PAULO KLIASS* – CORREIO DO BRASIL
Parece que países do porte do Brasil não têm margem de manobra para evitar que sua economia seja contaminada pelos fluxos financeiros globais. Os dez maiores fundos operam um valor equivalente a oito vezes o PIB brasileiro! Mas há, sim, o que fazer. O primeiro passo é afastar o conformismo.
Os primeiros anos do milênio têm sido pródigos em oferecer todo tipo de novidades em escala mundial, apresentadas em ritmo tresloucado e sendo permanentemente superadas, numa velocidade assustadora. A combinação entre o aprofundamento da internacionalização da economia, a crescente importância adquirida pelo processo de financeirização das atividades econômicas e o desenvolvimento tecnológico fenomenal no âmbito da informática e das telecomunicações oferecem um quadro potencialmente transformador nas relações econômicas em geral, e em particular nas operações em escala mundial.
Um fenômeno que bem reflete as mudanças oferecidas por esse verdadeiro coquetel de inovação são as relações financeiras no plano internacional. Até não muito tempo atrás, as chamadas “praças” guardavam forte conteúdo nacional, e mesmo local. As bolsas de valores de Nova York, Chicago, Londres, Paris e Tóquio eram, por exemplo, as vedetes das operações do mercado de capitais e apresentavam características específicas que as diferenciavam entre si. Porém, o desenvolvimento tecnológico e o aprofundamento do grau de mundialização das empresas fez com que tais particularidades fossem sendo resumidas praticamente às diferenças de fuso horário. Além disso, outros países asiáticos passaram a entrar no time principal das “cities” financeiras, como Hong Kong, Mumbai, Cingapura. E a ironia da história e das localizações geográficas fez com que as praças orientais fossem as primeiras a operar a cada dia útil no mercado financeiro e de capitais. No dizer do jargão financeiro, o mercado “abre” com as bolsas do sol levante.
No entanto, apesar dos meios de comunicação insistirem em tratar a questão com certa dose de transcendência e intangibilidade para o grande público, o fato é que as grande jogadas no circuito financeiro são feitas por poucos e mastodônticos agentes no plano mundial. Perdeu-se quase toda a diversidade local e as tendências globais das operações se consolidam independentemente dos lugares e das diferenças dos fusos. Cada vez mais se concretiza o conhecido dito de Marx de que o “capital não tem pátria”. E agora basta uma decisão do comitê de investidores de uma determinada instituição financeira, uma ordem de execução ao operador da mesa de negócios e um toque na tecla “enter” para que os recursos atravessem fronteiras e meridianos em microlésimos de segundos! Uma única regra a ser respeitada: a busca permanente da maior rentabilidade. O que, é claro, pode significar apenas reduzir perdas em algum momento. Afinal, não é possível que todos os agentes ganhem sempre, muito e a todo momento.
Normalmente tratado com tinturas cinematográficas, o processo adquire, no entanto, um roteiro especial quando alguma perturbação de maior gravidade é sentida no ar. Foi o caso típico da crise recente para aprovação das novas regras do endividamento público norte-americano, numa conjuntura em que já havia dificuldades resultantes das crises dos países da zona do euro e da ação do Banco Central Europeu (BCE). Em uma semana tensa e carregada de incertezas, o Senado dos EUA havia finalmente aprovado a possibilidade de aumento do grau endividamento público daquele país. Mas numa sexta-feira, a agência de rating Standard & Poor’s optou por reduzir o grau de credibilidade dos títulos do Tesouro Federal – caindo da famosa cotação AAA para um simples AA+. Ou seja, o forte simbolismo de um papel emitido pelo governo do país, até então, mais identificado com o padrão atual do capitalismo passou a apresentar um risco mais alto. Isso porque, em tese, haveria maior probabilidade de não honrar seu pagamento no vencimento. Ao mesmo tempo, pairava um sentimento de que o BCE não estaria sendo suficientemente sério ao afirmar que apoiaria os países da zona do euro caso o mercado financeiro continuasse atuando para quebrar os papéis das dívidas da Grécia, de Portugal e da Espanha.
Nesse caso, realmente foi um fim de semana tenso, com chefes de governo adiando seus compromissos (e algumas férias, inclusive…) e promovendo reuniões com o intuito de “assegurar” ao mercado a firmeza de suas intenções de política econômica. E aí, sim, os meios de comunicação passaram a pautar e chamar a atenção para as incógnitas da abertura dos mercados asiáticos na segunda-feira de manhã. Entre 5 e 7 horas antes de Paris e Londres. Entre 11 e 13 horas antes de Nova Iorque. Cria-se o suspense, como se os grandes operadores da porção oriental do mercado financeiro tivessem interesses distintos daqueles que ainda dormiam no momento em que as primeiras operações eram realizadas nas praças asiáticas. Nada, porém, mais fantasioso!
Ou alguém tem a ilusão de que conglomerados do porte de um Citibank, de um HSBC e demais instituições financeiras similares ficam a mercê do que “outros” estariam a fazer de madrugada lá numa praça mais à leste? Por mais que ainda haja alguma particularidade local ou operadores que dependam mais de uma praça do que de outra, a lógica macro de movimento dos agentes do mercado financeiro é global, por definição. Ela transcende as fronteiras nacionais, as moedas locais, as distâncias geográficas e os diferentes fusos horários que ainda guardam o meridiano de Greenwich como referência.
Isso não significa, porém, que haja uniformidade absoluta na conduta e na avaliação que embasam o comportamento dessas instituições e empresas. Afinal, a base de funcionamento do mercado é sempre uma operação de troca. Ou seja, quando algum agente está efetuando uma compra, do outro lado da linha há alguém realizando uma venda. E se a troca é referenciada em um preço, isso significa que há uma diferença de percepção ou de necessidade. Uns vendem porque acham que é o bom momento para “realizar” (no jargão do financês) o ganho. Outros compram por achar que os preços estão em baixa e poderão subir no futuro. E por aí vai.
Mas a estrutura de composição do mercado financeiro internacional reflete um elevado nível de concentração, com a centralização de poder de decisão em mãos de poucas e imensas empresas. Por outro lado, o processo de financeirização das atividades econômicas em geral terminou por conferir ao mercado financeiro e às instituições que nele operam um sobredimensionamento em relação ao chamado “setor real” da economia. Com o crescimento mais do que proporcional das operações financeiras, esse setor praticamente se descolou da economia concreta, da produção de bens e da oferta de serviços em todo o mundo. A ampliação das oportunidades de ganhos e de realização de negócios introduziu o conceito de mercadoria em praticamente cada nicho da sociedade contemporânea. E aí meras apostas contra tendências econômicas futuras também alçaram características de mercadoria, com seu preço, sua oferta, sua demanda. A sofisticação negocial e tecnológica chega ao aprimoramento de transformar a mera atividade de especulação financeira em operação especial e específica no mercado de capitais. “Mercado de derivativos”, “mercado a termo”, “mercado futuro”, “mercado de hedge”, muitos são os rótulos para a enganosa embalagem para presente de algo que nada mais é do que a prática especulativa pura e simples.
Em escala internacional, a força dos conglomerados financeiros é capaz de subjugar Estados e derrubar governos. Levantamento divulgado recentemente informa que apenas os 10 maiores gestores de fundos financeiros globo afora eram responsáveis, ainda ao final de 2010, pela movimentação equivalente a US 17,4 trilhões. Ou seja, isso significa que um valor em títulos financeiros 20% superior ao PIB dos EUA está em mãos de 10 conglomerados. Ampliando um pouco a amostra, o relatório mostra que os 400 maiores gestores de fundos financeiros do globo eram responsáveis pela movimentação de US$ 53,6 trilhões – um valor difícil de dimensionar e comparar pela sua magnitude. A título de ilustração, ele representa um valor 30% maior do que a soma dos PIBs dos 10 maiores países do mundo.
Ora, sob tais condições, parece evidente que países do porte do Brasil não têm muita margem de manobra para evitar que sua economia seja contaminada por tais fluxos financeiros. Os dez maiores fundos operam um valor equivalente a oito vezes o PIB brasileiro! E, por incrível que pareça, ainda tem gente querendo nos fazer crer que eles “vêm para cá” (eufemismo para dizer que teclam “enter” na destinação “brazil”) aplicar seus recursos porque acreditam no potencial econômico do nosso País, e todo o blá-blá-blá muito bem conhecido. Nadica de nada! O que buscam é o fabuloso ganho oferecido pela política monetária criminosa e irresponsável praticada pelos sucessivos governos através do Banco Central, quando há mais de uma década ostentamos as maiores taxas de juros do planeta! Ou então aquele “me-engana-que-eu-gosto” de que por aqui, in terrae brasilis, tudo é tranqüilo. Ficaríamos eternamente boiando beleza, como que intangíveis na nossa marolinha tupiniquim, enquanto o resto do mundo sofre as conseqüências do tsunami das crises.
Por meio da complementação perversa entre generalização da mercantilização e intensificação das atividades de financeirização, o mundo da economia atual vive um crescente distanciamento do mundo real. Tudo passa a ser encarado como mercadoria: uma relação social, um serviço público, uma diversão, o usufruto de férias, a satisfação de necessidades humanas básicas. E tudo passa a ser objeto de uma tentativa de financeirização: o empréstimo bancário, o cartão de crédito, o crédito consignado, os diversos tipos de seguro. E, com isso, além dos problemas sociais e econômicos gerais derivados dessa tendência de transformar tudo em mercadoria, cria-se um enorme fosso entre o valor econômico do mundo concreto (por mais impalpável que seja, é verdade) e o valor estratosférico das transações econômicas efetuadas apenas com base na esfera puramente financeira, descolada da atividade do mundo real.
O setor financeiro deveria existir para servir (sim, esse é o termo adequado!) à economia produtiva e ao setor de serviços. Reduzir custos, diminuir riscos, criar eficiência, agilizar operações. Mas o que se viu, ao longo do tempo, foi a crescente autonomização da área das finanças – na nossa vida de cidadãos, no interior das empresas, na estrutura do Estado, enfim, no conjunto da sociedade. A tal ponto que o restante das atividades tornaram-se dependentes, escravas mesmo, do setor financeiro. Uma completa inversão de valores e de prioridades.
Frente à força de tal movimento, por vezes parece-nos que não resta muito mais o que fazer. A atual forma de globalização das atividades sociais e econômicas assume ares de algo inevitável. O referido superdimensionamento da esfera financeira face à esfera produtiva parece igualmente inelutável. E não é bem assim. Por mais que vivamos esmagados sob a atual hegemonia desse modelo que tenta nos convencer de que não há alternativa, o mundo está salpicado de tentativas e experiências bem sucedidas em que um outro modelo de vida em sociedade é possível. O primeiro passo é romper o conformismo e a passividade. Em seguida, ampliar o horizonte de visão e superar a ignorância. Construir uma sociedade em que estejamos menos dependentes da bolha especulativa das empresas de informática na bolsa de Nova York ou dos tremeliques dos agentes das finanças por eventual dúvida a respeito da capacidade de algum país europeu cumprir ou não com sua dívida pública.
*Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.
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