segunda-feira, 7 de outubro de 2024

Não há paz para oferecer

Margarida Cardoso, jornalista | Expresso (curto)

Bom Dia!

Num ano, 85% dos edifícios escolares em Gaza foram atingidos ou danificados por bombardeamentos. Mais do que um simples número, as paredes destruídas, os tetos caídos, os buracos abertos no chão das salas de aula mostram bem como tudo mudou por ali desde 7 de outubro de 2023.

Doze meses depois de militantes do Hamas e outros grupos armados palestinianos entrarem em Israel para uma série de ataques que mataram 1.230 pessoas e fizeram 252 reféns, “a guerra” prometida na reação imediata do Governo de Benjamin Netanyahu está instalada na região. A resposta de Israel contabiliza 42 mil mortos, 100 mil feridos, 2 milhões de deslocados só em Gaza, mas 97 dos reféns continuam nas mãos do Hamas e muitos deles já estarão mortos.

A cada dia que passa, a crise fica mais grave. O rastilho alastra de Gaza e da Cisjordânia ao Líbano, à Síria, ao Iémen, ao Iraque, ao Irão. Na luta com o Hamas e o Hezbollah, há sete frentes de guerra, assume Israel. É verdade que o chefe do estado maior do exército israelita já declarou vitória sobre o braço armado do Hamas em carta enviada aos seus soldados, mas deixou, também, um aviso: “Esta é uma guerra de longa duração”.

A esperança esvai-se. Não há paz para oferecer. “Nas atuais circunstâncias, o problema Médio Oriente não tem solução”, afirma o embaixador e antigo ministro dos Negócios Estrangeiros Martins da Cruz. “É assim desde a independência de Israel, em 1948, seguida da invasão do território, logo no dia seguinte (pelo Egito, Jordânia, Síria e Iraque)”, acrescenta.

Num breve resumo destes 76 anos, Martins da Cruz recorda como “todas as tentativas para resolver o problema falharam, dos Acordos de Camp David (1978), à Conferência de Madrid (1991), aos Acordos de Oslo (1993) e, mais recentemente, aos Acordos de Abraão”.

Já assinado com os Emirados Árabes Unidos, Bahrein, Sudão e Marrocos, este acordo para a normalização de relações entre Israel e países árabes e muçulmanos estava em fase de conclusão com a Arábia Saudita em outubro do ano passado. “O grande objetivo do ataque do Hamas foi precisamente impedir isso. Estamos a falar do país onde estão os dois principais locais sagrados do Islão, Meca e Medina”, comenta.

“Em sete décadas, Israel já invadiu seis vezes o Líbano. O padrão é sempre o mesmo. Entra, executa as suas ações militares e sai para recomeçar uns anos depois. Em Gaza é a mesma coisa”, sublinha o antigo embaixador de Portugal no Cairo e nas Nações Unidas no momento em que os sinais de radicalismo e de anti-semitismo aumentam nas manifestações pró-Palestina um pouco por todo o mundo, como aconteceu este fim-de-semana em Washington, onde um jornalista incendiou o braço esquerdo “pelas 10 mil crianças de Gaza que perderam um membro”.

Se há um elemento surpresa neste conflito para Victor Ângelo, secretário-geral adjunto das Nações Unidas com Kofi Anan e Ban Ki-moon, não é tanto o factor tecnológico, visível na explosão de pagers e walkie-talkies no Líbano ou na forma como Israel com a ajuda de alguns aliados, em especial Estados Unidos, Reino Unido e Jordânia, conseguiu intercetar há uma semana 99% dos mísseis lançados pelo Irão contra o seu território. “A maior surpresa é Israel já não ouvir a Casa Branca e estar a ir muito além do que diz a administração Biden, com o primeiro-ministro Netanyahu a colocar a sua sobrevivência política acima da aliança com os EUA, vital para Israel”, declara.

Como Martins da Cruz, Victor Ângelo não vê solução no horizonte. “O que temos no curto prazo é uma séria tendência de agravamento até pelas eleições presidenciais de 5 de novembro nos EUA. Netanyahu tudo fará para complicar as coisas aos democratas e tentar garantir a vitória de Donald Trump, que já aceitou o ataque a instalações nucleares no Irão. O aumento da pressão no Líbano é um sinal claro disso mesmo”, comenta ainda à espera da resposta do Governo de Israel ao ataque do Irão, num momento em que as sondagens no país são favoráveis ao atual primeiro-ministro.

“Se amanhã os EUA quisessem resolver o conflito, bastaria dizerem publicamente que deixavam de apoiar militarmente Israel, mas sabemos que isso não vai acontecer”, refere.

Para haver paz bastaria, também, “todos respeitarem a Carta das Nações Unidas”, mas o Conselho de Segurança da ONU “não funciona devido à forte divisão entre os seus membros. E a fratura entre EUA, Rússia e China ainda vai aumentar”, antecipa.

“Tivemos pela primeira vez um país membro das Nações Unidas (Israel) a declarar o secretário-geral da organização persona non grata”, sublinha numa referência direta a António Guterres, um dos nomes indicados para o Prémio Nobel da Pazproibido de entrar em Israel com a alegação de que “não condenou inequivocamente” o ataque do Irão, apesar de repetir apelos ao fim do “derramamento de sangue”.

Martins da Cruz deixa uma outra nota sobre sobre a ONU, “incapaz de fiscalizar uma resolução do seu Conselho de Segurança, de 2006, e garantir a desmilitarização de uma faixa de 29 km, que não é mais do que a distância de Lisboa a Sintra, entre o rio Litani e a Linha Azul (fronteira de Israel), apesar de ter lá 10 mil capacetes azuis”.

E o que dizer do posicionamento de Portugal, com um escritório de representação em Ramallah, na Cisjordânia, onde está a Autoridade Palestiniana? Victor Ângelo considera haver “algo de estranho” na política externa do país e justifica: “Não reconhecemos o Estado da Palestina, mas temos uma embaixada da Palestina em Lisboa”.

Numa guerra que pode acompanhar ao minuto no Expresso, vale a pena ouvir o podcast O Mundo aos seus Pés, para perceber as motivações dos beligerantes, e ler o relato de AbdAlwaha, um palestiniano de 28 anos, conhecer “a luta diária pela sobrevivência” da sua família há quase um ano, perceber que ainda acredita na paz, como partilha com a minha colega Margarida Mota. E vale a pena ler o ensaio da investigadora Ana Santos Pinto para não cair na tentação de fazer skroll à questão palestiniana.

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FRASES

A prioridade é procurar uma solução política e suspender a entrega de armas para combater em Gaza
Emmanuel Macron
, presidente francês, numa entrevista citada pelo Le Monde

Lisboa já não é a cidade onde crescemos
Dino D´Santiago, músico, e o “sussurro amargo” ouvido no “último adeus ao Pina, um homem de sonhos”.

Se (Montenegro) ceder mais no IRC estará a abdicar do programa de Governo
Marques Mendes, no seu espaço semanal de comentário na SIC

O QUE ANDO A VER E A LER

Nos próximos dias, é tempo de marionetas. O Festival Internacional de Marionetas do Porto invade diferentes palcos da cidade, entre 11 e 20 de outubro, para celebrar os seus 35 anos e a triologia “Existir. Resistir! Desistir…”. Para o espetáculo inicial, a organização trouxe do Líbano “as hábeis mãos da companhia Collectif Kahraba” com a proposta de “uma forma muito acessível, mas simultaneamente bela, de repensarmos questões ancestrais que têm a ver com a nossa ligação à terra e aos animais, e à nossa história comum através de uma matéria tão primordial como o barro”.

Partilho, também, a sugestão de leitura do Tiago Serra Cunha, meu colega na delegação Norte do Expresso: “Na contracapa da edição em inglês de Azul de Agosto, uma citação do autor Stuart Kelly, entre os habituais 'blurbs' que enchem as capas dos livros, diz que Deborah Levy escreve “quase literalmente como um sonho”. É bastante verdade. Editado em Portugal em julho, August Blues, no título original, é um livro curto mas cheio, com uma escrita fluída que nos move entre o presente e o passado numa dança equivalente à das mãos de um pianista que flutuam sobre as teclas.

A comparação atrás não é só floreado: a história segue a pianista Elsa M. Anderson, que inesperadamente abandona o palco a meio de uma atuação. O que acontece a seguir é uma espécie de fuga à sua história de vida cheia de buracos por compreender, enquanto faz uma viagem pela Europa, 'perseguida' por uma mulher que acredita ser a sua doppelgänger.

Como escreveu José Mário Silva na crítica deste livro para o Expresso, a narrativa “atravessa de uma ponta à outra o espectro da melancolia e transforma a sua deriva, geográfica e mental, numa linguagem de pura fluidez, ao mesmo tempo levíssima e grave, cheia de hiatos, alusões e elipses”. Vale a pena ler, para um último gosto de verão neste outono ainda pouco frio”.

Boas leituras

Ler o Expresso

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