LÁZARO MABUNDA – O PAÍS ONLINE, opinião
...a pura vontade da maioria – da Frelimo no parlamento – conjugada com a precaridade das leis - pode tornar-se um importante factor de instabilidade institucional, criando condições para as mais perigosas aventuras políticas.
A Frelimo anunciou, desde o ano passado, que irá rever a Constituição. Até aqui ainda não revelou o que pretende rever. Desconfia-se que pretenda remover os pontos de discórdias que a forçaram a uma negociação com a Renamo em 2004, além de que poderá pretender alargar os mandatos do Presidente da República e os anos de vigências desses mandatos.
Parece-me que caminhamos para uma situação bem pior – espero estar enganado – do que a actual. A decisão unilateral do partido no poder parece-me ser o primeiro indício de que, de facto, caminhamos para essa situação. Embora tenha sido convidada, julgo ser pertinente o alheamento da oposição neste processo, justamente porque me parece que a Frelimo pretende usá-la para branquear e legitimar a sua decisão em torno da revisão constitucional.
Tal como a soberania reside no povo, a democracia reside no Parlamento, onde os representantes do povo se encontram para discutir, numa relação de poderes, assuntos que interessam aos seus representados. Nessa relação, é fundamental que exista cooperação, mas tal só é possível quando existe um equilíbrio de forças. É esse equilíbrio que obriga as partes a uma cooperação. No mundo evoluído, criam-se coligação entre partidos menos representados no sentido de ganharem força no Parlamento, obrigando o partido maioritário a uma cooperação. Não existindo esse equilíbrio, tal como está a acontecer no nosso Parlamento, por via da maioria absoluta que a Frelimo conseguiu nas últimas eleições, impera a ditadura de maioria. É essa maioria absoluta que aprova tudo o que o seu governo envia ao Parlamento para ser aprovado, mesmo que tal represente interesses de uma pessoa. A oposição não é mais do que simples espectador passivo.
Com desequilíbrio de forças, criam-se leis não soberanas em relação ao poder político que as criou. E se a soberania das leis não vinga numa sociedade, essa sociedade torna-se um rebanho sem pastor. É daí que surgem duas sociedades: a da minoria, que se sobrepõe a quaisquer leis, embora a Constituição defenda a igualdade de todos perante as mesmas leis, e a da maioria, sobre a qual as leis se sobrepõem.
A relação entre o poder e as leis deve ser de quem faz o que lhe deve regular, no sentido de que o poder faz as leis e as leis regem e traçam as balizas do funcionamento do poder. Nessa relação, as leis é que devem sobreporem-se ao poder e não o poder às leis, pois, quando acontece a inversão da realidade, as leis se tornam refém do poder e automaticamente nulas nessa relação com o poder.
Estamos a caminhar perigosamente para uma situação em que a Constituição tornar-se-á um instrumento ao serviço dos interesses de uma minoria.
Para Denis Rosenfield (O que é Democracia, 1994), quando se chega a esse extremo, “não se deveria mais falar da Constituição, uma vez que, ao invés de unir a nação, este conjunto de leis a desarticula”. É que o sentido da lei, acrescenta, “é precisamente o de ligar os cidadãos entre si. Ora, uma Constituição que desune em vez de unir não é mais propriamente uma Constituição”. Elucida ainda que “a pura vontade da maioria – neste caso da Frelimo no Parlamento – conjugada com a precaridade das leis - pode tornar-se um importante factor de instabilidade institucional, criando condições para as mais perigosas aventuras políticas”, além de que “a vontade da maioria”, no Parlamento, “não é necessariamente democrática, podendo ser também tirânica”.
O que posso concluir do trecho acima é que a democracia propriamente dita, por interesses de minoria, pode transformar-se numa democracia tirânia à imagem da democracia popular que vigorava no período socialista.
A maior virtude das leis deve residir no facto de preverem o que ainda não acontece. Elas não podem ser concebidas e elaboradas quando há emergência de uma infracção. Uma constituição não pode ser revista sempre que alguém ou uma minoria sentir que alguns dispositivos beliscam os seus interesses ou que falta algum dispositivo que acomode os seus interesses. Aliás, o traço característico de uma Constituição reside, precisamente, no facto de que ela se inscreve normalmente numa duração destinada a ultrapassar a vida de várias gerações.
Hannah Arendt escreveu, a propósito da Revolução Americana, que “o génio do povo americano reside neste extraordinário poder de considerar o que datava ontem com os olhos dos séculos por vir”. Ora, isto não acontece na nossa Constituição que, de cinco em cinco anos, é revista, sempre que os interesses de um grupinho encontrarem barreiras legais.
Devido à ditadura da maioria, hoje, o nosso país vive inversão da norma no que respeita à concepção do conhecimento. Os analfabetos e grupos de oligarcas menos instruídos pensam para os intelectuais e os intelectuais (académicos) executam, sem questionar, a viabilidade do pensamento dos menos instruídos. Vivemos numa era em que o jogo de cintura de sobrevivência está acima da liberdade de pensamento e de expressão e do conhecimento científico.
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