domingo, 27 de agosto de 2023

É IMPOSSÍVEL DEUS PECAR – Artur Queiroz

Artur Queiroz*, Luanda

Lula da Siva foi condecorado com a Ordem Doutor Agostinho Neto na “sala oval” (foi assim apresentada pelo repórter Duda da TPA) do Palácio da Cidade Alta. O Presidente do Brasil disse que a condecoração lhe vai dar força para lutar, ainda mais, contra as desigualdades e pela indignação. A indignação de quem come sabendo que ao lado há quem nada tem para comer. Os que têm empregos e ficam indignados porque há desempregados. Os que estudam e ficam indignados porque ao lado há milhões sem acesso ao ensino. Indignação dos que têm casa e sabem que multidões não têm. “O Pensamento revolucionário de Agostinho Neto vai dar-me força” disse Lula.

A “sala oval” foi o lugar onde algumas dezenas de pessoas ouviram estas palavras. Era bom que também lessem o livro de George Wright (A Destruição de um País – A Política dos Estados Unidos para Angola). Citou Kissinger em 1975: “Angola não é uma questão de somenos importância. Vamos perder lá e em grande! (…) Não me importa o petróleo ou uma base naval em Angola, importo-me e muito, com a reacção africana quando virem os soviéticos a colaborar em força e nós a não fazer nada. Os europeus dizem a si próprios: Se eles não conseguem tomar Luanda como podem defender a Europa?”

Kissinger estava preocupado com a reacção dos seguintes africanos que se conluiaram contra a Independência Nacional: África do Sul (racista), Zaire de Mobutu, Marrocos, Senegal, Costa do Marfim, Gabão, Zâmbia, Malawi, Tunísia, Togo, Burkina Faso, Camarões e até a Nigéria! Estes países foram “mobilizados” por Washington, em 1981, para exigirem a retirada das tropas cubanas de Angola. O ano em que os racistas de Pretória desencadearam a “Operação Protea”, ocupando a província do Cuando Cubango. Numa reunião com as cúpulas do Pentágono e da CIA Kissinger sentenciou: “Temos de colocar na cabeça dos líderes africanos que não podem ter os cubanos em África e o nosso apoio ao mesmo tempo”. 

A decisão de invadir Angola foi tomada pelo alto comando do regime racista de Pretória. P W Botha, então ministro da Defesa, numa reunião secreta, afirmou que “não estamos sós na invasão a Angola, temos o apoio de Mobutu, Kaunda, Senghor, e Félix Houphouet-Boigny, que nos aconselham a intervir em apoio à UNITA”. Verdade. Maias tarde, Chester Crocker escreveu isto: “Os Estados Unidos da América e os governos ocidentais nada fizeram para desencorajar a intervenção militar em Angola desencadeada por Pretória em meados de Outubro de 1975”.

A História repete-se. Hoje o Presidente João Lourenço associou os golpes de estado no Sahel ao terrorismo internacional. Biden e Macron não se atreviam a ir tão longe! Felizmente, Lula da Silva, na conferência de imprensa que teve lugar na tarde de hoje no Palácio da Cidade Alta, explicou que a fome e a miséria só existem porque os donos do dinheiro querem. Se andam no ar triliões e triliões de dólares, é fácil investir uma parte dessas somas astronómicas no combate à fome, à ignorância e à doença. Disse Lula: “Isso é possível. A única coisa impossível é Deus pecar!” Lula também disse a João Lourenço: “Angola faz parte do Sul Global”.

Há outras coisas impossíveis. Vou contar uma. Os comandantes Xyetu, Iko, Eurico e Bakalof foram ao Lubango conferenciar com Pik Botha, ministro das Relações Exteriores e Magnus Malan, ministro da Defesa da África do Sul. Pretória propunha garantir a paz nas fronteiras de Angola no sul e sudeste. Em troca queriam que o Governo Angolano acabasse com as bases da SWAPO (movimento de libertação da Namíbia) e do ANC (partido da maioria negra da África do Sul). Garantiam a boa vizinhança para sempre.

No final da reunião, no Grande Hotel da Huila, o comandante Iko Carreira (ministro da Defesa do Governo de Angola) disse: “Duvido que o Velho aprove isto…”. O Velho era Agostinho Neto. Os comandantes foram transmitir ao Presidente da República os resultados da reunião. E ele disse-lhes: “Vou dar a resposta publicamente”. Foi convocado um comício para o Estádio da Cidadela e Neto respondeu: Angola é trincheira firme da revolução em África. A nossa luta continua na Namíbia, no Zimbabwe e na África do Sul (cito de memória). 

Antes do comício estive com Agostinho Neto e ele mostrou-me, manuscrito, o seu discurso. Tirei umas notas e antes do acontecimento já eu estava a redigir a notícia com citações e tudo. Sorte de repórter.

Antes desse acontecimento, que faz parte da Historia Universal porque marca o princípio do fim do regime racista de Pretória, testemunhei outras situações. A Emissora Oficial de Angola (RNA) cobriu integralmente a Cimeira do Alvor, no Algarve, Portugal. Eu ia todos os dias ao Hotel da Penina, várias vezes ao dia, falar com Rui de Carvalho para obter informações do que se passava na mesa de negociações. Num desses encontros ele disse-me que Agostinho Neto ia fazer o discurso de encerramento da cimeira em nome dos três movimentos de libertação: “O Velho já está a redigir o discurso!”

Pedi ao Rui de Carvalho que me fosse dando informações sobre o conteúdo da intervenção de Agostinho Neto. E ele fez muito mais do que eu esperava. Há medida que Neto redigia o texto, eu lia as páginas manuscritas e tomava notas. No dia do encerramento Neto ainda escreveu mais três páginas. E o Rui deu-me os manuscritos para eu tirar notas. 

Como não tínhamos meios para a cobertura do encerramento em directo, servi-me desse material e redigi notícias para o Chico Simons e o Horácio da Fonseca darem aos ouvintes angolanos  com passagens do histórico discurso. Manuscrito por Agostinho Neto. A História escrita à mão!

No dia da Independência Nacional pedi a Agostinho Neto uma mensagem ao Povo Angolano para publicarmos no Diário de Luanda. Ele aceitou. Fui ao Futungo e ele escreveu a mensagem à minha frente. No primeiro número do jornal Diário de Luanda da Angola Independente publicámos, na primeira página, a mensagem manuscrita e no interior a mensagem impressa. 

Ontem Manuel Rui escreveu na sua crónica: “Um dia estava com Dilolwa, que acabou se enforcando, Orlando Rodrigues a entrançar os finalmente da proclamação que Agostinho Neto iria ler dois dias depois naquela praça”. Acontece que na tarde de 10 de Novembro, quando fui buscar a mensagem ao Povo Angolano, Neto estava a ultimar o discurso da proclamação. Nada é impossível. Segundo Lula da Silva, impossível mesmo é Deus pecar. Não acredito em quem não é pecador. O Senhor nem sequer peca por amor? Reprovado.

Conclusão: Há dois textos da Proclamação da Independência Nacional, o de Neto, escrito à mão, e o da crónica do Manuel Rui. 

*Jornalista

Imagem: Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, durante cerimônia de aposição floral, no Memorial Dr. António Agostinho Neto. Luanda - Angola — Foto: Ricardo Stuckert / PR

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