José Soeiro | Expresso | opinião
Os médicos têm razão nas suas reivindicações. O Estado tem dinheiro para satisfazê-las. Os cidadãos precisam que o Governo feche este acordo com os profissionais
São maratonas de reunião - e continuam. No momento em que escrevo, os representantes dos médicos queixam-se que várias das conclusões que resultaram do diálogo do passado domingo não apareceram afinal no documento escrito que o Governo apresentou na terça-feira. Também por isso, um acordo ainda está muito longe de poder ser alcançado.
E todavia, ao Governo não faltam motivos para ter feito uma opção diferente. A folga orçamental deste ano foi de mais de 4 mil milhões de euros, que se somam a mais de 3 mil milhões do ano passado. Medina surge até com a ideia de um “fundo” para acumular o "excedente" orçamental. Para o ministro das Finanças, o dinheiro que sobra ao Orçamento não pode sobretudo ser utilizado, palavras suas, “para a reivindicação do momento”, mesmo que esta seja a de salvar o SNS. Esta afirmação é todo um programa. O Estado tem dinheiro, a receita fiscal é superior à despesa, mas as Finanças não querem que o excedente dos nossos impostos seja utilizado na maior urgência que temos. E para a saúde nem era preciso todo o excedente ou a folga toda, bastava uma pequena parte. Mas nem assim.
O Serviço Nacional de Saúde é um dos legados mais preciosos da revolução e da democracia. Só que essa conquista esvazia-se cada dia em que mais de um milhão e meio de cidadãos é privado de médico de família e é uma miragem para quem espera meses ou anos por uma consulta de especialidade ou não sabe se terá a urgência aberta no seu distrito.
De entre os trabalhadores do Estado, os médicos são dos que mais têm perdido salário real, cerca de 30% nos últimos anos. Esta degradação das condições salariais tem empurrado muitos para o sector privado e para a emigração. Também por isto, há hoje serviços cujo funcionamento depende inteiramente de haver médicos a fazer 300, 400, 500 ou ainda mais horas extra por ano. Ou seja, a fazer muito acima das 150 horas de trabalho suplementar que a lei geral estabelece como limite máximo, rebentando com as condições de descanso e com qualquer possibilidade de conciliação da profissão com a vida pessoal e familiar. A escassez de médicos no SNS motiva ainda o recurso a tarefeiros, cuja despesa não é considerada “estrutural” e escapa ao défice, e que são pagos a valores muito superiores aos dos médicos do quadro, aos quais não se garante uma carreira que seja atrativa.
Por tudo isto, que é uma forma absurda de gerir o SNS, estou inteiramente ao lado dos médicos que rejeitam a lógica da perda salarial e das horas extra infinitas, que defendem o direito ao descanso, que querem ter mais tempo para consultas, cirurgias e exames.
Se Manuel Pizarro está interessado em salvar o SNS, se se preocupa realmente com os utentes, pode deixar de lado a chantagem que tem utilizado no seu discurso - como se o respeito por direitos laborais elementares limitasse o acesso dos cidadãos à saúde - e fazer o que lhe compete. Ou seja, abrir os cordões à bolsa, negociar uma carreira que fixe os profissionais, atualizar as grelhas salariais recuperando o poder de compra, criar um regime de exclusividade a sério e garantir tempos de trabalho razoáveis. Mas Pizarro já está a deixar passar o seu tempo para fazer parte de uma solução neste processo.
Se o SNS vier a acentuar sinais de colapso em novembro, tal como prognosticou o "CEO" Fernando Araújo, a responsabilidade será de quem tem vindo a impedir uma solução sensata. E não são os médicos, nem os seus representantes sindicais.
Os médicos têm razão nas suas reivindicações. O Estado tem dinheiro para satisfazê-las. Os cidadãos precisam que o Governo feche este acordo com os profissionais. Se Pizarro não o fizer, é porque escolheu. Mas se não celebrar este acordo, a escolha do Governo não será apenas contra os médicos: será contra uma exigência democrática que é de nós todos.
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