quinta-feira, 25 de maio de 2023

Angola | O PINTOR RESSUSCITADO DO ESQUECIMENTO – Artur Queiroz

Artur Queiroz*, Luanda

A crónica é uma paixão. Mas também pode ser uma fraqueza de quem não é capaz de criar Literatura. Entre arte e informação, os cronistas escolhem extravasar os sentimentos em palavras alinhadas no modelo da mensagem informativa. Sou repórter por nascimento e cronista pelo coração. Mas não de geração espontânea. Ganhei gosto pelo género lendo monumentais textos de Ernesto Lara Filho e Bobela Mota. Na reportagem segui sempre os ensinamentos do maior dos maiores, o siripipi de Benguela que tanto gostava de fazer incursões ao Lobito e à Catumbela. Esse mesmo, Mano Arnesto.

As minhas crónicas já salvaram vidas dos outros e a minha. A cobertura que fiz da tomada de posse do Governo de Transição, no final de Janeiro de 1975, salvou a vida ao general Nataniel Mbumba, preso por agentes secretos de Mobutu na escadaria do Palácio da Cidade Alta. Denunciei o facto no jornal português Diário de Notícias e na Emissora Oficial de Angola (RNA). De Lisboa chegaram ordens, dadas pelo Presidente Costa Gomes, para resgatarem imediatamente o líder dos “gendarmes catangueses”, o que foi feito, com sucesso, pelo coronel paraquedista Heitor Almendra, responsável pela segurança e a ordem em Luanda.

O poeta e jornalista António Cardoso foi raptado por tropas de Mobutu e um dirigente da FNLA no seu local de trabalho, a Emissora Oficia de Angla (RNA). Os meus editoriais explosivos e incendiários mobilizaram toda a classe e salvaram-lhe a vida. O mesmo coronel Heitor Almendra foi libertá-lo à sede central da FNLA na Avenida Brasil. 

Um dia escrevi uma crónica sobre os bailes no Sporting da Maianga. Do melhor que existia na Luanda asfaltada. O título do texto era “Cuidado com o Cão e Comigo”. Contei a história da Miss Maianga, uma mulher do outro mundo de tão bela e simpática. Naquelas festas os basquetebolistas, altos e espadaúdos, tinham todo o sucesso junto das damas. Eu ficava sempre por baixo. Farto dos insucessos fui comprar um casaco fardex de linho branco sujo e apresentei-me no salão. Os basquetebolistas encomendavam-me cervejas e gasosas, confundiam-me, propositadamente, com os criados de mesa.

Convidei a Miss Maianga para dançar o xaxado e ela aceitou. Acabou a música e tocou uma rumba. Continuámos a dançar. Depois um bolero di lento, mais romântico do que eu. E nós dançando colados. A mamã da Miss Mainga bateu-me no ombro e rosnou: - Larga a menina ó desencasacado. E eu larguei. A senhora parecia um leão da Rodésia mostrando os dentes. 

A mãe voltou a rosnar: Não estejas embeiçada por este desencasacado vadio! Ela corou. Olhou-me com ternura e pôs os olhos no chão. Ficámos namorados!

A leoa perseguia-me e um dia disse-lhe: Perdeu o letreiro cuidado com o cão! Volte a colá-lo na testa. Ela ficou furiosa e indultou-me. Retirei-me mas ainda atirei: Tenha cuidado comigo sou mais feroz que o cão! 

A Miss Maianga casou com um tropozoide capitão da tropa. Quando ele ia para o mato matar camponeses dava-lhe murros nos olhos. Ela ficava toda negra na cara e não saía à rua…

O tropozoide foi destronado (estava sempre no mato a matar camponeses…) e ela depois amigou com um funcionário do Banco de Angola. Tiveram quatro filhos e foram muito felizes.

A crónica foi publicada no Jornal de Notícias do Porto. No dia seguinte fui chamado pela segurança à portaria, alguém queria falar comigo. Desci e vi uma mulher pelo menos 100 pontos mais bela do que a Miss Maianga. Apresentou-se como perita em Letras e atirou: - Gostei muito da sua crónica, queria conhecê-lo. Está disponível para jantar comigo hoje?

Eu respondi com ar grave e pose importante: Lamento, mas só aceito convites para dormir com pequeno-almoço incluído.

A beldade pediu um papel e uma esferográfica ao segurança de serviço, escreveu o seu endereço e retirou-se com uma deus muito alegre. Uma paixão. Fui habitar a sua casa e levei a minha Hermes Baby. No início tudo bem. No terceiro dia, levantou-se ensonada e disse com a voz entaramelada: Meu amor, vem para a cama, é tão tarde…

Às quatro da manhã regressava à sala e dizia agreste: Não se pode dormir nesta casa. Vem para a cama!

Às seis da manhã a beldade berrava: Isto é uma casa de gente, se queres fazer barulho vai para a garagem. 

Isto da escrita é mesmo assim há o gosto e o desgosto. Ao nono dia fui despejado mas continuei a escrever cartas de amor para a minha paixão. 

Anos mais tarde, andava de reportagem e encontrei num largo do Cadaval o pintor Roberto Silva, aquele que considero um dos maiores artistas plásticos de Angola, no  primeiro lugar do pódio (ex aequo) com Julião Félix Machado (séculos XIX e XX), ZAN e António Ole (são os quatro mestiços…). Quando chegou de Angola, em 1976, foi alojado pelo Arménio Ferreira nas instalações do Órgão Coordenador do MPLA para a Europa, em Lisboa. Mas depois chegaram cadetes da Marinha que aos fins-de-semana iam para o mesmo espaço. Eles jovens sedentos de farra. Ele velho a precisar de espaço para pintar. Acabou por sair. Familiares do Conde Paço D’Arcos, seu mecenas, levaram-no para um palacete no Cadaval.

Que se lixe a reportagem! Passámos o resto do dia à bebida e à conversa. Bebemos vinho da região, daquele que sai de uma torneira em madeira, directamente do barril. Até faz mijar azul! E o Roberto desenhava os aperitivos no toalhete de papel, usando os dedos, cinza e vinho. Guardei esses toalhetes alguns anos mas depois perdi-me deles. Roberto, tens saudades de Luanda? Resposta: És mesmo quadrado! Nós nunca saímos de Luanda!

Escrevi uma crónica sobre o nosso encontro, que publiquei no Jornal de Notícias do Porto. Sabem o que deu? A Câmara Municipal do Cadaval, através da vereação da Cultura, acaba de publicar um livro sobre Mestre Roberto Silva tendo como pista a crónica. Já ganhei o meu pedaço de pão.

Espero que a minha crónica de ontem, onde demonstrei a ilegalidade da prisão do empresário Carlos São Vicente também dê a sua libertação. Leiam com atenção. Libertem o filho do meu mestre, jornalista Acácio Barradas. Ele está inocente! A acusação é falsa. O julgamento ilegal!

* Jornalista

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