sexta-feira, 15 de julho de 2011

Portugal: ENTRE O LIXO E O MILAGRE




ANTÓNIO MARIA CARRILHO – DIÁRIO DE NOTÍCIAS, opinião

Ao estado de graça do novo Governo sucede-se um estado de inquietação que não pára de crescer. O imposto extraordinário sobre o subsídio de Natal chocou quem confiava nas repetidas promessas eleitorais do PSD, mas são sobretudo os primeiros passos que inquietam.

Primeiro, foi a opção por um Governo minimalista, ao arrepio do bom senso e da urgência. Este não é o momento para experiências, ainda por cima quando estas revelam desconhecimento da administração pública, dos seus meandros, timings e procedimentos. É incompreensível que, para satisfazer um mero "fetichismo" dos números, se corra o risco de estar agora semanas ou meses a tratar de leis orgânicas e a procurar articular instituições de uma máquina que, ainda por cima, parece que ninguém sabe muito bem como quer organizar. Vemos ministérios à procura de definição, institutos a passear entre ministérios e organismos estonteados entre duas ou três tutelas. Esta barafunda devia ter sido evitada.

A isto juntou-se uma equipa em que algumas pastas decisivas foram entregues a pessoas que afirmam (com tanto entusiasmo como inconsciência) não ter a mais pequena ideia das áreas que vão dirigir. Em qualquer democracia com os mínimos de exigência, tais declarações levariam à sua imediata substituição. Cá, pelo contrário, aclamou-se a frescura e saudou-se a inovação, de permeio com outras parvoíces do género. Depois não se queixem!...

Para esbater as dúvidas, multiplicam-se os gestos simbólicos, as viagens em turística, o controlo do uso de cartões e de carros, a exoneração dos governadores civis ou a não nomeação dos directores adjuntos da Segurança Social. São gestos que se justificam e que agradam em tempos de crise, mas não vão além disso. Porque o País precisa é de medidas, mais do que de gestos.

Mas de que medidas? Esta é a grande questão. Desde Maio que vivemos como se tivesse acontecido um verdadeiro milagre - o Milagre do Memorando. Um milagre operado pela troika que, em versão moderna dos três Pastorinhos, conseguiu o extraordinário feito de produzir em duas ou três semanas um documento "estratégico" que deixou o País de joelhos, indicando-nos como resolver finalmente todos os nossos problemas, tanto os imediatos com os mais estruturais.

Como desse documento dependia, e de uma maneira dramática, o financiamento corrente do País, o seu elogio desmiolado tornou-se numa espécie de prece diária de políticos, jornalista e comentadores, pouco interessados em avaliar friamente as possibilidades e as consequências da tal "estratégia".

O milagre era vivido com tal fervor que o que parecia tentador era prometer ir ainda "mais além", ignorando-se completamente que o objectivo fundamental do Memorando era, sobretudo, o de garantir o reembolso em perigo de empréstimos concedidos, confiscando para o efeito a energia, os bens e as ilusões ainda disponíveis no País. Talvez por isso, ninguém explicou como é que, afundando Portugal na recessão, a "estratégia" do memorando permitiria diminuir o défice e viabilizar o regresso aos mercados em 2012 e 2013. E quanto ao crescimento... nem uma palavra!

Perante isto, a queda no rating da Moody's só pode surpreender os incautos. O que é que mudou assim de tão fundamental que justificasse previsões mais optimistas? A classificação como "lixo" da dívida portuguesa é chocante e terá certamente graves consequências. Mas esperemos que tenha, pelo menos, a virtude de abalar o estado de superstição em que, com o Milagre do Memorando, o País tem vivido. E que seja o primeiro passo para uma dolorosa mas indispensável clarificação sobre o impasse a que o País está a ser conduzido pelo Memorando e pelo austeritarismo dos seus acólitos, essa mistura de austeridade e de autoritarismo que nunca vê alternativas.

À indignação nacional juntou-se, curiosamente, a indignação de muitos que ainda há semanas elogiavam, seguros da sua bênção pós-eleitoral, as agências de rating, e fustigavam os que denunciavam a sua ávida conduta. Esta indignação conseguiu mesmo algumas palavras de solidariedade europeia de Durão Barroso (agora sempre com um olho em 2016) e de Vítor Constâncio (cheio de má consciência, a dar um "empurrãozinho" a Jean-Claude Trichet), mas não foi, nem irá, muito além disso. E é uma indignação tanto mais hipócrita quanto mais vem, justamente, dos evangelistas do mercado auto-regulado.

Goste-se ou não das notas, acredite-se ou não em teorias da conspiração, o facto é que as agências de rating têm feito o seu trabalho, e matéria não falta para se consolidarem juízos claros sobre o assunto. Quem não tem feito nada são os governos, a União Europeia e o G20. As agências vivem nos mercados, e os mercados não são nem redutíveis aos seus grandes predadores, nem perspectiváveis pelos critérios de uma qualquer moral. Os mercados são entidades tão heteróclitas como amorais, onde há de tudo e todos são, no fundo, movidos pelo desejo de ganhar, e de ganhar o mais possível, de acordo com o espírito do tempo.

É dos governos que se deve esperar mais, e é aos governos que se deve exigir mais. Os governos são que se têm demitido completamente das suas obrigações antecipadoras, reguladoras e sancionadoras da vida dos mercados, nomeadamente (mas não só) da acção das agências de rating. Foi a inacção dos Estados, sobretudo depois da crise de 2008 a que as agências de rating estiveram tão intimamente (em alguns caos, tão criminosamente) associadas, que lhes permitiu esta acrobacia impensável, de se transformarem de réus em juízes, e de porem os seus juízes no lugar de réus! Com uma impunidade de que os lucros da Moody's, no último trimestre de 2010, podem dar uma pequena ideia: nada menos que cem milhões de euros...

Os portugueses estão rapidamente a compreender que Portugal está numa armadilha que se pode tornar atroz. Por duas razões: em primeiro lugar, porque temos andado à deriva desde 2008, sem perceber que o que então aconteceu foi o irreversível colapso de um modelo de desenvolvimento que assentava em três pilares: no betão e nas suas variantes de deslumbramento tecnológico, no consumo desenfreado encostado a um endividamento sem limites, e no apoio solidário da União Europeia. Não o percebendo a tempo, o governo anterior entrou em progressivo desnorte, como se viu. Mas o mais surpreendente é que, entretanto, as lições não tenham sido tiradas, facto que, conjugado com os efeitos proclamatórios do Milagre do Memorando, deixou o País entregue a uma espécie de fatalismo positivo, de que só acordaremos - como agora aconteceu com a nota da Moody's - com alguns "murros no estômago".

E, em segundo lugar, porque se tem desvalorizado o facto de a crise do euro ser uma crise estrutural da União Europeia e da Zona Euro, tendo-se chegado ao extremo descuido de quase não o referir, nem no Programa de Governo apresentado ao Parlamento nem no respectivo debate.

Acontece que o euro foi uma invenção política, e que a crise do euro terá que ter uma solução política. Enquanto se viver na ilusão que o "financês" pode resolver o problema do euro, estamos a agravá-lo, não a solucioná-lo, como de resto bem se tem confirmado no decurso dos últimos dois anos e meio. A crise que vivemos, é urgente compreendê-lo, é uma crise da política e das lideranças políticas europeias e nacionais, que com a sua impotência, incompetência e irrelevância, deslegitimam cada vez mais aos olhos dos povos que deviam representar.

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