Carvalho da Silva*, opinião | Jornal de Notícias
Com o turbilhão de mudanças induzidas nas relações económicas e comerciais – de forma mais visível pela Administração dos Estados Unidos da América –, que sistema de comércio internacional teremos no futuro? O que tínhamos já havia dado sinais de esgotamento nas “crises” que marcaram as duas últimas décadas: agora parece estilhaçar-se. Deve estar enganado quem, nos EUA, na Europa ou noutras latitudes, se refugia na ideia de que basta fazer de morto e esperar que a tempestade passe. O baralho está a ser manipulado. É preciso atenção à distribuição das cartas e um enorme esforço para conquistar vantagens no jogo.
Sempre se soube que o Sistema Internacional do Comércio era excessivamente catalogado de “Livre”. Recordo-me de, no final dos anos noventa, atravessar os jardins do espaço da Organização Mundial do Comércio (OMC), em Genebra, na companhia de um diplomata, e me ter deparado com um número significativo de “homens não europeus”, bem vestidos e de pastas na mão, sentados nos bancos do jardim. Intrigado, perguntei ao meu companheiro de caminhada quem seriam aqueles indivíduos. Respondeu-me: “são ministros ou secretários de Estado de países pobres que aguardam o fim de alguma reunião de burocratas da OMC, que tomará decisões sobre interesses dos seus países e no final lhes comunicarão”.
O “livre comércio” sempre funcionou bem a favor dos poderosos, nem sempre a favor dos outros. Sustentou uma certa “ordem” num longo espaço temporal. Em regra, favoreceu a imposição do abaixamento dos custos do trabalho, dos salários e da proteção social, mas foi apresentado sempre como determinante para o desenvolvimento e a democracia. Os resultados da globalização, algumas grandes alterações geopolíticas e geoestratégicas, e o avanço tecnológico e científico alcançado por países insuspeitos de o atingirem, baralharam as leituras. Inebriados pelo “eurocidentalismo”, esquecemo-nos de que nem poderes divinos garantem aos seres humanos alianças eternas.
Habituamo-nos a ver os países ricos numa defesa acérrima do “livre comércio” e os pobres a tentarem condições pontuais de “protecionismo” para minorar os sacrifícios dos seus cidadãos. Agora, este filme surge de pernas para o ar. O operário que apareceu esta semana ao lado de Trump há de ser sacrificado, pois a industrialização não é conciliável com a financeirização, nem com protecionismo estruturado como frente de guerra. Mas, no presente, a mensagem de Trump identifica-se com o que ele sente: falta de emprego digno e baixo nível de vida.
Vai a União Europeia (os países que a compõem) responder à nova situação mantendo as leituras antigas, designadamente sobre os tratados que a regem, as políticas dualistas e a estrutura burocrática? E, estabelecendo relações na base de dois pesos, duas medidas? Estes temas devem ser tratados, de forma clara, na atual campanha eleitoral.
* Investigador e professor universitário
Imagem: Carlos Barria/SIC
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