A Estátua de Sal, de Jornal Económico | Carlos Branco* | opinião
No Ocidente passou a ser pecado falar de neonazis na Ucrânia, dando-se início à maior campanha de branqueamento de um regime político realizada até hoje.
No Ocidente passou a ser pecado falar de neonazis na Ucrânia, dando-se início à maior campanha de branqueamento de um regime político realizada até hoje.
O tema ganhou uma renovada
acuidade quando o presidente Donald Trump apelidou o seu congénere ucraniano de
ditador. Independentemente do rigor das palavras usadas por Trump importa
perceber qual é a verdadeira natureza do regime presentemente instalado
Para uma melhor compreensão dos factos e com o intuito de facilitar a sua leitura e sistematização, consideraram-se neste trabalho quatro períodos distintos: desde a independência (1991) até à vitória de Viktor Yanukovych (2010); durante a presidência Yanukovych (2010 – 2014); desde o golpe de Maidan (2014) até à eleição de Zelensky (2019), e desde a eleição deste até aos dias de hoje. Por questões de parcimónia, iremos, fundamentalmente, concentrar-nos no último período.
O aparecimento na Ucrânia, à luz do dia, de organizações ultranacionalistas teve lugar no primeiro período, acelerando após a revolução laranja (2004) e a chegada ao poder de Viktor Yushchenko que, por exemplo, em 2006 reabilitou a organização nacionalista ucraniana OHH UN, responsável pela execução de cerca de 100 mil polacos e judeus durante a Segunda Guerra Mundial. Nessa sequência, em 2010, pouco antes de abandonar a presidência, Yushchenko concedeu o título de Herói da Ucrânia aos líderes da Organização dos Nacionalistas Ucranianos (OUN) Stepan Bandera e Roman Shukhevych (22 de janeiro).
Durante a presidência de Yanukovych houve uma pausa nessa política de estado, com a anulação do título de herói da Ucrânia concedido por Yushchenko. Mas, isso não impediu que esses grupos continuassem a proliferar. Por exemplo, em 2013, nasce a Misanthropic Division, uma rede internacional neonazi cujo dirigente Dmytro Kanuper foi condecorado pelo parlamento dinamarquês, em 2024, como um combatente pela liberdade, o mesmo que tinha o Mein Kampft como a sua leitura preferida; ou, a trasladação (21 de julho de 2013) por ativistas da organização ucraniana Pamiat (Memória) dos restos mortais de soldados ucranianos que combateram na Divisão SS “Galicia”.
O golpe de estado arquitetado pelos EUA no início de 2014 – numa audição no Congresso norte-americano, Vitória Nuland confessou terem sido gastos, desde 1991, cinco mil milhões de dólares em ações subversivas na Ucrânia – foi executado com a colaboração ativa destes grupos. Não é, por isso, de estranhar ver Oleg Tyanibok, um confesso nazi líder do Svoboda, uma organização de extrema-direita, impedido de entrar nos EUA devido às suas opções políticas, ser reabilitado e aparecer ao lado do falecido John McCain.
Em 2014 realizaram-se eleições presidenciais (25 de maio) e legislativas (25 de agosto). Nas primeiras concorreram 21 candidatos e nas segundas 29 partidos, num ambiente de grande hostilidade relativamente às forças não apoiantes do novo regime. O Partido das Regiões que tinha ganhado as eleições em 2010 não teve condições para concorrer às eleições legislativas, apesar de ter apresentado um candidato às presidenciais. O sistema marginalizou e absorveu os partidos pró-russos influentes. Nesse ambiente iniciaram-se as perseguições e o assédio a jornalistas e opositores ao regime.
Petr Poroshenko, presidente,
entretanto, eleito, vem dizer, num tom “conciliador” que os “ucranianos terão
empregos, eles [os russos] não; nós teremos pensões, eles não; as nossas
crianças irão para as escolas e jardins de infância, as deles terão de se
esconder
Poroshenko toma medidas para diminuir a relevância social da língua russa e da Igreja Canónica Ortodoxa. Em 2017, foi aprovada uma lei que proibia o uso do russo no sistema de ensino. Em dezembro de 2018, foi criada a Igreja Ortodoxa da Ucrânia (OCU), independente da igreja canónica ortodoxa, alinhada com Constantinopla, cujos sacerdotes não só subscrevem a ideologia dos setores politicamente mais radicais do espetro político ucraniano, como homenageiam publicamente colaboradores nazis, personagens como Stepan Bandera.
Neste período generalizaram-se as punições públicas extrajudiciais dos chamados marauders, uma forma de justiça popular, “em que pessoas são atadas a árvores e postes com fita-cola, com as calças ou saias baixadas e as nádegas fustigadas com chibatas e varas.” Estas práticas sociais passaram a ser dirigidas contra quem se suspeitasse ser russófilo. Bastava ser ouvido pela “polícia de costumes” a falar russo ao telemóvel. Em 2015, Poroshenko bane o partido comunista, do antecedente, uma força política com uma considerável influência na sociedade.
Em maio de 2019, Zelensky ganha as eleições e assume o poder com a promessa de resolver o problema das províncias rebeldes que dilacerava a sociedade ucraniana havia cinco anos e fazer a paz. Mas fez tudo ao contrário do que tinha prometido. Tendo chegado ao poder escudado num partido – “Servo do Povo” – com uma ideologia libertária, rapidamente se posicionou como um partido russofóbico e pró-americano, navegando num pântano de contradições ideológicas que combinava ideias liberais, socialistas e nacionalistas.
A intervenção na Rada (27 de maio de 2019) de Dmytro Yarosh, fundador do Sector Direito e comandante do Exército Voluntário ilustra bem a importância dos referidos grupos na sociedade ucraniana, quando ameaçou Zelensky de morte se “traísse a Ucrânia”, ou seja, se tivesse a aleivosia de implementar os Acordos de Minsk (“que não eram para ser cumpridos, mas para ganhar tempo e preparar a ofensiva final contra o Donbass e a Crimeia”).
Com a tomada de posse de Zelensky, acelera-se o processo de deterioração das liberdades cívicas iniciado no mandato do seu antecessor, particularmente no que respeita à promiscuidade entre Estado e grupos ultranacionalistas, que aumentam de protagonismo. Completamente alinhado ideologicamente com aqueles grupos, Zelensky vai aprofundar aquilo que Poroshenko tinha iniciado. Os oligarcas seguem-lhe o exemplo.
Um dos principais objetivos do presidente, ex-russo falante, é a completa eliminação da língua e cultura russa. Imediatamente após os protestos de Maidan, o Verkhovna Rada decidiu revogar a lei sobre os princípios da política linguística do Estado, que estava em vigor desde 2012. Em 2017, Poroshenko proíbe o ensino em russo, e a partir de janeiro de 2021, Zelensky dá outra machada na língua russa, ao proibir a sua utilização na administração do Estado.
Foram igualmente proibidos os livros escritos em russo, incluindo os clássicos da literatura russa. Zelensky ordenou a retirada de 100 milhões de livros de autores russos das bibliotecas da Ucrânia. Tolstoi, Pushkin, Dostoievski e Gorky, entre outros, foram proscritos. O mesmo sucedeu aos compositores russos. Tchaikovsky, Prokofiev, Shostakovich, Borodin, Glinka, Rimsky-Korsakov e muitos outros foram também banidos. Espetáculos e quaisquer outras manifestações culturais em língua russa foram igualmente proibidas. O inglês passou a ser a segunda língua na Ucrânia. As minorias húngaras e romenas, que tinham pretensões semelhantes à russa foram igualmente atingidas e objeto de discriminação.
No plano religioso, Zelensky foi mais além de Poroshenko e proibiu a igreja canónica ortodoxa (ICO). Foi penoso ver, em abril de 2023, o cerco ao Kiev Pechersk Lavra (KPL) e os correligionários da nova igreja ucraniana expulsarem os sacerdotes da ICO com a ajuda da polícia. De santuário de referência da ICO, o KPL passou a ser lugar de cerimónias pagãs e de encontros gastronómicos sem qualquer relação com a religião. Por toda a Ucrânia, os acólitos da nova igreja apoderaram-se dos santuários da ICO e expulsaram os seus sacerdotes.
Foi durante a vigência de Zelensky, que se realizaram os maiores ataques à liberdade de expressão no país. No dia 3 de fevereiro de 2021 foram banidos três canais de televisão (ZIK, News 1 e 112 Ukraine). No dia 20 de março de 2022, obedecendo às ordens de Zelensky, o Conselho de Defesa e Segurança Nacional da Ucrânia ilegalizou, de uma assentada, 11 partidos políticos por supostas ligações à Rússia. Viktor Medvedchuk, o líder da “Plataforma para a Vida”, o principal partido da oposição, que ocupava 44 lugares no parlamento ucraniano, foi colocado em prisão domiciliária.
Destino semelhante teve o presidente do supremo tribunal. O presidente do Tribunal Constitucional “ausentou-se” para parte incerta para não ter a mesma sorte. Até o antigo Presidente Poroshenko, um adversário político e inimigo de longa data de Zelensky, foi vítima da repressão política e da caça às bruxas “politicamente motivada” promovida por Zelensky, que o acusou de “alta traição” e de auxílio a organizações terroristas. É longa a lista de políticos, jornalistas e empresários mortos, sequestrados ou torturados durante a presidência de Zelensky. Um deles, é Oleksander Dubinskyi deputado na Rada, vítima de duas tentativas de assassinato e preso há mais de 15 meses por criticar a corrupção no país.
Em contrapartida, nenhuma das organizações neonazis foi ilegalizada. O nazismo e as insígnias fascistas normalizaram-se na sociedade e no seio das forças armadas. A suástica, o Sol negro e a caveira de Totenkopf vulgarizaram-se e tornaram-se moda. Zelensky publicou, sem qualquer pudor, fotografias destas insígnias nas suas contas das redes sociais.
A 13 de maio de 2023, Zelinsky visitou o Papa envergando uma camisola preta com o emblema da UNO, uma organização nacionalista ucraniana, e entregou-lhe um ícone com uma silhueta negra de Cristo ao colo da Virgem Maria, o que, de acordo com os cânones da Igreja Católica pode ser considerado satânico. A moda chegou também a outros domínios como monumentos, toponímia e filatelia, utilizados para exaltar figuras prominentes do movimento ucraniano bandeirista, responsável pela morte de judeus.
No dia 1 de março de 2022, de acordo com o decreto assinado por Zelensky, foi criada a “Legião Internacional de Defesa da Ucrânia” que passou a ser integrada na estrutura das Forças Armadas, cujo pessoal incluía mercenários, adeptos de ideias extremistas e terroristas de várias partes do mundo.
Zelensky aderiu e alimentou a fantasia, promovida pelos ultranacionalistas, de um estado mono étnico, monocultural e centralizado. A aprovação na Rada da lei racista e xenófoba sobre os povos indígenas” (13 de dezembro 2022) foi uma materialização desse desígnio. Inserido neste projeto, assiste-se a um movimento de revisionismo histórico com laivos fantasiosos e caricatos. Igor Tsar, autor do livro “Ucrânia – a pátria ancestral da humanidade”, vencedor do Prémio Stepan Bandera, publicado em Lvov alerta-nos para uma imensidão de “factos históricos” desconhecidos (foram as tribos arianas da Ucrânia que fundaram o Irão no 4º milénio a.C. e colonizaram a Palestina. A língua inglesa é proveniente da Ucrânia. Até Jesus era ucraniano).
Nesta análise sobre o regime ucraniano sob a tutela de Zelensky, não podíamos deixar de referir o envolvimento de Zelensky na corrupção que grassa no país, que se encontra devidamente documentada. No outono de 2021, o Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação publicou os chamados Pandora Papers, onde se incluíam dados das contas offshore de 35 líderes mundiais. Zelensky e os seus parceiros do estúdio Cartel 95 estavam entre eles.
Entre 2012 e 2016, foram transferidos 41 milhões de dólares para a empresa offshore de Zelensky. Num país normal teria sido preso. Uma das múltiplas mansões que tem por esse mundo fora encontrava-se na Crimeia, um erro que lhe custou caro. Foi expropriado e a mansão vendida em hasta pública, tendo o resultado da venda revertido para um fundo de ajuda a combatentes russos.
No Ocidente passou a ser pecado falar de neonazis na Ucrânia, dando-se início à maior campanha de branqueamento de um regime político realizada até hoje. O “Guardian”, entre outros órgãos de referência da comunicação social, que antes do início da guerra em 2022 escrevia “bem-vindo à Ucrânia, o país mais corrupto da Europa”, passou depois a considerar que “A luta pela Ucrânia é a luta pelos ideais liberais.” A corajosa reportagem de Mariana Van Zeller sobre grupos neonazis na Ucrânia foi censurada e retirada do canal Disney. Quem desmonta esta e outras falácias (o tema está longe de se esgotar neste artigo) foi acusado de ser propagandista do Kremlin.
O branqueamento do regime instaurado em 2014 é feito com base em dois argumentos: se o regime tivesse a filiação ideológica de que é acusado não teria um presidente judeu; os neonazis não têm expressão eleitoral significativa, por isso o regime é democrático. As questões devem, no entanto, ser colocadas de outro modo. Seria insuportável para as democracias europeias admitirem que estão a apoiar um regime que permite a proliferação da ideologia nazi e protege organizações neonazis.
Por outro lado, omite-se o facto de que muitos desses partidos/grupos ultranacionalistas não concorreram às eleições, e menospreza-se deliberadamente a sua influência na sociedade, sobretudo nas forças militares e de segurança, consolidada no rescaldo do golpe de Maidan. O facto da Ucrânia ter servido de tirocínio de combate a vários grupos neonazis europeus está superlativamente documentado em língua portuguesa (aqui (cap.IV) e aqui).
A farsa completa-se quando Zelensky participou nas comemorações do 80º aniversário da libertação do campo de extermínio nazi de Auschwitz, ou se ajoelha no memorial de Babyn Yar, em Kiev, não obstante a sua adesão incondicional à exaltação histórica dos bandeiristas, os mesmos que perpetraram o massacre lembrado por aquele memorial.
Não podemos deixar de nos questionar sobre a complacência e promiscuidade do Ocidente com as forças neonazis que proliferam na Ucrânia, porque é que se omitiu essa realidade e se tornou um tabu a partir de fevereiro de 2024, apesar de denunciada antes, com o conluio da comunicação social. Os exemplos são gritantes, e são muitos. Os aplausos em pé no parlamento canadiano a Yaroslav Hunka, que durante a Segunda Guerra Mundial serviu na 14ª Divisão de Granadeiros da Waffen-SS, considerado um “herói” durante a visita do Presidente Zelensky. Por terem sido vítimas da brutalidade destes grupos, os polacos são uma exceção a este unanimismo.
Pelo exposto, pode concluir-se que Donald Trump não anda afinal muito longe da verdade. Pelo andamento da carruagem, não se admire o leitor se um dia acordar e perceber que andou três anos a ser enganado. A possibilidade de isso acontecer já esteve mais distante.
* Major-General Carlos Branco, in Jornal Económico, 06/03/2025
* Adenda de título PG
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