JOSÉ INÁCIO WERNECK*, Bristol – DIRETO DA REDAÇÃO
Bristol (EUA) – Meus caros, se algum americano aparecer por aí na Copa do Mundo de 2014 ou na Olimpíada de 2016 queixando-se da falta de infraestrutura no Brasil, não o levem muito a sério. Nos últimos anos, desde que passei a residir no Estado de Connecticut, já passei por três emergências que me levam a considerar que não estou realmente em um país do Primeiro Mundo, mas numa Somália sem calor e sem piratas (quanto aos piratas, por sinal, não estou muito seguro, pois desconfio que se instalaram nos grandes bancos.)
Moro nas colinas de Bristol. Aliás, todo o estado de Connecticut é dominado por colinas. Nada de muito elevado, suaves ondulações. Outra característica da região foi definida numa frase famosa de Mark Twain, que morava em Hartford, a capital do estado: “You don’t like our weather? Wait a minute.” (Você não gosta de nosso tempo? Espere um minuto”.
Em outras palavras, Connecticut é um estado de bruscas mudanças de temperatura e umidade, exposto que está tanto às ondas de calor que vem do sudoeste, desde o Golfo do México, quanto a massas polares que chegam do noroeste, através do Canadá.
Nos últimos anos já fiquei três vezes sem luz, sem força, sem aquecimento, sem ar condicionado, sem água (nem para dar descarga) dias a fio, pelas seguintes causas: uma tempestade de gelo, o furacão Irene e uma inesperada nevasca durante o outono, dois meses antes da chegada oficial do inverno.
A tempestade de gelo é um fenômeno curioso e belíssimo. Ocorre quando há uma inversão térmica em que a camada de ar junto ao solo está abaixo de zero e a camada superior acima de zero. A chuva cai mas, ao tocar no chão ou nos objetos próximos ao chão, transforma-se em gelo. Toda a paisagem, todas as árvores, todos os objetos deixados ao relento ficam parecendo uma alegoria de cristal. Mas há o aspecto negativo: as ruas e estradas, recobertas do que se chama “gelo negro”, tornam-se pistas de patinação. As árvores caem, sob o peso do gelo, ocorrem acidentes seriíssimos.
O furacão é aquilo que se sabe: derruba tudo ou quase tudo em sua passagem. Lá se vão as árvores de novo e, com elas, os fios aéreos de energia.
Mas esta nevasca no outono, quando as árvores estão ainda cheias de folhas, foi a mais traiçoeira. Ninguém esperava que chegasse com tanta rapidez e tanta ferocidade. Para tornar curta uma história longa, nem sei como consegui voltar para casa com meu carro. As árvores caíram outra vez e outra vez romperam os cabos de energia. Oitocentas e trinta e uma mil residências foram afetadas
Para tornar pior a situação, há alguns anos a Prefeitura havia oferecido colocar encanamentos para dar água da cidade em nossa subdivisão (um local muito simpático, sossegado, cheio de bosques, meio rural) mas a maioria dos vizinhos recusou, dizendo que (é incrível, mas verdadeiro), a necessidade de cavar ia estragar a beleza de seus gramados. Resultado, sem a pressão de água que vem da rua e sem energia, a água do poço não sobe e ficamos sem água até para a descarga na privada.
Tudo isto, acoplado a casas enregeladas pela falta de aquecimento e noites com temperaturas abaixo de zero, nos leva a apreciar como devia ser pitoresca a vida do homem de Neanderthal.
Para além do pitoresco, há o trágico: gente que morre por intoxicação com monóxido de carbono ou por incêndios provocados por geradores ou queima de lenha em locais impróprios.
No Rio de Janeiro, morei na Barra da Tijuca, na estrada que vai para Jacarepaguá, num local muito semelhante ao que é aqui nossa “subdivision”. Mas lá, apesar das tremendas tempestades de verão, nunca fiquei tantos dias de minha vida tão desprovido das necessidades mínimas da civilização, tão longe do que se supõe ser o Primeiro Mundo, tão próximo da vida que nossos ancestrais levavam nas cavernas.
*É jornalista e escritor com passagem em órgãos de comunicação no Brasil, Inglaterra e Estados Unidos. Publicou "Com Esperança no Coração: Os imigrantes brasileiros nos Estados Unidos", estudo sociológico, e "Sabor de Mar", novela. É intérprete judicial do Estado de Connecticut.
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