Pedro Tadeu* | Diário de Notícias | opinião
O ministro José Luís Carneiro declarou, placidamente, como se fosse a coisa mais normal deste mundo, ter telefonado diretamente ao presidente do conselho de administração da RTP, a televisão pública, para "manifestar desagrado" (cito as palavras usadas pelo próprio) com um cartoon animado que caricaturava o suposto racismo da polícia francesa, na sequência dos acontecimentos que geraram vários dias de motins, mas cujo desenho foi entendido por alguns como sendo também uma acusação à polícia portuguesa.
O ministro José Luís Carneiro, que tutela as polícias, talvez tenha sentido que essa era a sua obrigação, que tinha de defender a imagem dos polícias portugueses, mas para o fazer usou algo que liquida a sua própria credibilidade democrática - abusou da autoridade que o cargo de ministro da Administração Interna lhe confere.
É verdade que os Estatutos da RTP dão aos diretores de Informação toda a autonomia e responsabilidade editorial do jornalismo da RTP, sendo teoricamente imunes a interferências do próprio conselho de administração, quanto mais do governo.
Na programação, a força formal dessa blindagem não existe. Porém, para além do próprio conselho de administração, há estatutariamente vários órgãos que lateralmente podem verificar se a RTP está a cumprir na programação os requisitos do serviço público que presta, como o conselho geral independente e o conselho de opinião.
A ERC e a própria Assembleia da República também podem pronunciar-se, dentro dos limites da regulamentação existente, sobre o que anda a televisão pública a fazer.
Há ainda provedores de espectadores, instituídos pela própria estação, que fazem análise crítica ao conteúdo das emissões.
Nada na comunicação social portuguesa é tão escrutinado como o conteúdo da RTP, televisão e rádio, Isso acontece todos os dias, e ainda bem que é assim.
Mas ninguém do governo, enquanto tal, tem enquadramento legal para fazer o que José Luís Carneiro disse que fez. Nem, sequer, o ministro da tutela - e esta distância entre a televisão pública e o executivo foi algo duramente construído ao longo de quase cinco décadas de democracia, e que afasta a RTP dos tempos em que ministros telefonavam a diretores de Informação para discutir o alinhamento do Telejornal.
Esse progresso, que aparentava ser consensual, está, pelos vistos, em risco de regressão.
A simples sensibilidade política é também diferente se for um membro do governo a refilar contra a RTP ou se for um partido da oposição a protestar por uma qualquer notícia que lhe desagrade.
Os partidos, isoladamente, não têm poder efetivo sobre a RTP e, por isso, as suas reclamações são um direito de intervenção pública que não lhes pode ser negado.
Poderá ser eventualmente aceitável que um membro do governo faça críticas ou elogios públicos a qualquer conteúdo da RTP, mas, na realidade informal, o peso do poder de um ministro implica que neste caso seja mais ténue a linha que separa a manifestação de uma posição política legítima da de uma interferência abusiva.
José Luís Carneiro ultrapassou claramente essa linha ao telefonar diretamente ao presidente do conselho de administração, Nicolau Santos, pois esse contacto pode legitimamente ser interpretado como uma tentativa de coação política direta, um afrontamento personalizado de alguém, que está no poder executivo do país, sobre alguém que executa um contrato de serviço público. Nessa conversa, implicitamente, apesar de todas as defesas legais, está subentendido quem manda mais, quem está por cima, quem está por baixo e quem pode começar a trabalhar para fazer a vida negra ao outro. É, repito, um abuso de poder.
Mas, pior do que isto tudo, é o ridículo. Meu Deus! Estamos a falar de um cartoon, que uns gostarão e outros não, mas é um cartoon, não é para levar a sério, não é para gastar tempo político e nos tribunais.
Quantos destes ofendidos não se disseram um dia, em 2015, emocionados, solidários com os cartoonistas assassinados do Charlie Hebdo e usaram, desafiadores à distante ameaça islâmica, o autocolante "Eu sou Charlie"?...
Que patetas!
*Jornalista
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