com uma intenção muito precisa --- todos os juízes dos tribunais
superiores devem ser sorteados. Em concreto, a norma diz assim: "a
distribuição é feita para apurar aleatoriamente o juiz relator e os juízes
adjuntos de entre todos os juízes da secção competente, sem aplicação do
critério de antiguidade ou qualquer outro". Nada nesta formulação jurídica
é incerto, ou confuso, ou duvidoso. E, no entanto, que circunstância
extraordinária -- o sistema judicial recusa-se a aplicá-la. A razão invocada,
dizem os senhores juízes, é que a lei não está regulamentada como está previsto
no artigo 3.º e, assim sendo, nenhuma das normas pode entrar
Vejamos com mais atenção. A primeira regra do que vulgarmente se chama Estado de Direito é a exigência de que qualquer atuação dos poderes públicos seja enquadrada pelas normas da lei. Fora dela, fora da lei, toda a ação estatal é arbitrária. Uma segunda regra básica é a exigência de que as normas legais tenham na sua origem o povo soberano, seja através dos seus representantes eleitos diretamente por sufrágio universal, como é o caso do Parlamento, seja através de um governo diretamente responsável perante a sede da representação nacional. Julgo que é a isto que se chama o princípio da soberania popular. Ora bem, salvo melhor opinião, que não estou a ver qual seja, são exatamente estas as duas regras do Estado de Direito que estão em causa neste debate. Ao ignorar as normas legais em vigor o sistema judicial pretende impor a sua vontade aos outros órgãos de soberania eleitos diretamente pelo povo. E quer fazê-lo em matérias que não são da sua competência como é o caso da feitura das leis, violando clara, frontal e explicitamente o princípio de separação de poderes. Mas, assim estamos. Foi a isto que chegámos. A lei deixou de ser um valor seguro para se transformar num enunciado frágil e precário à mercê de habilidades interpretativas e de interesses corporativos. Quanto à política, a pobre da política, a lamentável política, é difícil dizer se fala ou se balbucia quando a senhora Ministra da Justiça afirma que haverá oportunidade de "revisitar algumas soluções vertidas na lei". Sim, sim. Enquanto revisita e não revisita, ninguém cumpre a lei. Que situação extraordinária.
O que efetivamente se passa é que o Governo está desde setembro de 2021 na situação de ilegalidade por omissão. E talvez seja importante lembrar que esta omissão legislativa não é sobre uma matéria qualquer, mas sobre matéria respeitante a um dos mais importantes princípios do direito democrático, o direito ao juiz natural. Dezassete meses de omissão. Não é desleixo, não é incompetência, não se trata de falta de recursos (nesta área política já só falta o Ministério aderir ao discurso da falta de recursos). Trata-se, isso sim, de uma opção política absolutamente ilegal e que não esconde a reserva mental com que o Governo sempre encarou a Lei da Assembleia. Perante os factos, é inacreditável que o assunto tenha deixado de ser debatido publicamente pela simples razão de que não interessa a ninguém -- nem ao sistema judicial, nem ao sistema político, e, em consequência, nem ao sistema mediático. Na verdade, nenhum destes sistemas de poder deseja a mudança que a lei prevê e talvez só o cidadão se incomode com a omissão de um direito seu. Mas o cidadão deixou de ter voz quando a política se calou. Portanto, silêncio. O governo não regulamenta e assim é que está bem. Todos satisfeitos. Só o Estado de Direito sai a perder, mas é difícil vislumbrar alguém que ainda se preocupe com isso. E no entanto, o que está em causa nesta questão é um princípio político essencial -- em democracia, é a política que faz o direito, não é o direito que faz a política.
Quando alguém lembra a senhora Ministra de que o seu dever está há dezassete meses por cumprir, esta responde, com a solenidade própria do discurso de abertura do ano judicial, dizendo que é "preciso serenar algum ruído". Eis, portanto, a resposta que a política oferece ao problema -- todo o debate sobre o tema é ruído. O terreno do Direito deve continuar reservado a alguns iniciados capazes de distinguir, no céu estrelado onde brilham as ideias universais e perenes, os conceitos de "Justiça" e de "Bem" de que a humanidade tanto necessita. E isso exige ponderação e reflexão aos mestres -- e paciência, muita paciência, aos cidadãos. O resto, a controvérsia, a discussão, a disputa política em torno de leis que não foram regulamentadas, não passam de fúteis "discórdias parlamentares" às quais não devemos prestar atenção. Ruído. Perda de tempo. Lentamente, vamos vislumbrando a receita de sucesso dos Ministros da Justiça -- não fazer nada, não fazer absolutamente nada. Deixar a política às corporações. Serenar o ruído, significa silêncio. Nada mais.
Enquanto a senhora Ministra se queixa do insuportável barulho que a defesa do Estado de Direito provoca no seu delicado espírito, a campanha contra as garantias constitucionais, isto é, a campanha contra a democracia, prossegue sem oposição. Façamos um breve recenseamento. O diretor da Polícia Judiciária afirma, com o ar grave de quem conhece profundamente o direito penal, que estamos a viver uma época de "terrorismo processual". Pelo seu lado, o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, também sem qualquer espécie de contenção, declara que, se queremos resolver os problemas da justiça, "é preciso cortar com o excesso de garantias de defesa". Noutra área profissional complementar, um dos fiéis parceiros do ministério público diz, em entrevista, que é preciso pôr de lado os "complexos da ditadura" -- sim, na ditadura as coisas funcionavam. Um outro colega desta arte afirma que o julgamento público está feito (o seu trabalho está feito, é o que quer dizer) mas o julgamento em tribunal não está, apresentando várias razões para esse escândalo entre as quais o facto de um juiz de instrução ter considerado as acusações falsas. É, de facto, um escândalo que a justiça não se limite a seguir as conclusões do julgamento público feito nos jornais e que as leis penais ainda permitam a defesa de quem se reclama inocente -- afinal, se o cidadão já teve o seu "julgamento popular", que mais é necessário? Finalmente, para não ir mais longe, uma antiga Ministra da Justiça, fiel ao estilo destrambelhado que cultivou ao longo da sua carreira política, junta-se à turba para dizer que a verdadeira prioridade deve ser o combate às "manobras dilatórias". Não falei das posições do partido Chega, que não são necessárias. Julgo que a amostra é suficiente. Mas animemo-nos, haverá próximos capítulos.
Post Scriptum: O processo Marquês vai fazer dez anos. O inquérito durou quatro. A instrução durou três e meio. A disputa de "competência negativa" entre juízes, para determinar quem era o titular do processo, durou oito meses. O juiz que fez a instrução concedeu quatro meses ao Ministério Público para fazer o recurso. Feitas as contas, que são fáceis de fazer, o Estado é diretamente responsável por quase nove anos dos dez que, até hoje, durou o processo. O discurso das "manobras dilatórias" da defesa tem um sério problema com os factos.
* Engenheiro. Antigo primeiro-ministro e principal arguido no processo Marquês
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