ANTÓNIO VERÍSSIMO
O culto de acompanharmos a atualidade noticiosa por jornais, rádios, televisões ou via internet contém só por si o sério risco de aumentar as taxas de ataques cardíacos, de suicídios e loucuras súbitas aos mais destemidos que afoitamente enveredem por aquela selva informativa. Há os que lêem só os títulos por precaução e prefiram deduzir o resto do texto exposto, há os que peguem nos jornais ao contrário por julgarem que é assim que devem fezer considerando que o país e a maior parte do mundo está de pernas para o ar. Há até aqueles e aquelas que só usam os jornais já velhos que vão apanhando aqui e ali em substituição do papel higiénico, diga-se que também na remota esperança de ensinarem o cu a ler porque consideram que os conteúdos são de merda.
“Felizes os pobres de espírito”, remata um texto bíblico. E deve ser certo. Infelizes são aqueles que sabem ler, que lêem e pensam naquilo que lêem, que todos os dias vão sobrevivendo às imensidões de mentiras dos políticos, à estupidez natural daqueles que inteligentemente parasitam e roubam recursos e paciência aos que são razão de um país existir, o povo.
Quis a infelicidade que hoje deparássemos com duas notícias deslumbrantemente doutas. A primeira: “Temporários trabalham com maior motivação e com menos stresse”, certamente proveniente da agência Lusa mas publicada no site do Jornal de Notícias. Claro que a primeira pergunta para os que ficam boquiabertos e a pensar em tal mamarracho de título será “mas como é possível?”
Que ninguém duvide que isto é mesmo verdade, que é mesmo verdade que os trabalhadores temporários andam absolutamente descontraídos e felizes da vida. Quem o diz são os dótores de psicologia. Disciplina que em tempos idos era mal quista pelos sistemas políticos por terem a tendência de serem do contra mas com o tempo foi sendo assimilada e ocupada por esse mesmo sistema e agora funciona em pleno ao serviço dos que proporcionam aos dótores aquilo com que compram os melões, as batatas, pagam às amantes e aos amantes, paga a gasolina e a casinha, etc.
Para que melhor entendam, se acaso não têm coragem para ler a notícia, no primeiro parágrafo começam por dizer: “Os trabalhadores temporários são funcionários mais motivados e menos stressados do que os restantes funcionários. Ainda assim, 80% dos temporários aspira a um contrato directo, diz um estudo da Faculdade de Psicologia de Lisboa.”
Pois claro que são mais motivados, se acaso a definição motivados pretende significar mais para o molusco que outra espécie, mais predispostos a sujeitarem-se à exploração e até a nadar em fossas acéticas se assim for vontade da entidade patronal para se recrear, a não fazerem greves ou reivindicarem direitos que lhes assistem legalmente, etc. É que se assim não agirem perdem o emprego de um minuto para o outro.
Acerca de os trabalhadores temporários serem mais descontraídos, não tão stressados como os trabalhadores efetivos… Pois, se forem jovens sem responsabilidades e a viverem em casa dos pais, o que é costume acontecer, afinal o dinheirinho que possam ganhar vai muito para as discotecas e outras modalidades afins… Além disso há sempre os pais para desenrascarem uma emergência. Porque não hão-de andar descontraídos e menos stressados?
Haverá ainda aqueles homens e mulheres, trabalhadores temporários, com responsabilidades, que já estão tão perdidos, tão infelizes, tão próximos da fossa social para que os estão a empurrar que andam sem esperanças e relaxam, comportam-se como verdadeiros autómatos e reagem de igual modo a grunhidos de um suíno, de um dótor, de um chefe ignóbil ou mau patrão. Digamos que é uma descontração por simpatia, igual à dos imensos autómatos que viajam nos transportes a seu lado ou que caminham à sua volta quando já não têm dinheiro e têm de ir a pé para o emprego. Há os que não almoçam, imensos, há os que “almoçam” uma sopinha de dois euros, sabendo que assim fizerem todos os dias estão a abusar do seu escanzelado orçamento. Descontração, pois então. As anemias são de tal gravidade que já nem podem despender forças para stressarem. É que para isso é preciso muita energia e, que se saiba, a energia para os humanos é a alimentação. Se não comem como devem… Não por acaso está cada vez mais na “moda” tirarem pacotes de açúcar dos cafés onde vão por vezes beber uma bica ou um cimbalino – que são um café igualzinho. É que o açúcar empresta energia, fugazmente mas empresta.
Chambel, a psicóloga que chegou a estas espantosas conclusões com a sua equipa e que botou palavra para a comunicação social disse em dado momento: “Na origem desta conclusão pode estar o facto de os trabalhadores temporários estarem nestas empresas há menos tempo do que os trabalhadores permanentes, podendo por isso sofrer menos desgaste no exercício do seu trabalho, ou seja, como sou temporário não estou à espera de segurança então o facto de não ter segurança não me causa transtorno", salientou a investigadora.”
A investigadora terá soprado no “balão”? Ou será que há por aqui qualquer coisa que está mal explicado? “… sou temporário não estou à espera de segurança” e “não ter segurança não me causa transtorno.” Mas afinal conclui-se que este mundo é uma maravilha, uma surpreendente maravilha. Bem como que se alguém dos trabalhadores temporários desalinhar deste figurino é anormal, é um pedaço de asno, é um revolucionário, é um odioso comuna que vê insegurança onde ela não existe, que devia de estar imensamente grato pelo facto de ter a sorte de ser um trabalhador temporário em vez de estar no desemprego porque isso é o mais certo, considerando que é o que este sistema avançado e douto, disneilandamente tecnocrata, até já considera como normal e qualquer dia até uma pequena benesse porque apesar desempregado ainda tem algum oxigénio no ar para poder respirar. Tanto assim é que, diz a douta psicóloga: “Maria José Chambel disse, ainda à Lusa, que o mundo está em mudança, o mercado de trabalho tal como era conhecido já não existe, e por isso é "melhor ser trabalhador temporário do que estar no desemprego.”
Ora pois então, não? Lapalisse não diria melhor que a douta senhora. Mas o Júlio das Medas, um ignorante por acaso muito humano e sem diplomas, diz sempre que entre a merda e o cagalhão prefere estar no último porque supõe sempre que a merda é mais diluída e que o segundo seca mais depressa e não o incomoda tanto nem o conspurca tanto. “Mas cheira mal na mesma”, diz ele do alto da sua insignificância plebeia. Parece que é o caso entre o emprego temporário e o desemprego e não haverá estudo pró-sistema conspurcado da tecnocracia que lhe valha.
Por último, para abreviar, só mais um parágrafo da cansativa e horrenda notícia que nos diz o contrário daquilo que a sociedade experimenta: “Para o provedor da Ética Empresarial e do Trabalhador Temporário, os resultados de estudos da Faculdade de Psicologia são "surpreendentes" e "contrariam lugares comuns".
Evidentemente que sim. Surpreende tudo e todos e vem provar o que muitos más-línguas dizem e garantem a pés juntos ser verdade, que este mundo está louco e de pernas para o ar. Mas esses são plebeus, nada têm que ver com a casta superior que nos quer impingir novos métodos que são tão antigos como a humanidade: enganar para dominar.
Sobre a segunda notícia, acima referida, da supressão de carreiras de autocarros e barcos da travessia do Tejo pouco se oferece dizer. É mais um douto saber de um grupo de sabem-tudo. O que não dizem é que atualmente já nos fartamos de andar a pé longas distâncias porque os preços dos transportes estão inacessíveis para muitos portugueses, neste caso moradores de Lisboa e arredores. Quanto ao Tejo… Acabar com os barcos… Muito bem, passaremos a atravessar a nado, exceto os que não sabem nadar, iô!
Já agora, a equipa estudiosa de psicologia poderia elaborar trabalho sobre o fato de sobrevivermos sem dinheiro, sem comida, sem transportes, sem casas, andar a pé e a nadar… Quase de certeza que concluiria que os portugueses ainda andam muito mais descontraídos e muito menos stressados desde que não comem. Recomende-se é que o estudo seja feito antes do médico legista reconhecer o óbito. Batota não vale, senhores “dótores”!
*Também publicado em Página Lusófona, blogue do autor.
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