quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

Angola | Desumanos e Violadores de Direitos -- Artur Queiroz

Artur Queiroz*, Luanda

Os hotéis da empresa AAA Activos LDA. vão dar muito que falar e não apenas dentro das fronteiras de Angola. O empresário Carlos São Vicente apresentou uma queixa na ONU contra o Estado, no ano de 2021. A Justiça é cega por isso não pode andar depressa. Correrias são para os ladrões quando fogem dos assaltos. A Justiça, pela sua natureza, é lenta. Porque quem julga precisa de ponderação e de eliminar todas as dúvidas. 

A “privatização” dos hotéis, que já são de uma empresa privada, configura uma burla de Estado. Um desmando com cobertura de decreto presidencial, o que atira com o processo para as raias do banditismo político. Como o processo vai terminar ninguém sabe. Mas já se sabe que a queixa do empresário Carlos São Vicente na ONU tem decisão e em breve vai ser do conhecimento público. E pela primeira vez desde 11 de Novembro de 1975, o Estado Angolano vai ser apontado como responsável pelo tratamento desumano a um cidadão nacional. E violar direitos fundamentais. 

Quem já leu o texto da ONU sobre a matéria garante que é a maior derrota moral, legal, política e diplomática do Presidente João Lourenço. O Poder Judicial não fica de fora. O que é grave. Porque o Presidente da República sai em 2027. Mas os Tribunais e as magistraturas continuam. Não mudam de titulares de cinco em cinco anos. Magistradas e magistrados judiciais só devem obediência à Lei. Nem de Deus recebem ordens quanto maios de titulares de cargos que no regime democrático são sempre a prazo. Passageiros.

A decisão da ONU tem de servir de lição a todos os detentores do poder político, eleitos ou nomeados. Mas também aos que julgam em nome do Povo nas salas dos Tribunais. O processo que conduziu à queixa do empresário Carlos São Vicente tem obrigatoriamente de impedir, no futuro, farsas judiciais. Condenações nulas e ilegais. Um não sonoro e indubitável a prisões arbitrárias como aquela que o queixoso está a sofrer no seu país, que tem de ser um Estado Democrático e de Direito, com respeito escrupuloso pela separação de poderes, uma regra de ouro da Democracia.

Aguardemos pelo documento da ONU que põe a nu os abusadores e violadores de direitos fundamentais. A desumanidade de políticos que não são capazes de domar a ambição. Os baixos sentimentos que alimentam a vingança e a inveja.

Um aviso necessário. Nas últimas eleições uma parte substancial do eleitorado do MPLA não foi votar. Ou votou branco e nulo. Nas próximas eleições, se os desmandos continuarem, se a desumanidade for regra, se os direitos fundamentais continuarem a ser violados, não há operações de cosmética que convençam os eleitores a confiar nos que estão apostados em atirar com o MPLA para o abismo. 

As mudanças recentes decididas pelo Bureau Político merecem uma palavra. Rui Falcão é um grande político, com provas dadas. Enquanto governador da província de Benguela foi a voz do seu povo e não de quem continua a ver Angola como um gabinete ministerial ou um palácio presidencial. Recusou ser a voz dos que insistem em tratar Angola como se fosse um país que nasceu no dia em que eles chegaram ao poder. Como secretário do Bureau Político do MPLA para a Informação, Rui Falcão foi uma voz competente e confiável. E o rosto do MPLA que é o Povo. O MPLA que lutou desde a sua fundação contra todas as forças de opressão. O MPLA anti imperialista, anti colonialista e anti tribalista.

Virgílio de Fontes Pereira é um dos mais sábios políticos angolanos. Deu o seu lugar a outro camarada na direcção do Grupo Parlamentar do MPLA. Melhor do que ele é impossível. Mas se o Bureau Político decidiu a sua substituição é porque o substituto está à altura. As sucessivas eleições provaram que o MPLA tem quadros de altíssimo valor e os eleitores confiam neles. 

A Oposição, ou o que resta dela, pouco mais de um ano depois das eleições está esgotada. Anda perdida e com falta de memória. Em relação à UNITA a situação é grave, porque estamos perante a falência pura e dura. Insolvência política sem possibilidade de recuperação. Mas outras forças, encostadas ou não aos falidos, também não mostram grande vitalidade democrática. No que diz respeito à memória também faliram.

Nesta situação difícil está a minha amiga Cesaltina Abreu. Numa entrevista televisiva disse que “no tempo do colonialismo nunca vi ninguém comer nos contentores do lixo”. Uma verdade insofismável. Mais alta que o Morro do Moco. Mas tem o seu quê.

A minha amiga Tina nunca viu ninguém comer dos contentores de lixo no Huambo porque nos bairros periféricos da cidade de Nova Lisboa (Huambo) não existia recolha de lixo. E na zona urbana existia, mas os negros não podiam entrar na cidade de asfalto à hora em que os moradores punham os sacos de lixo à porta, para serem recolhidos pelos carros da Câmara Municipal. Nessa altura não existiam contentores de lixo como hoje. E a cidade de Nova Lisboa era a que mais praticava o apartheid não declarado. Ambos sabemos do que estou a falar.

Em Luanda a situação era ainda mais grave. Os negros só podiam entrar na cidade de asfalto munidos com um “cartão de trabalho”. E se algum negro fosse apanhado à noite nas ruas da cidade corria o risco de ser espancado, preso ou morto. O lixo era metido em sacos e colocado à porta das casas ou dos prédios, à noite. E bem fechados para os cães vadios e gatos não espalharem os resíduos domésticos pelo chão. Os carros da Câmara Municipal recolhiam os sacos e depositavam-nos na Lixeira do Sambizanga. A céu aberto!

Um dia fiz uma reportagem na lixeira de Luanda. Chusmas de Mamãs e crianças catavam o lixo. Apanhavam tudo o que desse dinheiro, sobretudo metais, mas também restos de comida. Seres humanos colhendo flores de fome no jardim do lixo.

 A reportagem foi atirada para o lixo pelos funcionários da comissão de censura. Nenhum luandense viu os angolanos comendo na lixeira. O lixo era queimado quando atingia uma certa altura. As pessoas não podiam comer cinzas. Toda a região era coberta de fuligem e fumaça espessa. Um cheiro nauseabundo espalhava-se pelo ar. Não existam contentores. A Tina não podia ver ninguém comer num sítio que não existia. Nem leu a minha reportagem, ela também transformada em lixo, para não atormentar as boas consciências!

* Jornalista

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