quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

APONTAMENTOS DO LUBANGO “SÉCULO XXI” - II




Martinho Júnior, Luanda

As quebras constantes de energia e as insuficiências galopantes no fornecimento de água potável, numa região onde ela é tão abundante, resultam também do crescimento caótico do casco urbano da cidade e dum aumento exponencial de consumo não previamente planificado devido a enormes fluxos populacionais não controlados.

As pessoas estão a abandonar o campo, para se concentrarem na cidade, sem querer sair do planalto, onde o clima é mais favorável.

Dois “conceitos” prevaleceram em relação à sobrevivência dos deserdados: tudo o que é de carácter “espontâneo” e tudo o que é anárquico, caótico…

As pessoas perderam suas culturas tradicionais de origem, e ganharam subculturas completamente desajustadas no “submundo” urbano.

Os “muceques” de cimento não pintado e de telhado de zinco colaram-se à urbanização, integrando uma paisagem que se tornou saturada de tons que chocam com o verde que vai perdendo dominância, onde os arruamentos se transformam em contorcidas, poeirentas (ou lamacentas) e esburacadas ruelas, onde lixo e resíduos de toda a ordem se vão acumulando e onde se atropelam as pessoas actores de infortúnio.

O ambiente é de morte previamente anunciada, principalmente para as crianças cujos organismos em formação não possuem ainda as resistências adequadas.

Mas no Lubango também há ricos cujas propriedades se distinguem do mar de “muceques”, contrastando a sua opulência com a precariedade e pobreza do resto.

Eles constituem uma minoria e se alguns compõem uma classe média-baixa de funcionários, pequenos proprietários, pequenos comerciantes e executivos das empresas, os “remediados”, outros constituem uma autêntica burguesia, cujos tentáculos e manifestações se estenderam à cidade e pela cidade, disputando os “lugares nobres”.

A classe média-baixa habita no velho casco urbano e muitos dos componentes dessa classe, são herdeiros de gerações já idas, trabalhadores que tocam para a frente os meios que dispõem, muitos deles conseguidos com abnegação e persistência, transmitidos de geração em geração.

Os “novos ricos” que se colocaram no patamar da burguesia nacional, tornaram-se empresários, possuem investimentos, propriedades, pequenos palácios que polvilham parcelas de paisagem no meio do desamparo e ostentam o costume de se deslocarem em jactos “executivos” privados, que têm hangar próprio junto à moderna aerogare.

Os “novos ricos” precisam de se afirmar em sua riqueza fresca, que os auto-estimula e os deslumbra ao ponto da ostentação, da arrogância, do esbanjamento e da ausência de solidariedade enquanto projecto equilibrado e saudável da nossa passagem individual e colectiva pela vida.

Eles são os responsáveis pelo crescimento económico local, mas a lógica que os anima não lhes permite integrarem-se em amplas opções que enquadram efectivamente políticas de desenvolvimento sustentável.

Uma grande parte dos desamparados sobrevive em regime de marginalidade, de sub emprego ou, com um pouco de sorte, arranjando trabalho em algum empreendimento, com modestos salários, “ao nível”…

Como em todo o lado o estado é ainda o maior empregador, mas no Lubango, um empresário local que se destaca dos demais pela qualidade de gestão, iniciativa e excelente planificação das empresas e investimentos, vai cada vez absorvendo mais trabalhadores, alguns dos quais amadurecidos enquanto profissionais competentes e ao mesmo tempo submissos.

Ele dirige hoje seguramente, no conjunto dos empreendimentos, o 2º pólo de absorção de trabalho no Lubango e o carácter de sua gestão nada tem a ver com o dos outros seus “pares”.

A média-pequena burguesia é também bastante empreendedora, tirando partido quase sempre das pequenas propriedades herdadas do passado que vão desde o comércio, à restauração e aos serviços, até aos executivos do aparelho local do estado e das empresas bem geridas.

Na agricultura e na pecuária também se vai fazendo sentir a pertinácia dessa classe.

Os laços familiares no seu seio são fortes e estáveis, aptos a enfrentar todo o tipo de intempéries.

A maior parte dos “novos ricos” porém têm opções surrealistas: desde os que construíram enormes mansões com fachadas barrocas de muito mau gosto, a “lodges” 5 estrelas copiadas dos parques nacionais do Botswana com balcões voltados para os “muceques” desordenados de cimento e zinco, a casas de jogo, a “casas de campo” onde deveriam estar instalados projectos agrícolas de eleição (como no perímetro da Humpata)… há de tudo um pouco “marcando a diferença”…

Até na paisagem urbana a ausência de solidariedade para com o homem se acaba por voltar contra eles: já viram o que é “construir” um “lodge” 5 estrelas, provavelmente inscrito em roteiros internacionais disponíveis a partir do projecto “Okawango and Upper Zambezi Tourism Innitiative”, um projecto cativo das elites de África e da Europa, com panorâmica sobre os “muceques” de cimento e chapa de zinco que bordam os seus limites?

Com uma freguesia que se tornará arredia, será que esse “lodge” garante recursos sequer para a sua manutenção? Se não, onde o “feliz contemplado” continuará a ir buscar recursos?

Aparentemente essas “novas elites” não estão preparadas para a gestão de suas estruturas e investimentos: não lhes custou muito a ganhar e não se importam em esbanjar, ou até delapidar, pois encontram-se em lugares privilegiados do estado, ou do “mundo dos negócios” e supostamente vão continuar a ter acesso à riqueza e ao crédito, acima de qualquer suspeita ou tormenta.

Nas cidades onde ocorreram os maiores combates, entre elas posso citar o Huambo e o Kuito onde eu estive de passagem recentemente, a sua presença não é tão manifesta, ou então está bem diluída, não é tão manifesta efectivamente como no Lubango, onde os combates foram pontuais, não continuados, em escala reduzida e sem implicar alargados transtornos estruturais e destruições.

Foi-me dado constatar o empreendimento da Caixa de Segurança Social das FAA: uma fábrica de sumos aparentemente bem equipada, campos com árvores de fruto onde o capim vai crescendo, tudo com ar meio abandonado.

O investimento não está activo, não está a produzir e ali foram enterrados mais de 70 milhões de dólares, sem que haja prestação de contas e responsabilização…

É deveras chocante essa situação, quando se sabe por um lado que há muitos militares reformados que absorvidos há vários anos pela Caixa ainda não estão a receber suas pensões, ou ainda milhares de outros antigos combatentes que aguardam há vários anos integração no sistema de protecção social e estão longe de usufruir qualquer tipo de pensão.

A Seguradora AAA por seu turno destaca-se por uma aberração: num local dominante e sob o fundo duma montanha verde escura sobranceira à cidade, construiu três paralelepípedos de meia dúzia de andares, com arcadas na base, alinhados ao lado uns dos outros e, num plano um pouco mais distante mas ao mesmo nível, um paralelepípedo do mesmo estilo mas maior.

Os três (estão em fase de acabamento) serão hotéis de 3 estrelas e o último, um hotel maior de 4 ou 5 estrelas.

Para além de inestéticos, sob o ponto de vista de sua arquitectura, chocam com o ambiente e, para cúmulo da aberração, estão a ser pintados de cor de rosa forte!

Todas as capitais de Província vão ter hotéis desse tipo propriedade da Seguradora AAA, mas em lugar algum me pareceram mais surrealistas que no Lubango, dado o local dominante em que eles se encontram, embutidos no alto da serra e tendo a rocha em tons escuros por detrás.

… Perguntei ao meu cicerone que me recebeu com todas as atenções, se aquilo não seria o “covil da pantera” (cor de rosa)…

Consta que há uma nova empreiteira, a “AFA”, surgida da Ilha da Madeira, talvez uma precursora das médias-pequenas empresas portuguesas migrantes, que sabe-se lá através de que laços, arquitecturas e engenharias realizou as últimas obras da Leba; pelos vistos, ela teve muitos méritos financeiros e nenhuns méritos técnicos.

Efectivamente os quesitos técnicos indispensáveis para o escoamento de trombas de água em planos tão inclinados não foram tidos nem achados, segundo técnicos conhecedores e experientes dos problemas locais e o que é provável é que venha a ocorrer o mesmo fenómeno que já ocorreu na Madeira: a intempestiva tromba de água que tudo arrastou à sua passagem…

Poderia citar outros “exemplos” desses, mas importa concluir o seguinte: no meio do mar dos deserdados, um punhado de “novos ricos” ostenta suas deslumbradas credenciais, à maneira dos privilégios das castas superiores: o abismo social é por demais gritante e é por si uma prova de que a lógica capitalista neo liberal “que estamos com ela” nada tem a ver com estratégias bem concebidas voltadas para o futuro, nem com o que o movimento de libertação nacional se propunha realizar no seu “programa maior” na luta contra o subdesenvolvimento e o neo colonialismo – beneficiar por inteiro, com uma notável cultura de solidariedade, todo o povo angolano com políticas de desenvolvimento sustentável e não com crescimentos que são, sob o ponto de vista humano, completamente “contra natura”!

Os impactos nocivos deste modelo de globalização na sociedade angolana sobrevivente às guerras, se não se introduzirem desde já alterações profundas, são um muito mau augúrio para o futuro de Angola!

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