A fisionomia sofrida e frágil da menina camponesa sublinha a fome passada pelo povo ucraniano |
HAROLDO CASTRO - ÉPOCA
A simples menção Holodomor simboliza uma faca na alma de qualquer ucraniano. A palavra no idioma local significa “morte por fome” e remete a um dos períodos mais sombrios da história do país. Hoje, a Ucrânia considera que a fome ocorrida em 1932 e 1933 na então República Socialista Soviética Ucraniana foi provocada pela mão dos russos. O número de fatalidades varia entre 2,5 e 7,5 milhões de ucranianos, dependendo de quem faz as contas. As opiniões também divergem sobre o quanto a fome foi um ato premeditado pelas autoridades de Moscou e o quanto a natureza foi responsável por uma colheita fraca.
Estas divergências ainda existem em Kiev e algumas autoridades próximas à Rússia tendem a minimizar a tragédia. Mesmo assim, em novembro de 2006, o presidente Viktor Yushchenko (no poder entre 2005 e 2010) assinou uma lei que considera a fome de 1932-1933 como “genocídio contra o povo ucraniano” e qualifica qualquer negação pública como ilegal. O decreto também estipulou que um memorial do Holodomor deveria ser erguido em Kiev. A decisão governamental foi rapidamente implementada: em novembro de 2008 o Memorial às Vítimas da Fome na Ucrânia foi inaugurado, coincidindo com o 75º aniversário da tragédia.
O memorial está em um dos lugares mais belos de Kiev. Descemos na estação de metrô Arsenal e caminhamos por um parque arborizado com uma vista aberta para o rio Dnieper, 50 metros abaixo. Um alto e esguio monumento octogonal chama minha atenção. No topo, esculturas douradas formam uma chama simbólica. Sim, o obelisco branco pretende ser uma gigantesca vela. É o memorial que buscávamos. Antes de chegar até ele, nos deparamos com uma estátua em bronze de uma menina raquítica, guardando cinco espigas de trigo em suas mãos. Seu nome: Memória Triste da Infância.
A Vela da Memória tem 32 metros de altura e foi criada pelo artista ucraniano Anatoliy Gaidamaka. As decorações dos oito lados pretedem lembrar os desenhos dos bordados típicos do país. Na base do monumento, existem cinco cegonhas de bronze. Todas as aves douradas estão presas, uma no granito negro, outra em uma jaula, uma terceira enrolada em uma armadilha. Apenas a cegonha que está mais alta consegue se libertar. Este voo rumo ao céu simbolizaria a força do renascimento da nação ucraniana, a firmeza de seu povo e, no plano espiritual, a vida eterna.
Damos uma volta completa ao redor da base do monumento e encontramos um paredão de granito preto. Nele estão escritos os nomes dos 12 mil vilarejos que sofreram a fome. Uma rampa nos leva até o subsolo, exatamente sob a gigantesca vela. É o Hall da Memória, construído para servir como nuseu e exposição permanente. O ambiente é sóbrio, com uma atmosfera de angústia criada por uma iluminação dramática e uma música que realça a tristeza do povo ucraniano.
Assistimos a um documentário em ucraniano, legendado em inglês. O vídeo, projetado em uma tela de 360 graus, é baseado em fotos originais da tragédia: flagelados esquálidos caminham sem rumo, corpos no chão jazem sem vida ou mortos empilhados esperam por uma cova coletiva. Cada foto inspira uma cena reconstituída (regravada com atores) para explicar o horror vivido durante o Holodomor.
A tragédia toma uma dimensão ainda mais mórbida quando escuto depoimentos de indivíduos que conseguiram sobreviver ao martírio revelando que práticas de canibalismo foram a única opção para não morrer de inanição.
No vídeo, documentos buscam comprovar que o governo soviético teria usado a fome como arma para eliminar uma crescente resistência nacionalista ucraniana; que uma intenção adicional de Moscou teria sido extinguir os ucranianos e substituir a população local por colonos russos; que o confisco da produção de grãos teria funcionado como uma represália direta aos camponeses que não quiseram aderir à coletivação da agricultura nos anos anteriores; que a quantidade de grãos produzidos na Ucrânia – mas que foram retirados à força do país – teria sido suficiente para alimentar toda a população e que poderia ter evitado a fome. Atrás de cada crime, sempre o mesmo cérebro, o de Josef Stalin.
Nos intervalos entre um vídeo e outro, o telão circular recebe projeções de centenas de nomes que vagam pelo fundo escuro da sala – quase como fantasmas. Mesmo se escritos em alfabeto cirílico, consigo identicar nomes como Maria ou Anton. Colocados em podiums ao redor, estão 19 livros, divididos por regiões, que contem mais de um milhão de nomes de pessoas que pereceram durante a fome de 1932-1933.
Ainda no subsolo, o local mais emocionante é o centro do museu, colocado estrategicamente sob a Vela da Memória. Um recepiente octogonal, refletindo a mesma forma geométrica do gigantesco monumento, guarda em seu interior centenas de quilos de grãos de trigo. Os visitantes são estimulados a tocar os grãos e a sentir em suas mãos o quanto o alimento é vital para os seres vivos.
Acendo uma vela em memória dos milhões de ucranianos aniquilados de forma medonha pelo militarismo soviético. Na mente, tenho apenas a esperança de que genocídios como este nunca mais possam acontecer na história da humanidade.
*Haroldo Castro possui três paixões: contar estórias com fotos e crônicas, estar na natureza e viajar intensamente. Criou o conceito de Viajologia, que reconhece a viagem como uma escola dinâmica. Tem mais de 30 anos de experiência como fotógrafo, jornalista, diretor de documentários e estrategista de comunicação. Morou no Brasil, na França e nos Estados Unidos; trabalha em quatro idiomas e conhece 162 países. De novembro de 2009 a julho de 2010, Haroldo e seu filho Mikael realizaram a expedição jornalística Luzes da África, percorrendo 40 mil km por 18 países do continente. O objetivo foi mostrar o lado positivo da região, para que os leitores pudessem melhor compreender a África durante a Copa do Mundo.
**Fotografias no original
- Colaboração para Página Global de UCRÂNIA EM ÁFRICA
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