segunda-feira, 3 de abril de 2023

"A ADESÃO À NATO NÃO VAI TORNAR A SUÉCIA MAIS SEGURA"

A Finlândia já tem luz verde para entrar na Aliança Atlântica, mas a Suécia ficou para trás à espera da decisão da Turquia e da Hungria. Em Estocolmo, a pacifista Gabriella Irsten critica não ter havido um verdadeiro debate na sociedade sobre a adesão, enquanto o curdo-sueco Kurdo Baksi lamenta as cedências feitas pelo governo para agradar a Erdogan.

Susana Salvador | Diário de Notícias

Numa montra há um simples cartaz branco com letras a preto onde se lê em inglês "A Paz é Possível". Noutra, há o símbolo da paz feito com ramos de árvores. Estamos no bairro de Kungsholmen, em Estocolmo, e atrás da porta de vidro encontra-se a sede da Sociedade Sueca de Paz e Arbitragem (Svenska Freds - och Skiljedomsföreningen ), que festejou na sexta-feira os seus 140 anos de vida. Diz ser a mais antiga organização pacifista do mundo e, após a Rússia invadir a Ucrânia, foi surpreendida pela decisão da Suécia de aderir à NATO e pôr fim a dois séculos de não-alinhamento. Mas o desejo sueco esbarrou nos interesses da Turquia, um dos dois países da Aliança Atlântica que ainda não deram luz verde à adesão (o outro é a Hungria). Um cenário que foi antecipado pelo curdo nascido na Turquia mas que vive desde a década de 1980 na Suécia, Kurdo Baksi, que só foi surpreendido pelas cedências que o governo sueco fez para agradar ao presidente Recep Erdogan.

A Sociedade Sueca de Paz e Arbitragem nasceu em 1883, quando o reino da Noruega queria abandonar a união com o reino da Suécia e havia quem defendesse pegar em armas para o travar - tinha sido a guerra de 1814 entre os dois países, a última em que os suecos participaram, a ditar essa união, que acabaria dissolvida pacificamente em 1905. A Suécia está em paz há mais de 200 anos, tendo mantido também uma política de neutralidade, de não-alinhamento. Mas não é inocente, lembrou Gabriella Irsten, diretora do departamento de Paz Sustentável e Segurança Humana da organização, que recebeu o DN numa manhã fria de Primavera, dias depois de o Parlamento sueco dar a luz verde à adesão da NATO.

"A Suécia tem uma grande indústria de armas contra a qual a minha organização tem trabalhado. Em 2021, 46% das armas suecas foram vendidas a países não-democráticos. Queremos que pare de vender armas a estes países. Obviamente que isso não é neutralidade, é estratégia militar, com a Suécia a apoiar tanto o lado mau como o bom ao longo da história", contou.

O não-alinhamento sueco viu-se questionado quando a Rússia invadiu a Ucrânia, a 24 de fevereiro de 2022. "Eu própria fiquei assustada", admitiu Gabriella, criticando contudo que de repente, sem debate, o governo tenha mudado de ideias sobre aderir à NATO. "Muitos partidos defendiam há muito tempo a adesão. Mas os sociais-democratas, que estavam então no governo, sempre foram contra. Em novembro de 2021, Peter Hultqvist disse que enquanto ele fosse ministro da Defesa, o país nunca iria aderir à NATO. A 8 de março, a então primeira-ministra Magdalena Andersson, dizia que a NATO não era opção, que iria criar mais tensão e não era a resposta. E depois, a 16 de maio, o governo estava a entregar o pedido de adesão à NATO. Foram pouco mais de dois meses", resumiu.

O chefe da diplomacia sueca, Tobias Billstrom, defendeu que "a adesão à NATO é a melhor forma de salvaguardar a segurança da Suécia e contribuir em solidariedade para a segurança de toda a área euro-atlântica". Declarações durante o debate no Parlamento, no dia 22 de março último, quando a adesão foi aprovada pelos deputados - 269 votos a favor e 37 contra, com 43 deputados ausentes. Mas Gabriella não concorda: "A adesão à NATO não vai tornar a Suécia mais segura. A NATO está construída com base na dissuasão militar. A dissuasão é ameaçar o teu opositor com armas e poder, o que faz com que o teu opositor enverede pelo mesmo caminho. E então a situação transforma-se numa corrida às armas."

A visão curda

Quando se começou a falar da adesão, o jornalista e ativista Kurdo Baksi começou a preparar artigos sobre aquela que seria a reação do presidente do país em que nasceu em 1965, a Turquia. "Enquanto curdo, de nacionalidade sueca, pensei logo que Erdogan ia criar problemas para a Suécia. Que ele ia tentar parar os direitos dos curdos neste país", contou ao DN num dos sofás do lobby de um hotel junto à estação central de comboios de Estocolmo, que costuma servir de palco aos encontros que tem com os jornalistas estrangeiros que o procuram.

"Eu já sabia o que ele ia dizer: deem-me alguns terroristas. Não era nada que não estivesse à espera. Mas o que não sabia era que a Suécia iria aceitar algumas das suas condições. Isso foi um choque. Não sabia, enquanto cidadão sueco, que a Suécia iria mudar a lei antiterrorismo e aceitar a versão de terrorista de Erdogan. Se escreves um artigo contra Erdogan, então és um terrorista", exemplificou. O presidente turco enviou uma lista de alegados terroristas a extraditar, mas essa lista tem vindo a crescer. Primeiro eram 33, depois 42, agora já são mais de cem. Dois já foram extraditados, explicou Kurdo Baksi, sendo agora usados em propaganda com a Turquia a dizer que os suecos já estão a cooperar. "Mas a verdade é que um deles, de 45 anos, tem um cancro, nem sequer estava na lista", afirmou. E na lista há pessoas que nem vivem na Suécia ou até já estão mortas.

Na Suécia há cerca de 150 mil curdos, não só da Turquia, mas também do Iraque, da Síria ou do Irão, contou. Quando a República da Turquia foi criada, há 100 anos, o nacionalista Mustafa Kemal Atatürk declarou que todos os que viviam no território eram turcos, negando a identidade e língua curdas. Isso causou a revolta desta minoria, que culminaria nos anos 1980 no nascimento do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (o PKK), um grupo considerado terrorista pela União Europeia. Muitos curdos foram viver para a Suécia por causa das políticas de tolerância do ex-primeiro-ministro Olaf Palme (que foi assassinado em 1986).

Conhecido por muitos por ter sido amigo do escritor Stieg Larsson - tem um livro sobre a sua amizade com o autor da trilogia Millenium, sendo personagem do terceiro volume - Kurdo Baksi escreveu também sobre imigração e integração e em 2000 ganhou o prémio Olaf Palme pela sua luta contra o racismo. O seu último livro é sobre a Turquia e Erdogan, que estuda há 25 anos. Apesar disso, o seu nome não está na lista de curdos que o líder turco quer ver extraditados.

"Eu não posso ir à Turquia. Mas não estou na lista, porque ele sabe que sou de uma família famosa, envolvida com a política há décadas", explicou. "Se puser lá o meu nome, ele sabe que os curdos não vão votar nele nas eleições de maio. Até os que não gostam do meu pai, do meu avô, dos meus antepassados ou de mim, diriam que teria ido demasiado longe. Porque somos vistos como uma família dedicada aos direitos humanos", referiu. A sua irmã, por exemplo, foi a primeira deputada muçulmana na Suécia.

Na sua opinião, é precisamente por causa das eleições de 14 de maio que Erdogan está a atrapalhar a adesão da Suécia à NATO - sendo que os curdos não são contra essa adesão. "Era óbvio que ele ia instrumentalizar esta situação para ganhar apoio na Turquia. Mostrar que era mais forte que a Suécia", referiu, lembrando que se fartou de dizer aos líderes suecos para não irem a Ancara tirar fotografias com Erdogan e eles ignoraram. "O nosso primeiro-ministro [Ulf Kristersson] é muito pequeno [1,69 metros] e Erdogan tem 1,85 metros, está a ver como isso aparece nas fotos...", contou. "Eu disse sempre, esperem até depois das eleições, depois as portas vão-se abrir."

Resta saber é se Erdogan vai ganhar. "Ele nunca esteve tão fraco", disse Kurdo Baksi, lembrando por exemplo o sismo que matou milhares de pessoas. "Até agora, em 20 anos, nunca dissemos ele ia perder as eleições. Agora, pela primeira vez digo que ele pode perder". A oposição turca surge desta vez unida em torno de um só candidato Kemal Kilicdaroglu. "Ele é a pessoa certa neste momento, é o oposto total de Erdogan. Não tem carisma. É um António Guterres turco, quão sexy é isso", riu-se. "Se calhar não pode dizer isto em Portugal, mas ele é uma mistura entre o Dalai Lama e António Guterres", brincou.

Mais a sério, o jornalista explicou o que vai na cabeça de muitos turcos: "Não vamos para o paraíso depois das eleições, mas vamos fechar as portas do inferno", lembrando que para isso é preciso o apoio de todos os que não têm hoje direitos, dos alauitas às mulheres, dos curdos aos homossexuais.

Questionado sobre o porquê de Erdogan ter já dado luz verde à adesão da Finlândia, que apresentou a candidatura conjunta com a Suécia e onde também há curdos (mas muito menos), Kurdo Baksi alegou que foi uma cedência na expectativa de poder ter uma fotografia com o presidente norte-americano, Joe Biden, antes das eleições. Ao mesmo tempo, serve para enviar um recado ao presidente russo, Vladimir Putin. "Não me deixaste ir ao Curdistão na Síria, então agora aqui está um país que tem uma longa fronteira com a Rússia na NATO", explicou, referindo que a Finlândia não fez qualquer cedência a Ancara.

Batalha perdida

Desde o início que a Turquia, tal como a Hungria (os dois países que ainda não aprovaram a adesão da Suécia), foi um dos problemas que a Sociedade Sueca de Paz e Arbitragem apontou contra a adesão. "Dissemos sempre que um dos grandes problemas da NATO é que não são só democracias. Está lá a Hungria, cuja democracia está a ir na direção errada. Está lá a Turquia, que é o segundo maior poder militar do grupo e o poder militar é o que conta na NATO", explicou Gabriella.

A pacifista critica as cedências que já foram feitas a Erdogan, nomeadamente o retomar da venda de armas que fora suspensa após a intervenção na Síria. "Um dos principais argumentos para aderir à NATO é a necessidade de proteger a nossa democracia e os direitos humanos. E para nós é difícil ver como estamos a protegê-los vendendo armas a uma pessoa como Erdogan."

A Sociedade Sueca de Paz e Arbitragem gostava que estes temas tivessem sido discutidos antes de ser tomada uma decisão. "Defendíamos um referendo, como o que houve para a adesão à União Europeia ou à moeda única, sendo que este último foi chumbado". Em vez disso, não houve debate: "As pessoas não sabem o que significa fazer parte da NATO. Acham vão ficar mais seguras, só pensam no artigo 5.º do tratado, da defesa comum. A adesão foi apresentada como a única alternativa: se não fizermos isto, então a Rússia invade-nos a seguir".

Agora, admitem que esta batalha já está perdida, mas ainda assim não baixam os braços. Querem que a Suécia, mesmo membro da NATO, continue a lutar pela liberdade, pela democracia e pelo desarmamento, nuclear. Defendem que devia ser aprovada uma lei para impedir a colocação destas armas no país, chamando a atenção que a recusa dos políticos em o fazer é deixar essa porta aberta no futuro. Finalmente, olhando para a guerra na Ucrânia, querem que se comece já a pensar nas negociações de paz futuras, defendendo o envolvimento da sociedade civil. "Assim que a guerra acabar, haverá um longo caminho para a paz. Por isso não podemos pensar apenas em terminar os combates. Porque o período do pós-guerra é normalmente ainda mais longo que a própria guerra", lembra Gabriella

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