Pedro Filipe Soares* | Diário de Notícias | opinião
Garota Não pergunta o que é que fica. Numa das suas músicas, a cantautora mostra os paradoxos da habitação em Portugal para concluir resignada "não sei o que é fica se corrermos mais". Há pouco salário para casas tão caras, as rendas não estão ao alcance de quem trabalha e as gigantes taxas de juro são um assalto por parte dos bancos. Mãos ao alto: o Banco Central Europeu é quem dita a lei e o mercado quem faz as regras, o governo apenas faz de conta para ficar tudo na mesma, ou pior.
Diz Christine Lagarde que os salários estão a subir demasiado e isso está a prejudicar a inflação e a obrigar à subida das taxas de juro. Uma simples frase da Presidente do Banco Central Europeu (BCE), que tem tanto de falsidade como de programa político. Vamos por partes, como diria Jack, o Estripador, que o assunto é mesmo mórbido.
Em Portugal os salários não acompanham o aumento da produtividade, o que significa que as pessoas até produzem mais e melhor, ficam com uma parte cada vez menor da riqueza que produzem. Quem vive do seu salário está a ficar para trás - não é isso que está a agravar a inflação. O que está a fazer disparar a inflação são os lucros abusivos de algumas empresas em setores-chave da economia, só que nos poderosos não há coragem para tocar. O mecanismo de transmissão de inflação está nos lucros e nas margens de determinadas empresas, não nos salários.
Sobre as taxas de juro em subida acelerada e as promessas que assim irão continuar, poderia dizer que é um absurdo económico a promessa do BCE de tudo fazer para impedir que a inflação seja superior a 2%. Mas não é de economia que estamos a falar, é de política - ideologia pura. Esta ideia de aumentar as taxas de juro, custe o que custar, para empurrar a inflação para os 2% é uma forma, agora bem visível, de desvalorizar os salários. Empurrar a economia para uma contração, garantindo que os rendimentos não acompanham a produtividade. Dizer que os salários pagam os efeitos colaterais desta política de juros altos é errado - pagam o custo principal, porque é para isso que ela existe e está a ser aplicada. Em Portugal este é um mal que não vem só: a classe média e média-baixa fica com uma dupla penalização porque os empréstimos bancários a taxa variável são a outra face do saque: dupla perda de rendimento.
Porquê a meta de 2% de inflação? Por que não rever este valor para minorar custos económicos e sociais no controlo da inflação? Para quê culpar os salários de uma inflação elevada? Porquê insistir em aumentos brutais das taxas de juro? É a política dos de cima que se quer manter esmagando os de baixo. Esta é a política Lagarde, à Lagardère para quem vive em cima das nossas possibilidades.
E o governo, como é que fica? Quem ouviu António Costa indignar-se com Lagarde poderia achar que, por cá, as coisas são diferentes. Só que não. O governo deixou os salários empobrecerem, não controlou preços ou lucros abusivos, permitiu o acirrar das desigualdades. E mesmo agora, que a narrativa contra os juros do BCE se tornou consenso nacional, o que fez o governo para ajudar no problema da habitação?
O pacote do governo para mudar o setor da habitação acaba por deixar tudo na mesma: Alojamento Local e vistos gold são para manter, apoios à renda ficam aquém do prometido, apoio ao crédito à habitação deixa muitas pessoas necessitadas de fora. O mercado agradece, a classe média e média-baixa desesperam. "E eu que só vinha para falar de amor", vou daqui indignado com estas políticas.
* Líder parlamentar do BE
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