Timor Oan (Children of Timor) - Maria Madeira |
PONTO FINAL
MARIA MADEIRA, ARTISTA TIMORENSE A REGRESSAR À PÁTRIA
Foi em pleno Festival da Lusofonia que as exposições da timorense Maria Madeira e da guineense Manuela Jardim abriram portas nas casas-museu da Taipa. Em comum têm o valor etnográfico e a ligação com Portugal. Bem a propósito do espírito que por estes dias se vive no Carmo.
“Passos Familiares” é uma exposição de altos e baixos. São cerca de 20 quadros, cabem todos numa sala só, mas contam histórias de esperança, de tristeza, de choque e de amizade.
Maria Madeira deixou Timor em 1975 como refugiada. Viveu em Portugal até 1983, quando se mudou para a Austrália. Espera regressar a Timor-Leste em 2013, onde quer ficar permanentemente e trabalhar como artista e professora de Artes. “É para mim uma grande honra fazer parte dos países de língua portuguesa, é um grande orgulho”, diz de sorriso nos lábios. A exposição abriu no sábado mas já desde sexta-feira que a autora por ali anda, a gozar o festival. “Tenho cá estado todos os dias, adoro!”, conta.
Começa por guiar o PONTO FINAL até ao quadro “Velas”, que é isso mesmo, uma composição em tons laranja com velas a arder. Algumas estão cobertas com o tecido tradicional timorense, o tais. Dali vem uma mensagem de esperança e celebração da paz: “Quando não há nenhuma luta ou problema, os jovens timorenses vão à praia, acendem velas e deixam-nas na água a navegar. É um sinal de agradecimento pela paz”.
Timor-Leste é das nações mais jovens do mundo, mas essa independência teve um custo que Maria Madeira não esquece. “Os timorenses são um povo traumatizado e para quem ter paz é um milagre”, diz. O uso do tais, explica, é uma forma de dizer ao mundo que aquela é a sua cultura.
A separar a paz da tortura apenas duas ou três telas. Os quadros em tons rosa deixam sentimentos dúbios: se por um lado têm uma certa aura romântica, com as marcas de batom a ensaiar beijos, por outro, os fios de tinta vermelha que por eles escorrem deixam adivinhar algo de errado. A instalação “Beije e não fale” é constituída por quatro quadros que reflectem sobre a condição da mulher timorense. E têm origem numa história de arrepiar: “Quando estive em Timor pela primeira vez [depois de fugir] fiquei num quarto que tinha batom à volta da parede. Achei aquilo muito estranho e até pensei que fosse das crianças a brincar”. Uns meses depois, tendo ganhado confiança com o vizinho, perguntou-lhe qual a origem daquelas marcas vermelhas. “Ele disse-me que aquele era um quarto de tortura. As mulheres eram obrigadas a beijar a parede quando eram abusadas pelos militares indonésios”, conta.
Maria Madeira considera importante que se fale sobre a tortura e o abuso sexual de que as mulheres timorenses foram vítimas. “Fala-se sempre do herói, dos homens que lutaram, mas a mulher também sofreu, também lutou pela libertação.” Hoje, confessa, a situação é “muito melhor”. “Ainda temos dificuldades mas por pior já não vamos passar. Já há esperança, sempre esperança”, reconhece.
Macau, bambu e arroz
Na visita guiada por “Passos Familiares”, Maria Madeira faz questão de apontar dois quadros que realçam a ligação com Macau. “A primeira impressão que tive de Macau foram os prédios, com esses andares todos”, conta a artista de 42 anos. Em Timor, lembra, “não há prédios”. Ainda assim encontrou semelhanças entre os dois territórios, esses dois pontos lusófonos na Ásia: o arroz e o bambu. Madeira reparou que os andaimes de apoio à construção dos prédios em Macau são feitos em bambu, material muito comum em Timor-Leste. A gastronomia também lhe transmitiu um sentimento de proximidade: “Fiquei feliz por ir a qualquer restaurante e poder comer arroz, porque sou fã número um de arroz”.
Desta ligação nasceu “Vizinhos”, composto por um prédio, imaginado em Macau, onde nas janelas foram coladas imagens de campos de arroz e de canas de bambu de Timor.
“Ambiente Familiar” é também sobre Macau. O azul repleto de linhas que emoldura o quadro representa novamente o tais, a presença de Timor. Que aqui não é toda uma nação, mas a própria pintora Maria Madeira, que chegou a esta terra estranha e se surpreendeu pelo tanto português que por aqui encontrou. “Não sabia que havia tantos portugueses em Macau, fiquei muito espantada. Senti-me em casa quando li nomes como Avenida Almeida Ribeiro, foi bom ler o português aqui.”
“Ambiente Familiar” reflecte esse sentimento. À primeira vista é apenas um mapa de Macau desenhado à mão, onde se podem ler os nomes das principais avenidas. Mas um olhar mais atento revela por baixo o mapa de Portugal. A sobreposição de ambos é uma metáfora para o que a autora pensa de Macau. “Não falo chinês e os chineses não falam inglês, mas bastou eu dizer os nomes das ruas e eles perceberam. Macau tornou-se muito familiar por causa da língua portuguesa”, conta.
Vestir o pano guineense
Na casa ao lado está Manuela Jardim, autora de uma exposição que é fruto de um projecto de investigação sobre os panos d’obra da Guiné-Bissau. A artista, que também faz parte do serviço educativo do Museu Nacional de Etnologia português, usa os panos como inspiração para as suas obras, que reproduzem os padrões e a textura do tecido.
Os panos d’obra, oriundos de Cabo Verde e da Guiné-Bissau, “são extremamente ricos em termos etnológicos” porque “nos dão uma leitura social e política de uma época”. Tradicionalmente azuis, absorveram a influência das sedas do Oriente e ganharam também bordados a cor. Ainda hoje elaborados, contam com vários séculos de existência: “São panos que já existiam no século XV, eram muito apreciados pela sociedade guineense e também pelos navegadores portugueses”.
Os motivos são “sempre geométricos” e há quem veja neles “uma influência árabe”. A chegada dos portugueses está contada em algodão e comprova-se pela presença da simbologia associada às caravelas.
Mas não é só do passado longínquo que os panos d’obra falam. Nas colagens de Manuela Jardim vê-se um rosto familiar: Amílcar Cabral, uma das figuras mais emblemáticas da política guineense. “Em 1994, quando se deram as primeiras eleições, fizeram-se panos com a imagem de Amílcar Cabral e com outros heróis da altura da guerra. Quis reproduzir esse elemento político. Porque além do factor social, os panos também reflectem o contexto político”, explica a artista.
No entanto, é na dimensão social que reside o grande fascínio dos panos d’obra, que os guineenses vestem do nascimento à morte: “Quando a criança nasce enrolam-na numa tira de pano chamada bandarém; depois, quando a jovenzinha de 12 ou 13 anos começa a namorar, tem direito a um pano chamado dana-rosto; quando casa recebe outro pano e quando está grávida outro diferente”. Isto acontece, explica, “para que a sociedade perceba que a pessoa está a atravessar aquela fase da vida”.
A morte não é excepção: “Há uma grande tradição de enterrar com panos. Primeiro com brancos, depois com coloridos e finalmente com o canjandé, que é o maior e envolve totalmente o corpo”. Segundo Manuela Jardim, o pano d’obra “é literalmente um apêndice físico e afectivo do corpo humano na cultura guineense”.
“Agora perguntar-me-á: ‘toda a gente veste o pano?’ Não será tanto assim, estes panos são caros e é a sociedade mais abastada que os ostenta”, explica a investigadora. Os panos continuam a ser um sinal de estatuto social e é importante que sejam únicos no desenho e na elaboração. É por isso que são encomendados a um artesão, que se encontra pessoalmente com os clientes. Por vezes, estes até lhe entregam o desenho feito à mão. Depois disso, “para que ninguém conheça o segredo, o artesão desloca-se para o mato para fazer a composição final”.
África moderna
No primeiro andar da exposição encontra-se uma “África moderna”. A inspiração dos panos está lá, mas mistura-se com elementos contemporâneos como chips de computadores e CD.
O suporte é o papel reciclado, todo feito à mão. A opção não foi ao acaso. Manuela Jardim procurava um material que mantivesse a sensação rugosa dos panos, que eram feitos de algodão grosso. Não encontrou no papel liso nem na tela esse “lado humano” dos panos. Por isso escolheu amassar o papel e refazê-lo manualmente.
Responsável pelo serviço educativo do Museu Nacional de Etnologia, onde dirige workshops com crianças, Manuela Jardim dá muita importância à dimensão ecológica que está na base desta reciclagem e à utilização de materiais que, de outra forma, seriam desperdício.
O uso que faz destes materiais vai a par das tendências que observa nos artistas africanos. “Todo o processo e mentalidade criativa em África recicla-se. O dinheiro não é muito, as pessoas não têm possibilidade de chegar aos materiais, mas criam na mesma”, explica a artista plástica. “Esse processo criativo fascina-me.”
As exposições nas Casas-Museu da Taipa podem ser vistas até ao dia 20 de Novembro. A entrada é gratuita. I.S.G.
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