segunda-feira, 7 de outubro de 2024

Portugal | Sobre a reforma da Justiça

Rui Rio, economista | Diário de Notícias, opinião

1  Apesar de não ser jurista, há mais de vinte anos que defendo a necessidade de uma reforma da Justiça em Portugal. Nessa altura, o que mais saltava à vista do cidadão comum, era a morosidade com que os processos se arrastavam e a forma como as pessoas eram destratadas nos tribunais. Adiamentos permanentes, e dezenas de testemunhas todas convocadas para a mesma hora, era a regra dominante. Juízes que incumpriam horários e se dirigiam com modos inapropriados aos presentes, desrespeitando os cidadãos que lhes pagam os salários e em nome dos quais são incumbidos de fazer justiça, era um comportamento demasiado frequente.

Havia, no entanto, a par do medo de se ir a tribunal, um respeito intrínseco por todos os seus protagonistas. Esse respeito natural, pelo importante relevo que a Justiça tem de ter na sociedade, vinha de tempos ancestrais da nossa vida em comunidade.

Existiam muitas outras críticas ao funcionamento do setor, mas essas não eram apreendidas pelo português médio. Eram, obviamente, exclusivas dos profissionais que nele operavam.

2  Com o decorrer dos tempos, e porque nunca se quis enfrentar seriamente o problema – como não podia deixar de ser – tudo se foi degradando. Quando algo está mal e apenas se dão alguns paliativos, embrulhados em marketing político, é mais do que evidente que, a prazo, só poderemos esperar o agravamento estrutural da situação. É assim com quase tudo na nossa vida.

A degradação da qualidade dos protagonistas políticos, que em primeira linha a evolução das dinâmicas partidárias e mediáticas têm vindo a determinar, tornou a inoperância em torno da Justiça (e de muitas outras matérias) cada vez mais uma realidade.

Tudo o que necessita de competência, de coragem e de coerência, vai tendo, por isso, a sua realização comprometida; ou seja, qualquer reforma de perfil mais estrutural e menos imediatista, tornou-se quase inviável no quadro político e social para que evoluímos.

Era já esta a minha convicção, quando, em 2018, apresentei a todos os líderes partidários, ao Governo e ao Presidente da República, um documento de trabalho com vista a um pacto para uma reforma da Justiça, disponibilizando-me para ser figura secundária do processo, em nome do objetivo maior que o País tinha de prosseguir.

O resultado prático foi perfeitamente concordante com o que já era de prever. Ninguém estava interessado, porque tal cooperação chocava de frente com a cultura dominante, em que quem se aventura a entendimentos prescindíveis com o adversário, não só é fraco, como está a fazer pactos com o diabo. Porque na visão (clubística) dominante, o adversário, se não for o diabo, tem, pelo menos, de ser tratado como um inimigo a abater. Nesta lógica “moderna”, o interesse nacional, será, pois, coisa para poetas e para os que pouco entendem de política.

3  E assim, aos problemas que há mais de duas décadas já existiam, somaram-se outros de perfil mais estrutural.

Logo à cabeça, podemos identificar a revoltante lentidão dos Tribunais Administrativos e Fiscais e os fracos resultados do Ministério Público no combate aos crimes de colarinho branco, agravados pelos abusos que, com o beneplácito de muitos juízes de instrução, se vão cometendo com demasiada frequência. Desde a quebra do segredo de justiça, com o consequente julgamento dos cidadãos na praça pública, até às buscas de duvidosa necessidade, às habituais prescrições, às escutas telefónicas prolongadas ou aos terramotos políticos provocados ainda na fase de investigação, não escasseiam razões para sustentar a necessidade de uma profunda reforma neste pilar essencial do Estado de Direito Democrático.

E o mais grave é, em minha opinião, a perda do tal respeito natural que antes existia e que atravessou gerações. As referidas atitudes desrespeitosas, o corporativismo, a degradação do rigor e do saber, a promiscuidade com certa comunicação social, as sentenças demasiadas vezes incompreensíveis, e mesmo o comportamento social de alguns protagonistas do sistema, conseguiram arruinar o respeito de que legitimamente usufruíam. E destruíram, também, a velha máxima de que “quem não deve não teme”, porque se tem visto que, circunstâncias há, em que quem não deve também tem de temer.

4  O quadro é, pois, negativo e as soluções para o reverter são cada vez mais difíceis e complexas. Por força do enquistamento que décadas de inação provocaram, muitas das medidas a tomar chocam de frente com interesses enraizados a diversos níveis. Basta ver com alguma atenção, quem são os mais ferozes críticos do Manifesto dos 50 e as razões pelas quais o são.

Há, no entanto, um objetivo em concreto, que tem de ser o ponto de partida de qualquer reforma. Sem ele, tudo o resto falhará. Esse objetivo é a necessidade de implementação de um modelo de escrutínio democrático e independente no setor da Justiça, tal como existe em todos os demais setores num Estado de Direito Democrático.

Quando um poder não tem qualquer escrutínio externo e fica entregue aos seus pares, o resultado final é sempre o mesmo: a impunidade e o corporativismo. É sempre assim, em qualquer atividade que tenha o ser humano como seu ator principal.

Há muitos modelos possíveis para o conseguir. Modelos que garantam em simultâneo a independência do poder judicial relativamente a todos os demais poderes, mas que, em paralelo, evitem que o setor continue a funcionar em circuito fechado e a se deixar arrastar penosamente para uma situação próxima do insustentável.

5  Não entendo como entre nós tal não é facilmente entendido, porque em democracia não pode haver nenhum poder sem um escrutínio livre e independente. O corporativismo, que, como é óbvio, não é um exclusivo do poder judicial, é sempre um entrave ao desenvolvimento e um adversário do interesse coletivo. Vemo-lo, por exemplo, em algumas ordens profissionais ou em alguns nichos de atividade na nossa sociedade, mas em todos esses casos, há sempre um outro poder, ao qual têm de responder; uns mais, outros menos, mas há sempre uma válvula de escape democrática.

Quem estiver de boa-fé, e quiser mesmo fazer uma reforma séria e eficaz, não pode deixar de assumir a necessidade de, antes do mais, se construir um modelo de escrutínio independente, já que se ele não existir, tudo o que de bem feito se possa vir a concretizar, corre o risco de se desvirtuar ao longo tempo – porque nos ensina a vida, que todos nós, sempre que podemos, nunca deixamos de tentar acomodar as circunstâncias aos nossos interesses.

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