A crónica é uma paixão. Mas
também pode ser uma fraqueza de quem não é capaz de criar Literatura. Entre
arte e informação, os cronistas escolhem extravasar os sentimentos em palavras
alinhadas no modelo da mensagem informativa. Sou repórter por nascimento e
cronista pelo coração. Mas não de geração espontânea. Ganhei gosto pelo género
lendo monumentais textos de Ernesto Lara Filho e Bobela Mota. Na reportagem
segui sempre os ensinamentos do maior dos maiores, o siripipi de Benguela que
tanto gostava de fazer incursões ao Lobito e à Catumbela. Esse mesmo, Mano
Arnesto.
As minhas crónicas já salvaram
vidas dos outros e a minha. A cobertura que fiz da tomada de posse do Governo
de Transição, no final de Janeiro de 1975, salvou a vida ao general Nataniel
Mbumba, preso por agentes secretos de Mobutu na escadaria do Palácio da Cidade
Alta. Denunciei o facto no jornal português Diário de Notícias e na Emissora
Oficial de Angola (RNA). De Lisboa chegaram ordens, dadas pelo Presidente Costa
Gomes, para resgatarem imediatamente o líder dos “gendarmes catangueses”, o que
foi feito, com sucesso, pelo coronel paraquedista Heitor Almendra, responsável
pela segurança e a ordem em Luanda.
O poeta e jornalista António
Cardoso foi raptado por tropas de Mobutu e um dirigente da FNLA no seu local de
trabalho, a Emissora Oficia de Angla (RNA). Os meus editoriais explosivos e
incendiários mobilizaram toda a classe e salvaram-lhe a vida. O mesmo coronel
Heitor Almendra foi libertá-lo à sede central da FNLA na Avenida Brasil.
Um dia escrevi uma crónica sobre
os bailes no Sporting da Maianga. Do melhor que existia na Luanda asfaltada. O
título do texto era “Cuidado com o Cão e Comigo”. Contei a história da Miss
Maianga, uma mulher do outro mundo de tão bela e simpática. Naquelas festas os
basquetebolistas, altos e espadaúdos, tinham todo o sucesso junto das damas. Eu
ficava sempre por baixo. Farto dos insucessos fui comprar um casaco fardex de
linho branco sujo e apresentei-me no salão. Os basquetebolistas encomendavam-me
cervejas e gasosas, confundiam-me, propositadamente, com os criados de mesa.
Convidei a Miss Maianga para
dançar o xaxado e ela aceitou. Acabou a música e tocou uma rumba. Continuámos a
dançar. Depois um bolero di lento, mais romântico do que eu. E nós dançando
colados. A mamã da Miss Mainga bateu-me no ombro e rosnou: - Larga a menina ó
desencasacado. E eu larguei. A senhora parecia um leão da Rodésia mostrando os
dentes.
A mãe voltou a rosnar: Não
estejas embeiçada por este desencasacado vadio! Ela corou. Olhou-me com ternura
e pôs os olhos no chão. Ficámos namorados!
A leoa perseguia-me e um dia
disse-lhe: Perdeu o letreiro cuidado com o cão! Volte a colá-lo na testa. Ela
ficou furiosa e indultou-me. Retirei-me mas ainda atirei: Tenha cuidado comigo
sou mais feroz que o cão!
A Miss Maianga casou com um
tropozoide capitão da tropa. Quando ele ia para o mato matar camponeses
dava-lhe murros nos olhos. Ela ficava toda negra na cara e não saía à rua…
O tropozoide foi destronado
(estava sempre no mato a matar camponeses…) e ela depois amigou com um
funcionário do Banco de Angola. Tiveram quatro filhos e foram muito felizes.
A crónica foi publicada no Jornal
de Notícias do Porto. No dia seguinte fui chamado pela segurança à portaria,
alguém queria falar comigo. Desci e vi uma mulher pelo menos 100 pontos mais
bela do que a Miss Maianga. Apresentou-se como perita em Letras e atirou: -
Gostei muito da sua crónica, queria conhecê-lo. Está disponível para jantar
comigo hoje?
Eu respondi com ar grave e pose
importante: Lamento, mas só aceito convites para dormir com pequeno-almoço
incluído.
A beldade pediu um papel e uma
esferográfica ao segurança de serviço, escreveu o seu endereço e retirou-se com
uma deus muito alegre. Uma paixão. Fui habitar a sua casa e levei a minha
Hermes Baby. No início tudo bem. No terceiro dia, levantou-se ensonada e disse
com a voz entaramelada: Meu amor, vem para a cama, é tão tarde…
Às quatro da manhã regressava à
sala e dizia agreste: Não se pode dormir nesta casa. Vem para a cama!
Às seis da manhã a beldade
berrava: Isto é uma casa de gente, se queres fazer barulho vai para a garagem.
Isto da escrita é mesmo assim há
o gosto e o desgosto. Ao nono dia fui despejado mas continuei a escrever cartas
de amor para a minha paixão.
Anos mais tarde, andava de
reportagem e encontrei num largo do Cadaval o pintor Roberto Silva, aquele que
considero um dos maiores artistas plásticos de Angola, no primeiro lugar
do pódio (ex aequo) com Julião Félix Machado (séculos XIX e XX), ZAN e António
Ole (são os quatro mestiços…). Quando chegou de Angola, em 1976, foi alojado
pelo Arménio Ferreira nas instalações do Órgão Coordenador do MPLA para a
Europa, em Lisboa. Mas depois chegaram cadetes da Marinha que aos
fins-de-semana iam para o mesmo espaço. Eles jovens sedentos de farra. Ele
velho a precisar de espaço para pintar. Acabou por sair. Familiares do Conde
Paço D’Arcos, seu mecenas, levaram-no para um palacete no Cadaval.
Que se lixe a reportagem!
Passámos o resto do dia à bebida e à conversa. Bebemos vinho da região, daquele
que sai de uma torneira em madeira, directamente do barril. Até faz mijar azul!
E o Roberto desenhava os aperitivos no toalhete de papel, usando os dedos,
cinza e vinho. Guardei esses toalhetes alguns anos mas depois perdi-me deles.
Roberto, tens saudades de Luanda? Resposta: És mesmo quadrado! Nós nunca saímos
de Luanda!
Escrevi uma crónica sobre o nosso
encontro, que publiquei no Jornal de Notícias do Porto. Sabem o que deu? A
Câmara Municipal do Cadaval, através da vereação da Cultura, acaba de publicar
um livro sobre Mestre Roberto Silva tendo como pista a crónica. Já ganhei o meu
pedaço de pão.
Espero que a minha crónica de
ontem, onde demonstrei a ilegalidade da prisão do empresário Carlos São Vicente
também dê a sua libertação. Leiam com atenção. Libertem o filho do meu mestre,
jornalista Acácio Barradas. Ele está inocente! A acusação é falsa. O julgamento
ilegal!
* Jornalista