Manuel Raposo [*]
Quem não queira confundir o rastilho com a pólvora percebe que os motins dos últimos dias em França não têm propriamente a ver com com o assassinato do jovem Nahel Merzouk às mãos da polícia — de que apenas são o efeito imediato —, mas radicam num profundo apodrecimento da sociedade francesa. As suas marcas são o racismo, a desigualdade económica, a repressão que atingem sobretudo os franceses de segunda e os imigrantes.
Some-se a isto o marasmo económico e a decadência do sistema de poder, ferindo todas as classes trabalhadoras e boa parte das classes médias, e teremos um quadro do barril de pólvora sobre o qual se vive.
As novas gerações que agora vêm para a rua protestar, por todos os meios, contra o assassinato de um dos seus já interiorizaram a certeza de que vão viver toda a vida pior ainda que os seus pais, e que o sistema social em que vegetam não tem nada mais para lhes oferecer do que uma pauperização crescente. E sabem também que qualquer protesto seu contra as desigualdades e as injustiças tem forte probabilidade de ser tratado com cargas policiais e com acusações de sedição.
Os milhares de jovens e adolescentes, alguns quase crianças, que atacam lojas, bancos, carros e símbolos do poder, como sedes de câmaras municipais e autarcas, dão sinal de um ódio de classe acumulado, de uma aversão instintiva ao sistema social, que a moralidade das autoridades não consegue entender. Dizer que “São criminosos, ponto” — como disse o finório António Lobo Xavier, administrador de uma dezena de empresas e conselheiro de Estado — é repetir a bacorada atribuída a Marie Antoinette de mandar o povo comer brioche já que não havia pão. É a sociedade, a vossa sociedade que está podre, estúpidos!
Comentadores obtusos, mandatados para denegrir o movimento, apontam os assaltos às lojas dos bairros chiques como sinal de um aproveitamento oportunista da parte dos manifestantes. Achariam, certamente, que seria mais “honesto” os manifestantes roubarem lojas de pobres e artigos de quinta categoria como os que têm nos seus bairros. Não percebem que uma sociedade que promove o luxo, a ostentação e a futilidade como modelos e depois nega à maioria da sua população o acesso aos bens correspondentes, e em muitos casos os próprios bens básicos da vida — não percebem que uma tal sociedade está condenada, por isso mesmo, a ser virada do avesso pelos que hoje estão por baixo.
Os protestos — não por acaso, mas por um sentimento de causa comum — estenderam-se da origem, em Nanterre e Paris, a várias outras cidades de França, de norte a sul, entre elas Tours, Nantes, Lyon, Pau, Marselha, e mesmo à ilha de Reunião no oceano Índico. Em várias delas, como Marselha, as comunidades de origem magrebina e a imigração têm forte peso e sentem muito bem o que é discriminação, pobreza e injustiça.
Tais protestos prolongam, agora sob a forma de raiva incontida, aquilo que os Coletes Amarelos expressaram desde 2018, e durante anos, de modo essencialmente pacífico — sofrendo, mesmo assim, uma repressão brutal — sem que as suas exigências fossem sequer ouvidas. Os jovens revoltados, à sua maneira, dão também sequência às gigantescas manifestações, em que toda a França maciçamente participou, contra a miserável alteração da lei das reformas do autocrata Macron.
Sim, autocrata. Porque Macron só conseguiu que a lei fosse para a frente com recurso a um golpe — coberto por uma excepção constitucional, mas na mesma um golpe — que o furtou a uma derrota segura no parlamento. O pseudo-democrata Macron, eleito por exclusão de partes em 2017, tornou-se um símbolo do que é a pseudo-democracia do capital.
Admiram-se que a extrema-direita tire dividendos? É a massa popular com as suas exigências de igualdade e de justiça que estimula o fascismo? Ou é o poder que lhe franqueia as portas ao reprimir o povo? Dois terços da população francesa e 90% dos trabalhadores no activo rejeitaram a alteração da lei, e mesmo assim Macron tratou de a impor. Com democratas desta espécie quem precisa de ditadores?
O pedido patético de Macron para que os pais tivessem mão nos filhos menores e não os deixassem sair de casa, pensando que assim debelava a revolta, é outro sinal de cegueira. O mesmo com a repetida afirmação, de Macron e da primeira-ministra Borne, de que “nada justifica” a violência “indesculpável” dos protestos, lançando uma espécie de anátema moral sobre os manifestantes. Em qualquer dos casos, fica patente a impotência do poder, por pouco tempo que seja, perante uma onda de radicalização extrema, como a que se desencadeou a partir de Nanterre. Marie Antoinette parece reviver de tempos a tempos no espírito dos governantes em apuros.
A realidade que o poder não
encara — porque, pela sua natureza de poder oposto às reclamações populares,
não a pode encarar — é a rejeição radical de que é alvo por parte da população
em momentos como o que se viveu agora
O mal da França, por outro lado, é a manifestação mais gritante do mal que atinge a Europa. Os protestos de França tiveram réplicas na Bélgica e na Suíça, facto muito pouco atendido pelos média. Mesmo simbólicos, estes ecos revelam que, política e socialmente falando, não há uma muralha nas fronteiras dos estados europeus.
Por enquanto, a maioria dos europeus sofre em silêncio os efeitos do retrocesso económico, da subida dos preços, da guerra promovida pela Nato, da degradação inevitável do estado social — enfim, de um recuo civilizacional geral. Mas, a prazo, esta contínua queda para o abismo é insustentável.
Um capitalismo materialmente falido, cultural e moralmente desfeito, institucionalmente degradado não pode oferecer horizontes de futuro. Uma sociedade que, pela própria voz dos seus mentores, só consegue oferecer um amanhã pior que o dia de hoje — e que afirma apenas poder subsistir nessa condição! — é uma sociedade que caminha para o fim. É isso que está expresso nas lutas de massas em França.
O descontentamento das classes
trabalhadoras é um facto, mesmo quando não se manifesta como agora
06/Julho/2023
[*] Arquiteto.
O original encontra-se em www.jornalmudardevida.net/2023/07/06/franca-a-crise-da-civilizacao-burguesa-posta-a-nu/
Este artigo encontra-se em resistir.info
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