Cai mais um governo democrático. Face a um Ocidente cada vez mais desigual, governo do PS acomodou-se e assistiu ao avanço da desigualdade e das desilusões e abriu espaço para o neofascismo. Resultado é novo alerta ao Brasil de Lula
Antonio Martins* | Outras Palavras | # Publicado em português do Brasil
Certas derrotas são especialmente penosas. Em abril próximo, Portugal viverá os 50 anos da Revolução dos Cravos sob um governo de direita e forte pressão de um partido neosalazarista. Por nove anos, o país foi, junto com a Espanha, um tímido oásis, numa Europa onde avançam forças políticas ultracapitalistas e xenófobas. Ontem, o experimento foi interrompido.
Em eleições parlamentares antecipadas, o Partido Socialista (PS, de centro-esquerda) e a coalizão autodenominada Aliança Democrática (AD, de direita) chegaram a um virtual empate. Cada um obteve em torno de 30% dos votos e 80 representantes na Assembleia da República1. Mas em terceiro lugar apareceu o Chega, de ultradireita, que alcançou mais de 1 milhão de votos (18%) e quadruplicou sua bancada, agora com 48 parlamentares. Já o Bloco de Esquerda (BE) e a CDU (que inclui o Partido Comunista-PCP), encolheram, receberam menos de 5% dos sufrágios e ficaram reduzidos respectivamente a 5 e 4 cadeiras. A partir desta terça-feira (12/3), o presidente Marcelo Rebelo de Sousa ouvirá os líderes dos partidos e “indigitará” [pré-indicará] o futuro primeiro-ministro, encarregando-o de formar um novo governo. Tudo indica que será o líder da AD. Ou num governo sem maioria absoluta, ou – muito pior – em aliança com o Chega.
A ascensão e o declínio do progressismo português, a partir de 2015, são consequência de uma tentativa incompleta de enfrentar as políticas neoliberais. Enquanto este enfrentamento perdurou, ele produziu vitórias eleitorais e entusiasmo. A partir do momento em que fraquejou, ficou aberto o caminho para as forças de ultradireita, que exploram em todo o mundo a crise da democracia, avançassem sobre Portugal. Por isso, há um paralelo nítido com o Brasil – onde ainda não está claro se o governo Lula poderá melhorar de modo substantivo as condições de vida da maioria, ou se atolará na busca do “ajuste fiscal” desejado pelos mercados financeiros e executado pelo Ministério da Fazenda.
Poucos países sofreram como
Portugal as consequências da “austeridade” imposta pela União Europeia após a
crise financeira de 2008. Os bancos foram salvos; mas os gastos públicos
severamente cortados; e o Estado de bem-estar social, devastado. Ataques aos
direitos sociais espalharam entre a juventude o desemprego e, em especial, o
trabalho precário. Tiveram como resposta duas impressionantes manifestações,
convocadas quase espontaneamente, por pequenos grupos de ativistas. Em março de
2011, o protesto Geração à Rasca colocou 300 mil pessoas nas ruas, em Lisboa e no Porto. Em
setembro de 2012, convocados pelo Que se Lixe a Troika, mais de 1
milhão marcharam, em diversas cidades, ao som de “Grândola, Vila Morena”, a
canção que deflagrara, em
Mas passaram-se três longos anos
até que o repúdio à “austeridade” repercutisse no sistema político. Deu-se
quase por acaso. Socialistas, Bloco de Esquerda e comunistas concorreram
separados, e com programas muito distintos, às eleições parlamentares de
Por algum tempo, ela produziu mudanças reais na política portuguesa. Houve aumento dos salários acima da inflação (em especial do mínimo), recuperação das aposentadorias, alguma regulamentação e proteção do trabalho precário, melhora na Saúde pública. As privatizações foram interrompidas e, em um caso emblemático (o da TAP) revertidas. No novo ambiente, despontaram novas mobilizações sociais, em especial antirracistas e feministas – mais tarde interrompidas pela pandemia.
Mas as forças duras da globalização interromperam esta breve primavera portuguesa. A União Europeia (UE) bloqueou o investimento público e a recuperação mais efetiva dos serviços sociais. Os principais retrocessos na legislação trabalhista jamais foram revertidos. Pressionado, o PS enquadrou-se aos ditames de Bruxelas. Em 2019, quando houve novas eleições parlamentares, já não havia clima para reeditar a Geringonça. Os socialistas governaram sozinhos, contando com apoio apenas pontual da esquerda. Em 2022, uma divergência grave sobre o Orçamento voltou a afastar os três partidos e forçou a convocação de eleições antecipadas, que novamente resultaram num governo solo do PS.
Então, já despontava o Chega, um produto da onda de ultradireita que, no rastro de Trump, avançava pelo Ocidente. Em Portugal, duas de suas características marcantes são racismo e, em especial, xenofobia. Num país em que os serviços públicos jamais chegaram a se recuperar, o partido vê nos imigrantes (entre eles, os brasileiros, vítimas de violência crescente) o bode expiatório capaz de afastar o debate sobre novas políticas.
O mandato final dos socialistas, comandado pelo primeiro ministro Antonio Costa, foi melancólico, aponta o economista marxista Michael Roberts no blog The Next Recession. Como ocorre hoje no Brasil, o governo acreditou no grande capital privado como mola para o avanço da economia. Medidas desregulatórias buscaram atrair fundos estrangeiros – em especial para o mercado imobiliário e uma onda de turismo que vê em Lisboa um destino hype. Sempre em busca de capitais externos, o governo lançou os golden visas, que concedem direito de residência permanente a estrangeiros que investem mais de 500 mil dólares em imóveis; e vistos favorecidos para nômades digitais interessados em estabelecer no país sua base de trabalho.
Em vez de solução, o dinheiro tornou-se parte crucial do problema, continua Roberts. Nas áreas centrais das cidades, milhares de portugueses foram expulsos das casas que alugavam – agora oferecidas aos turistas estrangeiros, em locações comerciais. Há 48 mil imóveis nestas condições em Lisboa, e 750 mil em todo o país. Os últimos governos nada fizeram para enfrentar a situação, para resgatar a saúde pública (empobrecida pela pandemia) ou para sustentar a recuperação do poder de compra dos trabalhadores. O salário médio em Portugal é o sexto mais baixo, entre os 38 países da OCDE — mas o o país teve o maior aumento do grupo, nos preços dos imóveis. Ao apelar para a xenofobia, o Chega tem à sua frente um prato cheio.
Antonio Costa renunciou em 7 de novembro passado, num episódio muito mal explicado até hoje. Numa operação para investigar supostos atos corruptos, relacionados aos investimentos em transição energética, o Ministério Público apreendeu documentos em seu gabinete. O primeiro ministro negou “a prática de qualquer ato ilícito ou censurável”. Ainda assim, contraditoriamente, afirmou que sua permanência no posto “se fez impossível” – e deixou o posto, sem que nenhuma lei ou norma o obrigasse a isso. Dias depois, o mesmo Ministério Público afirmou que a investigação devia-se a ter confundido o primeiro-ministro com um homônimo…
O presidente Marcelo Rebelo de Sousa, um conservador, aceitou de pronto a demissão. Poderia nomear um novo primeiro-ministro, mas preferiu convocar novas eleições. Elas trazem mais um resultado amargo. Mas mostram: no Ocidente, as forças democráticas e, em especial a esquerda, têm de mudar de rumo, se não quiserem ser tragadas pela onda de ultradireita.
Notas:
1 - Os dados ainda não são definitivos, pois faltam apurar os votos dos portugueses no exterior, que elegem quatro deputados. Atéàs 18h de 11 de março, a AD tinha 29,49% dos votos, e 79 cadeiras; o PS, 28,66% e 77 assentos.
* Antonio Martins é editor de Outras Palavras
Imagem: Terremoto de Lisboa em 1755/Arquivo Aventuras na História
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