segunda-feira, 18 de setembro de 2023

MADEIRA | Pobreza. "As outras ilhas dentro da ilha"

Os donos da ilha e semeadores da pobreza

As "desigualdades" numa região que tem a maior taxa de risco de pobreza ou de exclusão social e o pior poder de compra do país. As polémicas políticas e a realidade de quem não vive na cidade dos turistas.

Nem parece o Funchal, não é?". E não parece. Há casas de chapa, outras só de cimento à vista ainda por pintar, outras que foram crescendo à medida que a família cresceu - "vamos fazemos uns quartinhos, dois quartinhos" -, outras de cores garridas e antigas - "isso é dos emigrantes" -, e outras ainda novas, de portões elétricos, muros altos.

Há carros velhos e avariados metidos em socalcos e "carros de topo, de uns milhares" estacionados em garagens, à beira das apertadas e inclinadas estradas longe dos carreiros sinuosos, alguns de degraus, que dão acesso a centenas e centenas de casas.

Há lugares sem "saneamento básico, esgotos, acessos decentes" e outros que "nem uma tasca têm".

Há casas reconstruídas que, depois do "20 de fevereiro" [a tragédia que, em 2010, causou 47 mortos, 4 desaparecidos, desalojados às centenas e milhões de prejuízos], depois das "ribeiras" terem "enchido com a chuva e arrastado tudo", continuam "ilegais". E há outras que após 13 anos continuam por reconstruir.

"A mim não me ajudaram nada. Tive que pagar praticamente tudo. O governo? Não conto com ele. Ninguém dá nada a ninguém. O governo quer é saber dele, dos amigos e disso tudo", desabafa o homem de 63 anos que, encostado ao muro de pedra, me indica as casas, os caminhos que "as águas e as lamas levaram".

Mãos robustas, dedos tingidos dos "óleos e massas" dos motores dos carros, aponta uma a uma as casas dos que "foram embora", dos que como ele "tiveram que fazer tudo", "aquela casa amarela que desapareceu" e agora foi reerguida, os "fios elétricos pendurados por todo o lado", os becos "cheios de mato" e a ribeira "cheia de árvores".

"Mas isso não lhes interessa. Quando houver mais uma desgraça é que vêm limpar", desabafa, sem parar de apontar cada detalhe e no mesmo tom calmo de voz.

"Sabe", e neste instante olha-me com ar sério, "é que eles só se lembram de nós nestas alturas, nas desgraças e nas eleições. Ainda agora a CDU passou aqui. Aqui há dias, o PSD foi à minha casa. Nem sequer ligo. Parecem papagaios a falar, mas quando chega a hora da verdade eles fogem".

Edgar Silva, candidato da CDU, diz que estes lugares - e outros "piores" como o Bairro da Nogueira, as Malvinas, Santo Amaro - são "outras ilhas dentro da ilha, é pobreza". A taxa de risco de pobreza ou de exclusão social na Madeira, a maior do país, é de 30,2% num universo de 250 mil habitantes. E este número tem provocado uma acesa polémica entre PSD/CDS e a oposição.

Miguel Albuquerque tem desvalorizado os 30,2% afirmando que "a realidade da economia real é diferente do risco de pobreza", que "os critérios de risco não são pobreza efetiva" e até encontra uma justificação: "Há ainda um conjunto de população, sobretudo mais idosa, que não descontou para a Segurança Social, que tem reformas baixas, que ainda são do tempo pré-autonomia".

Rui Barreto, líder do CDS e secretário regional da Economia, na leitura que fez da pobreza, afastou a ideia da "pré-autonomia" quando disse que "a economia está a crescer, estamos a produzir mais e a criar mais riqueza, mas, por outro lado, as desigualdades também estão a agravar-se".

"Como é que o presidente do Governo tem o desplante de falar em prosperidade, quando vemos muitas pessoas a passarem dificuldades para fazerem face ao aumento do custo de vida e dos juros dos empréstimos à habitação, sem que o Governo tome medidas para mitigar esta realidade?", questiona o candidato socialista Sérgio Gonçalves. Para além da região ter "a mais alta taxa de risco de pobreza e exclusão social, mesmo após transferências sociais", o líder do PS madeirense sublinha o facto de "na população empregada, um em cada cinco, mesmo trabalhando, corre o risco de ser pobre".

Nuno Morna, líder da IL-Madeira, acrescenta outro dado simplificando as contas: "Uma vez que mais de 40% dos madeirenses não pagam IRS, porque o seu rendimento os isenta disso, não é difícil calcular que a esmagadora maioria desses o que ganham é ordenado mínimo. E isto é indiciador de pobreza". Conclusão: "Considerando o nosso limiar da pobreza, 81 mil madeirenses estão em risco".

Afastado deste debate, a 750 metros de altitude, nas "zonas mais altas", o homem magro, de barba rala e olhar vivo, que ainda há pouco ajudou "um turista que chegou aqui e já não conseguia subir com o carro", resume o problema da pobreza numa frase: "Aqui somos esquecidos".

- Esquecidos?, pergunto.

"O Funchal é o desenvolvimento, o turismo, a zona hoteleira", diz apontando "lá para baixo", "mas aqui não é".

Uns segundos de pausa. Sorri. Respira fundo. Ajusta a gola da camisa e, olhando-me de frente, decide falar também em nome de "outros como eu", e sublinha o "eu", que vivem nas redondezas dos caminhos de Trapiche e Barreira. "Não conseguimos perceber como é que há tão pouco desenvolvimento nas zonas altas. Empataram milhões e milhões na cota 500 [uma circunvalação nas zonas altas] e agora está tudo parado", diz enquanto aponta na direção do que deveria estar e "não está".

"E saneamento, os esgotos não há em todo o lado, sabia? Aqui está resolvido, mas para aqueles lados ainda não. Não chega só ter água e luz", diz enquanto volta a ajustar a gola da camisa.

"Lá em baixo", a madrugada revela, na "zona velha", e já sem turistas na rua - os que não vão às "zonas altas sem desenvolvimento" -, uma cidade diferente. Um homem, magro, de tronco nu, aproxima-se. Pede-me cigarros. Dou-lhe uns quantos. As botas que tem calçadas estão presas por cordéis. As calças, de tão magro, estão seguras por um nó que deu no cinto. Pergunto-lhe como se chama. Não percebo o nome. Pergunto porque anda por ali àquela hora. Não percebo a resposta. Pergunto onde vai dormir. Aponta e gesticula para o fim da rua. Posso ver onde é? Diz que sim.

Enquanto caminhamos, fala sozinho, pára, grita, volta a andar, dá saltos, olha desconfiado para todos os lados. Percebo onde vai ficar. Um terreno rodeado por paredes grossas e velhas que parece servir de estacionamento. Não vai ficar sozinho. Há, pelo menos, mais três homens. A escuridão não permite perceber tudo.

Números

Dos 250 744 habitantes da região autónoma da madeira, 10 433 não sabem ler nem escrever.

16,5% da população tem o ensino superior.

Artur Cassiano | Diário de Notícias

Imagem do meio: Há 13 anos, uma enxurrada de lamas e pedras arrastou casas e carros, matando mais de 50 pessoas - © Helder Santos/Aspress

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