Larbi Sadiki - Al Jazeera – Carta Maior
O dilema no Egito é que, enquanto as elites competem para superar e transcender a revolução, os excluídos exercem a revolução como sua única democracia. Depois de Mubarak, o jogo político permanece voltado para a disputa pelo poder político. Intencionalmente ou não, isso restringe o horizonte da política. Já o engajamento dos manifestantes assinala um ponto de inflexão da política: mobilizar a massa crítica voltada à mudança a partir dos de baixo. O artigo é de Larbi Sadiki.
O Egito está se recusando a matar o que chamo de “ethos revolucionário”. Só levando em conta suas implicações e a dinâmica na mudança da política podemos entender melhor o chamado da Praça Tahrir. Particularmente, a incapacidade das elites de responderem e corresponderem de uma maneira um pouco menos acomodada ao ethos revolucionário está no coração do retorno no Egito de seus próprios “indignados”, à luta ascendente em que dispõem dos termos do processo: o ponto de inflexão da política.
Desde o início, as relíquias políticas que deveriam ter sido jogadas na lata de lixo da história estão se mobilizando pelo afastamento dos excluídos e pela contenção da revolução no Oriente Médio árabe. As relíquias, de Riad a Damasco, nunca viram com bons olhos a marcha dos excluídos. Eles foram sacudidos e seguem sendo, à medida que a raiva, a paixão, o sacrifício e a tenacidade retomam as praças públicas em muitas cidades árabes.
No Egito e na Tunísia, conter a revolução árabe significa tentar submeter o ethos revolucionário ao democrático.
Subjacente a esse modus operandi está a tese segundo a qual os dois atributos morais desses dois momentos são mutuamente excludentes. Quer dizer, que a transição para a democracia deve ser completada com o fim da revolução. Acabar com a revolução, inevitavelmente, implica acabar com os revolucionários.
Isso pode soar bizarro, no entanto é verdade: reformar a política através da transição democrática é o primeiro passo para purgar os revolucionários e sua flama moral – os manifestantes, os excluídos e os [Mohamed] Bouazizis desse mundo.
Em busca do “modo árabe”
Desde o início, as relíquias políticas que deveriam ter sido jogadas na lata de lixo da história estão se mobilizando pelo afastamento dos excluídos e pela contenção da revolução no Oriente Médio árabe. As relíquias, de Riad a Damasco, nunca viram com bons olhos a marcha dos excluídos. Eles foram sacudidos e seguem sendo, à medida que a raiva, a paixão, o sacrifício e a tenacidade retomam as praças públicas em muitas cidades árabes.
No Egito e na Tunísia, conter a revolução árabe significa tentar submeter o ethos revolucionário ao democrático.
Subjacente a esse modus operandi está a tese segundo a qual os dois atributos morais desses dois momentos são mutuamente excludentes. Quer dizer, que a transição para a democracia deve ser completada com o fim da revolução. Acabar com a revolução, inevitavelmente, implica acabar com os revolucionários.
Isso pode soar bizarro, no entanto é verdade: reformar a política através da transição democrática é o primeiro passo para purgar os revolucionários e sua flama moral – os manifestantes, os excluídos e os [Mohamed] Bouazizis desse mundo.
Em busca do “modo árabe”
Talvez haja um “quarto modo” – redefinir a política no momento pós-autoritário, de maneira que o ethos revolucionário e o democrático operem conjuntamente, de uma forma inclusiva e não por meio de um processo de exclusão mútua.
O ethos democrático redefine a política “formal” e “sistêmica” que serve às instituições. O ethos revolucionário cultiva o espaço do “informal”, o qual reproduz e renova a revolução. O primeiro é compartilhado pelos canais competitivos, vozes e forças da política – o reino da convenção política. O segundo é o âmbito exclusivo das lutas não competitivas, no qual a colaboração e a atribuição de funções dizem respeito à reinvenção política.
A reinvenção política é o exercício contínuo do poder popular, voltado para manter a política competitiva formal “decente”. Ela é dotada de inventividade e mobilização para produzir os pontos de inflexão política. O precedente foi estabelecido no Egito, na Tunísia, na Líbia e no Iêmen.
Por mais que esteja concentrado em meu estudo sobre a democracia, eu compreendo que pode ser frustrante vê-la matar a revolução no mundo árabe. Essa é uma coisa muito fácil de se fazer, quando a luta pelo poder cega as pessoas para o valor da revolução.
Nunca antes os árabes inventaram algo tão significativo como uma revolução, desde que seus antepassados criaram (e depois abandonaram) a shura, o ethos consultivo. Ainda assim há uma pressa para encontrar uma política maior, a qual, se desenvolvida inteligentemente, poderia fornecer uma forma de contrapeso para conduzir a política árabe em equilíbrio.
Aqui está o dilema da reconstrução da democrática tanto no Egito como na Tunísia.
Revolução e Democracia
A retomada do ethos revolucionário através do retorno a Praça Tahir é brilhante. Nas vésperas das eleições marcadas para 28 de novembro, eles não estão rompendo com a transição formal tanto como estão irrompendo como uma vox populi informal. O que pode ser melhor no meio de uma transição do que escutar o povo – os excluídos e manifestantes?
Essa é a marca do grupo, a manifestação aberta, direta, imediata e espontânea da comunicação política por meio do protesto. Tivessem sido todos absorvidos pelos partidos políticos, o ethos revolucionário teria morrido.
O dilema hoje no Egito é que, enquanto as elites competem entre si para superar e transcender a revolução, os excluídos exercem a revolução como sua única democracia.
Essas elites compartilham a culpa com os militares (nomeadamente, SCAF) pelo fracasso da revolução no Egito. A pressa para se ter uma disputa convencional pelo poder torna-os culpados de dois pecados políticos cardeais.
O primeiro é dispor e exercer um formalismo político excessivo e a ambição política. Depois de Mubarak, o nome do jogo político permanece voltado para a disputa pelo poder político e pela busca do poder. Intencionalmente ou não, isso restringe o horizonte da política.
O segundo é priorizar a finalidade sobre o método. O Egito não tem um “mapa do caminho” democrático; o país planejou as eleições. As duas coisas são diferentes.
O mau uso da inteligência humana
As elites do Egito são motivo de inveja no mundo árabe. Seus recursos humanos e abundante disponibilidade na inteligência nacional continuam a ser mal aproveitados. A atual crise é um caso disso.
Não há nada de novo em culpar a burocracia militar ou a política burocrática por sufocarem a busca por uma transição civil substantiva e ordeira. O marechal Tantawi está de saída e é um alvo fácil. A atenção deveria voltar-se então para os líderes potenciais do Egito.
Mohamed El Baradei: imaginem se ele estivesse liderando uma comissão de justiça de transição. Com o seu know-how, reputação internacional e integridade, ele poderia ter sido um par de mãos seguras para ajudar a transição egípcia. Isso teria ajudado a causa das famílias dos mártires, dentre outras, cujo luto ainda está para ser enfrentado. Em vez disso ele se fixou na disputa pela presidência.
Amr Moussa: um veterano da diplomacia egípcia e pan-árabe, que teve sua participação de glória e poder. Ele é provavelmente um dos favoritos das forças armadas para a presidência – um estadista que saberia o que fazer no poder. Mas sua estatura teria sido melhor encaminhada para liderar uma comissão para negociar um esboço das funções de uma assembleia constituinte no interior do parlamento que está para ser eleito.
Mohamed Salim al-Awwa: um expert com credibilidade, em direito, cujo objetivo, talvez com o apoio indireto da Irmandade Muçulmana, de disputar a presidência não serviria ao Egito tanto como se fosse líder de uma comissão de experts que elaborasse o projeto de constituição do país.
Há um número sem fim de nomes plenos de recursos intelectuais e habilidades que poderiam conferir à transição egípcia um sentido de direção e propósito: um observatório eleitoral independente ou uma comissão, uma comissão anti-corrupção eleitoral, uma comissão judicial cujo único objetivo fosse supervisionar um julgamento justo de Mubarak e seus subordinados.
A confusão no registro de votantes do país precisa ser modernizada e atualizada, um trabalho que não pode ser feito adequadamente na pressa para garantir eleições. A mídia precisa de uma comissão especializada de reforma, também. Assim tivesse sido, uma comissão de segurança nacional teria prevenido a crise atual, caso o papel das forças armadas tivesse se voltado sistemática e legalmente para a redefinição de seu papel, para os seus direitos e obrigações, esvaziando a necessidade de princípios supraconstitucionais.
Os horizontes do ponto de inflexão
É esta ausência de capacidade institucional e de instituições para absorver e responder ao fervor revolucionário que está no coração da atual crise no Egito.
Tanto no Egito como na Tunísia, movimentos representativos amplos do ethos revolucionário, formidáveis, duradouros e altamente organizados ainda estão para ser formados. Os seus fundamentos existem, mas ainda estão para ser encampados. No entanto, o ethos revolucionário é abundante.
As elites políticas do Egito têm de reaprender a política para serem sensíveis à dinâmica do ethos revolucionário e da capacidade de protesto sem fim da juventude, se ela assim necessitar.
Note-se que as paixões da juventude e as demandas com propensão revolucionária exigem uma resposta rápida. Aqui está a tensão entre a capacidade de resistência das velhas elites e do establishment político equipados com a capacidade de resistir à inércia política e a manifestantes de uma juventude autoconfiante. Essa resistência, na verdade um mecanismo de defesa, na qual abrigaram-se durante a duradoura ditadura, não é compartilhada por aqueles que estão protestando na Praça Tahir.
A única resistência desses manifestantes diz respeito ao seu engajamento num ponto de inflexão da política: mobilizar a massa crítica voltada à mudança a partir dos de baixo.
(*) Dr. Larbi Sadiki é um professor sênior de Política do Oriente Médio na Universidade de Exeter, no Reino Unido. É autor de Arab Democratization: Elections without Democracy (Oxford University Press, 2009) e The Search for Arab Democracy: Discourses and Counter-Discourses (Columbia University Press, 2004).
Tradução: Katarina Peixoto
Fonte: http://www.aljazeera.com/indepth/opinion/2011/11/20111124102315396445.html
Fotos: Al Jazeera
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