sexta-feira, 10 de janeiro de 2025

Angola | Centro Cultural Alexandre Dáskalos -- Artur Queiroz

Artur Queiroz*, Luanda

Hoje (8.1) é o Dia da Cultura Nacional, instituído em 1986, para assinalar o histórico discurso do Presidente Agostinho Neto, na tomada de posse da primeira direcção da União dos Escritores Angolanos. As comemorações oficiais foram marcadas para a cidade do Huambo. Boa ideia. Foi na capital do Planalto Central que nasceu a primeira editora angolana, Colecção Bailundo. Os editores, Inácio Rebelo de Andrade e Ernesto Lara Filho, escolheram a poesia de Alexandre Dáskalos para o livro de estreia.

Huambo, a cidade onde nasceu a primeira editora angolana. A cidade natal de Alexandre Dáskaçlos e do seu editor, Inácio Rebelo de Andrade. Foi seguramente por isso que o Dia da Cultura Nacional está a ser comemorado na cidade do Huambo. Manuel Rui Monteiro também é do Huambo, o “Cantinflas”. Foi ele que alugou a casa para instalar o Kimbo dos Sobas, “república” de estudantes angolanos em Coimbra.

Inácio Rebelo de Andrade, editor da Colecção Bailundo, nasceu no Huambo em 25 de Setembro de 1935. É doutorado em engenharia agronómica pela Universidade Técnica de Lisboa. E membro da União dos Escritores Angolanos. Publicou, entre outras obras, “SAUDADES DO HUAMBO (Para uma evocação do Poeta Ernesto Lara Filho e da 'Colecção IMBONDEIRO”), “QUANDO O HUAMBO ERA NOVA LISBOA”, “REVISITAÇÕES NO EXÍLIO” (contos angolanos), “LAMENTO DE UM EXILADO” (ensaio). 

Ernesto Lara Filho, repórter, cronista e poeta nasceu em Benguela. Nos anos 80 fiz uma selecção das suas crónicas que publiquei em livro com o título “CRÓNICAS DA RODA FGIGANTE”, nas Edições Afrontamento, Porto. Um gigante da Literatura e da Cultura Angolana.

Rebelo de Andrade escreveu sobre a morte de Ernesto Lara Filho, na Granja, cidade do Huambo, num acidente de viação:    “No seu enterro, ao contrário do que reclamara antes num poema, não tocou o N’Gola Ritmos, ninguém cantou a Cidralha nem convidou a Marcha dos Invejados, ninguém se deu ao incómodo de preparar um kombaritókué adequado, ninguém declamou versos até enrouquecer — e tudo isto talvez porque a guerra rondava perto e não havia tempo nem disposição para satisfazer o pedido de um poeta…”

Alexandre Dáskalos nasceu em Nova Lisboa (Huambo) onde exerceu a profissão de médico veterinário. Era irmão de Sócrates Dáskalos, que foi professor no liceu de Benguela e governador da província, depois da Independência Nacional. Também era irmão de Zaida Dáskalos, professora  no Colégio Ateniense, cidade de Nova Lisboa (Huambo).

Nota importantíssima. Alexandre Dáskalos fundou em Nova Lisboa (Huambo) a Organização Socialista de Angola (OSA). As suas actividades políticas levaram-no à prisão em 1942 e 1943. Foi dos primeiros presos políticos angolanos. 

Alexandre Dáskalos colaborou na revista Mensagem, da Casa dos Estudantes do Império. É autor de dois livros: “Poemas”, Colecção Bailundo, e “Poesias”, Casa dos Estudantes do Império, dirigida por Carlos Ervedosa e Fernando Costa Andrade. O poeta ficou doente com tuberculose e faleceu no Sanatório do Caramulo, a 24 de Fevereiro de 1961, 20 dias depois do início da Luta Armada de Libertação Nacional.

O poeta cantou assim a morte que se aproximava:

Quando eu morrer
não me deem rosas
mas ventos.
Quero as ânsias do mar
quero beber a espuma branca
duma onda a quebrar
e vogar.
Ah, a rosa dos ventos
a correr na ponta dos meus dedos
a correr, a correr sem parar.
Onda sobre onda infinita como o mar
como o mar inquieto
num jeito
de nunca mais parar.

Por isso eu quero o mar.
Morrer, ficar quieto,
não.

Oh, sentir sempre no peito
o tumulto do mundo
da vida e de mim.
E eu e o mundo.
E a vida. Oh mar,
o meu coração
fica para ti
Para ter a ilusão
De nunca mais parar.

Hoje, Dia da Cultura Nacional, seleccionei para vossas excelências poemas de Alexandre Dáskalos que seguramente foram declamados durante as cerimónias que decorreram na cidade do Huambo:    

Companheiros

Vinde companheiros
Que os vossos braços se abram
Aos nossos braços de amigos.
- Toma uma cadeira. Senta-te. Conta:
Desditas, anseios, desventuras

E desse fulgor ardente que se avizinha
no teu olhar, cavado das viagens,
Como uma estrela numa noite morta...

Nós somos todos irmãos.

Ah, quando te invadir a solidão
e olhares à volta e sentires apenas
a presença perturbável dos teus ombros,
não estás só!
Vem até nós.

Estarás comigo.
Não será morta, a morta esperança
do teu olhar sem luz.

Mas que fôlego ingénuo na aventura
te lançou em tão inóspitos lugares
Deixando assim o teu lar, amigo?
Não contes, eu sei qual foi. Foi
essa vontade de produzir, de criar, de vencer...

Oh! Nossa terra, oh nossa mãe!
Como se casam em nós os prodígios
da natureza forte!
O húmus inculto das florestas
brota em nós, freme em nós, canta em nós
no grito de todos os gritos
na ânsia da tua descoberta!...
O amor dos nossos corações
transborda da nossa alma
como a força impulsiva dos teus rios...

Vês, companheiro, eu sou teu irmão,
Toma a minha mão, dá-me a tua mão.

A Sombra das Galeras  

Ah! Angola, Angola, os teus filhos escravos
nas galeras correram as rotas do Mundo
Sangrentos os pés, por pedregosos trilhos
vinham do sertão, lá do sertão, lá bem do fundo
vergados ao peso das cargas enormes...

Chegavam às praias de areias argênteas
que se dão ao Sol ao abraço do mar...
... Que longa noite se perde na distância!

As cargas enormes
os corpos disformes.
Na praia, a febre, a sede, a morte, a ânsia
de ali descansar
Ah! As galeras! As galeras!
Espreitam o teu sono tão pesado
prostrado do torpor em que mal te arqueias.
Depois, apenas pestanejam as estrelas,
o suplício de arrastar dessas correias.

Escravo! Escravo!

O mar irado, a morte, a fome,
A vida... a terra... o lar... tudo distante.
De tão distante, tudo tão presente, presente
como na floresta à noite, ao longe, o brilho
duma fogueira acesa, ardendo no teu corpo
que de tão sentido, já não sente.

A América é bem teu filho
arrancado à força do teu ventre.

Depois outros destinos dos homens, outros rumos...
Angola vais na sede da conquista.
Hoje no entrechoque das civilizações antigas
essa figura primitiva se levanta
simples e altiva.
O seu cântico vem de longe e canta
ausências tristes de gerações passadas e cativas.
E onde vão seus rumos? Onde vão seus passos?
Ah! Vem, vem numa força hercúlea
gritar para os espaços
como os dardos do Sol ao Sol da vida
no vigor que em ti próprio reverberas:

Não sou cativo!
A minha alma é livre, é livre
enfim!
Liberto, liberto, vivo...

Mais... porque esperas?
Ah! Mata, mata no teu sangue
o presságio da sombra das galeras!

Porto 

Havia nos olhos postos o sentido
de não vencerem distancias.
Calados, mudos, de lábios colados no silêncio
os braços cruzados como quem deseja
mas de braços cruzados.

Os navios chegavam ao porto e partiam.
Os carregadores falavam da gente do mar.
A gente do mar dos que ficam em terra.
As mercadorias seguiam.
Os ventos, dispersos na alma do tempo,
traziam as novas das terras longínquas.

Segredavam-se em noites e dias
a todos os homens
em todos os mares
e em todos os portos
num destino comum.

Os navios chegavam ao porto
e partia

Havia nos olhos postos o sentido
de não vencerem distâncias.
Calados, mudos, de lábios colados no silêncio
os braços cruzados como quem deseja
mas de braços cruzados.

Os navios chegavam ao porto e partiam.
Os carregadores falavam da gente do mar.
A gente do mar dos que ficam em terra.
As mercadorias seguiam.
Os ventos, dispersos na alma do tempo,
traziam as novas das terras longínquas.

Segredavam-se em noites e dias
a todos os homens
em todos os mares
e em todos os portos
num destino comum.

Os navios chegavam ao porto
e partiam

Que é São Tomé (Parte I)

Quatro anos de contrato
com vinte anos de roça.

Cabelo rapado
blusa de branco
dinheiro no bolso
calção e boné

Eu foi São Tomé!

Calção e boné
boné e calção
cabelo rapado
dinheiro na mão...

Agora então volto
mas volto outra vez
à terra que é nossa.
Acabou-se o contrato
dos anos na roça
Eu vi São Tomé!

Cuidado com o branco
que anda por lá...

Não sejas roubado
cuidado! cuidado!
Dinheiro de roça
ganhaste-o. Té dá
galinhas... e bois...
e terras... Depois
já tiras de graça
o milho da fuba,
o leite, a jinguba
e bebes cachaça.

Eh! Vai descansado,
dinheiro guardado
no bolso da blusa.

Que é São Tomé?
Cabelo rapado
blusa de branco
dinheiro no bolso
calção e boné.

Parte II

Este mente, aquele mente
outro mente... tudo igual.
O sítio da minha embala
aonde fica afinal?

A terra que é nossa cheira
e pelo cheiro se sente.
A minha boca não fala
a língua da minha gente.

Com vinte anos de contrato
nas roças de São Tomé
só fiz quatro.

Voltei à terra que é minha.
É minha? É ou não é?
Vai a rusga, passa a rusga
em noites de fim do mundo.

Quem não ficou apanhado?
Vai o sono, vem o sono
vai o sono
quero ficar acordado.
No meio da outra gente
lá ia naquela corda
mas acordei de repente.

Quero ficar acordado.

Onde está o meu dinheiro,
onde está o meu calção
meu calção e meu boné?
O meu dinheiro arranjado
nas roças de São Tomé?

Vou comprar com o dinheiro
sagrado da minha mãe
tudo quanto a gente come:
trinta vacas de fome,
galinhas... de papelão.

Vou trabalhar nesta lavra
em terra que dizem nossa
quatro anos de contrato
em vinte anos de roça.

Eu foi São Tomé!
Cabelo rapado
blusa de branco
dinheiro no bolso
calção e boné.

Aiuéé!

*  Jornalista

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