Artur Queiroz*, Luanda
O Manecas, crioulo da Ilha do Fogo, tinha familiares no Bairro Operário. Ele vivia na CAOP e eu na Vila Clotilde. Aos sábados visitávamos os parentes e assaltávamos, à pato, as farras nos quintalões. À medida que a soldadesca chegava a Angola, as meninas eram importunadas porque os tropozoides achavam que ali todas as mulheres eram prostitutas. O qual não. Um dia as primas Xandó e Guiduxa queixaram-se de abusos. Tomamos uma medida radical. Vamos atacar os abusadores, de emboscada!
Ao lado do Colégio dos Maristas, na Avenida dos Combatentes (Comandante Valódia), existia um barbeiro que foi ciclista. Até ganhou uma Volta a Portugal. O homem vendia uns “boxes de ferro” que se metiam nos dedos e cada borno era sangue a jorrar. Comprámos quatro, um para cada mão. No primeiro sábado a seguir à transacção comercial fomos visitar os parentes cabo-verdianos. E montámos a emboscada. Guiduxa e Xandó ficavam à porta, conversando. E nós escondidos atrás da porta do quintalão. Se chegasse alguém que incomodasse as meninas, nós saíamos e atacávamos com as mãos de ferro.
Todos os sábados, à noitinha, partíamos para as emboscadas. A cada murro com os punhos de ferro os tropozoides cuspiam sangue e dentes. Foi assim que ganhámos a fama de Dentistas da CAOP. Ficámos tão famosos que até fomos entrevistados para a rádio da Rua Fernão Lopes que falava para o mundo.
Nas férias escolares ia com meu Pai ao Puri, Kimbele, Kangola, Macocola, Kalandula e Malanje. Era a rota da permuta de mercadoria por salalas de bombô, classificado como o melhor do mundo. Nesse tempo Malanje era um círculo sanitário, como Congo, Bié, Benguela e Huíla. Também existia o Círculo Autónomo de Luanda. Em toda a colónia existiam 85 médicos exercendo as funções de delegados de saúde. No Congo Português o chefe dos Serviços Sanitários residia na cidade do Uíje, era Jacinto Vasconcelos. Foi substituído por Manuel Martins E existia um enfermeiro, o senhor Alberto Nunes que tinha três auxiliares.
Na vila do Songo trabalhava o enfermeiro Paulo Bunga que também tinha três auxiliares. No Bembe o enfermeiro era António Pereira da Silva mais três auxiliares. No Lucunga trabalhava o enfermeiro Domingos Santos e um auxiliar. No Negage tínhamos o enfermeiro Cordeiro, à frente da leprosaria. Um dia foi transferido e nunca mais apareceu um substituto.
Higiene oral era coisa que não existia. Truque de branco. E dentistas contavam-se pelos dedos das mãos em toda a colónia. Por isso o meu dentista foi o Velho Tuma, pastor de cabras, que me extraía os dentes de leite com um fio de sisal. Poucos quimbandas aceitavam prestar esse serviço, doloroso, porque não existia anestesia. Para extrair um dente era necessário manietar os pacientes.
Os primeiros “dentistas” eram membros do clero. Mas a Igreja proibiu essa actividade. Durante séculos, barbeiros acumularam a sua actividade com a extracção de dentes, a sangue frio. Cenas horripilantes nas feiras, praças e adros das igrejas. Não admira que em Angola os poucos enfermeiros colocados no interior da colónia extraíssem dentes. Mas não eram cirurgiões-dentistas. No Brasil, ainda colónia portuguesa, existia um oficial das forças armadas, alferes Joaquim José da Silva Xavier, perito a extrair dentes. Chamavam-lhe o Tiradentes. Participou na Inconfidência Mineira com vista à Independência Nacional. Foi enforcado em 21 de Abril de 1792 e seu corpo esquartejado. Padres tiradentes, barbeiros tiradentes, pastores tiradentes, ferradores tiradentes, enfermeiros tiradentes.Em Luanda existia um enfermeiro especializado no tratamento de blenorragias. Aplicava seis injecções aos doentes e já está. Mas recusava tratar os infectados isoladamente. Exigia que lhe levassem a parceira para tratar ao mesmo tempo os dois. Ninguém lhe chamava enfermeiro urologista. Chamavam-lhe o Muloji dos Esquentamentos.
Luís dos Passos deu uma entrevista onde mostrou, de uma forma exuberante, a sua apetência para a fabulação e a mentira pura e dura. Um mitómano avariado. Disse coisas gravíssimas. Insultou o General Higino Carneiro (encomenda?). Como falsificou a História Contemporânea de Angola escrevi um texto onde denuncio as aldrabices. Nesse contexto de combate à fabulação e mentira, escrevi que seu pai, honrado enfermeiro, não era dentista ainda que tenha exercido essa actividade. Alguns dos seus parentes, em vez de me agradecerem, emitiram um “comunicado oficial” no qual me atacam! O documento circula nas redes do chefe Miala. Leiam:
Ao Sr. Artur Queiroz
Circula nas redes sociais um texto de sua autoria intitulado "Os Mártires da Memória", em que a dado passo se diz, referindo-se ao pai de Luís dos Passos, que o mesmo " era enfermeiro, nunca foi dentista. Mas como em Angola existiam poucos, o senhor provavelmente extraiu alguns dentes a doentes desesperados".
Não sabemos que fontes o Senhor usou para fazer tal afirmação, destituída de qualquer fundamento, para além de desrespeitosa da memória do insigne dentista Cardoso, como viria a ser largamente conhecido em todo o então distrito de Malanje. Bastaria, se quisesse falar com propriedade, consultar pessoas que viveram em Malanje na década de sessenta, muitas das quais felizmente ainda vivas, mesmo tratando-se de, como diz, "doentes desesperados" que tivessem recorrido aos préstimos do enfermeiro-dentista Cardoso. Aliás, interrogamo-nos quem é o senhor, se alguma vez esteve em Malanje na década de sessenta e se conhece ou conheceu gente que não tivesse conhecido ou, no mínimo, ouvido falar do nosso dilecto tio, o dentista Cardoso.
De qualquer modo, vimos em nome da verdade, dizer que Sebastião dos Santos Cardoso, nosso tio, foi sim enfermeiro-dentista com consultório frequentado, na década de sessenta, em Malanje, por destacadas figuras da sociedade colonial de então.
Luanda, 25 de Abril de 2024. Apolinário Cardoso, Gaspar Ferreira dos Santos Cardoso, Júlia Cardoso Pedrosa, Boaventura dos Santos Cardoso e José Ferreira Cardoso.
Infelizmente, muitos pacientes só tinham mesmo enfermeiros abnegados a responder às suas necessidades de saúde. Tal como temos parteiras tradicionais que ajudam as Mamãs a “nascer”. Onde não há médicos obstetras, anestesistas e pediatras, enfermeiras-parteiras e unidades de saúde à altura, ainda bem que há quem ajude as Mamãs a “terem uma boa horinha”. Mas devemos fazer tudo para que os enfermeiros façam enfermagem e haja saúde materno-infantil em todos os recantos de Angola. Partos fora das maternidades, nunca.
Estes comunicados servem para me afastarem do essencial. Desconseguem. O Presidente João Lourenço discursou noa cerimónia dos 50 anos do 25 de Abril. Lá veio ele com a ladainha da guerra da Ucrânia. Totalmente fora da caixa. Mas sua excelência lá sabe por que razão repete até à náusea esse recado. Aproveito para repudiar os insultos dirigidos ao Chefe de Estado por uns quantos energúmenos arregimentados pelos sicários da UNITA. Para esses tenho uma notícia. João Lourenço foi eleito com 52 por cento dos votos expressos nas eleições de 2022. Não é um ditador, mesmo que queira. O MPLA não consente.
A intervenção de Carlina Cerqueira, Presidente da Assembleia Nacional a propósito do 25 de Abril, foi certíssima: “Essa efeméride produziu a liberdade política em Portugal e o acesso à independência das ex-colónias em África, falantes da língua portuguesa, e à autodeterminação dos respetivos povos. Assim, esta comemoração não é apenas um património de Portugal, sendo também um momento revelador de um tempo de independência, liberdade e de autodeterminação de Angola”.
O 25 de Abril é património do Povo Português mas também dos Povos de Angola, Guiné-Bissau, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Moçambique e Timor Leste. Agostinho Neto disse isso de uma forma lapidar no discurso de encerramento do Acordo de Alvor: “O Movimento das Forças Armadas (Capitães de Abril) é o quarto movimento de libertação de Angola”-
Apesar dos comunicados da “família Cardoso” e do médico dos rins Matadi Daniel, não me alheio dos ataques brutais desferidos contra o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa por ter afirmado que Portugal tem de assumir todos os malefícios do colonialismo e, se for caso disso, reparar os crimes cometidos contra o Povo Angolano na era colonial e até depois.
Não gosto nada dessa personagem baptizada de Tio Célito. Mas tenho de lhe dar os parabéns. Quero que Portugal devolva tudo o que pertence ao Povo Angolano, desde documentos a instrumentos musicais. Conheci os museus de Angola, Congo e Dundo. Portugal tem de devolver tudo o que foi levado dessas instituições antes da Independência Nacional. Portugal tem de pedir perdão pelo esclavagismo. Pelo colonialismo. Pela guerra colonial. Por ter apoiado a agressão zairense e sul-africana já depois do 25 de Abri, de 1974.
Portugal tem de pedir perdão pelos crimes hediondos cometidos pelas milícias de colonos na Baixa de Cassanje. Em Luanda, no 4 de Fevereiro. Na Grande Insurreição no Norte em 15 de Março de 1961. Portugal tem de pedir perdão por ter manobrado contra a Independência Nacional. Por não ter reconhecido a República Popular de Angola. Por não estar presente nas cerimónias da Proclamação proferida por Agostinho Neto. Ainda não o fez. E esse atraso só não tem consequências graves porque a generosidade do Povo Angolano é infinita.
* Jornalista
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