Luciana Taddeo - Enviada especial a Porto Príncipe* - Opera Mundi
Passam das 23h no horário de Porto Príncipe quando os militares brasileiros entram, armados, em um campo de desabrigados. A pé, os soldados passam pelas vielas formadas entre as barracas de lona, atentos a cada ruído. Em escuridão plena, iluminada somente pelas lanternas levadas para a patrulha, não se pode enxergar muito mais do que a passagem de pequenas sombras de ratos pelo chão.
O cheiro de urina é intenso e o percurso interminável. Alguns bancos de cimento são usados como cama por alguns desabrigados. Como em diversos pontos de Porto Príncipe, esta praça, localizada nas proximidades do Palácio Nacional, virou a moradia de milhares de haitianos após o terremoto de 7 graus na escala Richter, de 12 de janeiro de 2010, que matou mais de 300 mil pessoas e destruiu grande parte das construções da capital do país.
Dois anos depois da catástrofe, mais de 500 mil afetados pelo tremor ainda moram em barracas doadas como uma solução provisória para a situação de emergência em que ficaram os 1,5 milhão de haitianos que perderam ou tiveram que abandonar suas casas, segundo a OIM (Organização Internacional para a Migração). O Opera Mundi visitou três dos mais de 1.000 campos de desabrigados espalhados do centro de Porto Príncipe a um raio de 15 quilômetros da capital.
Marie Jana, mãe de duas pequenas haitianas, vive atualmente no maior destes campos, o Jean Marie Vincent, onde 48 mil pessoas estão acampadas em aproximadamente 1,5 quilômetros quadrados. Desde que sua casa desabou, destruindo todos os móveis, esta dona de casa tenta encontrar um emprego para poder alugar um novo lugar para morar.
Enquanto não consegue trabalho, lamenta da vida que leva há quase dois anos no Jean Marie Vincent: “Sofro muito, todos os dias, desde o terremoto. Todas as barracas têm furos, e quando chove temos muitos problemas com goteiras e inundação das barracas. Pedimos soluções, mas ninguém se responsabiliza”, diz.
Outro ponto crítico da vida no acampamento, afirma, é a violência sexual contra as mulheres. “Por sorte, meu marido só sai para trabalhar durante o dia, para trazer coisas para que possamos viver. Mas várias noites, acordei com bandidos iluminando o interior da minha barraca. Eles passam com lanternas, de uma em uma, escolhendo em qual barracas vão entrar”, conta.
“Aqui não é seguro, não. Só estou tranquilo assim por que estamos com os soldados brasileiros aqui. Mas quando os militares estão longe, há muitos problemas nestes campos”, admite Pierre Andregene, que trabalha como tradutor do Exército brasileiro.
Os fuzileiros navais responsáveis pela segurança da região onde o Jean Marie Vincent está localizado confirmaram que a violência aumentou na semana em que a reportagem esteve no campo: “No começo de novembro, cinco corpos foram encontrados neste campo”, disse o fuzileiro naval Renato Gomides. “Então solicitamos à polícia haitiana para que aumentasse a presença de agentes e começamos a fazer mais operações conjuntas com Polícia Nacional do Haiti para identificar os suspeitos."
O chefe de Relações Publicas da Polícia Civil da ONU, Raymond Lamarre, por sua vez, nega o aumento da insegurança no período. “As estatísticas de crimes nos campos de desabrigados mostram que a violência está diminuindo”, argumenta. Segundo ele, há problemas com gangues que circulam nos campos, mas a maioria dos crimes é cometida do lado de fora. “Muitas vezes os campos só são utilizados para esconder os corpos”, afirma outro fuzileiro naval.
Depois de passar pelos campos de desabrigados, os militares brasileiros passam por uma rigorosa rotina de higiene antes de entrar nas bases: limpam as botas em uma solução de cloro, lavam as mãos e terminam a esterilização com boa dose de álcool em gel. As medidas de controle sanitário impressionam quando comparadas com a situação encontrada nos campos de desabrigados, onde há uma média de uma latrina ou vaso sanitário para cada grupo de 112 pessoas e somente 18% conta com lavatórios para as mãos, segundo a Rede Haitiana de Direitos Humanos.
A organização aponta ainda que em outras regiões do país, como Petit-Goave, a situação sanitária piora: uma latrina ou vaso sanitário é usada por 141 pessoas, um chuveiro por 185 e os campos não contam com nenhum centro de saúde. Segundo os dados, somente 48% dos haitianos desabrigados pelo terremoto têm acesso à água potável, condição que explica a rápida expansão da epidemia de cólera no país, que já causou quase sete mil mortes e contaminou mais de 520 mil pessoas.
Stanley Schiveger, também desempregado, conta que foi morar em uma barraca no Jean Marie Vincent após sua casa ser destruída pelo terremoto. “Eu não tinha como continuar morando lá, então vim para o campo junto com todo mundo. Vim achando que o governo faria uma coisa para melhorar a situação de miséria das pessoas prejudicadas, sempre que me pediam para participar de alguma atividade, eu participei”, explica, queixando-se da falta de solução para os problemas do acampamento.
“Tem muita violência e lixo, e ninguém faz a limpeza dos banheiros. Para mim, o futuro das pessoas daqui está nas mãos do governo e esperamos qualquer ação para mudar esta situação. Pode ser outro lugar para morar ou um emprego”, acrescenta Schiveger.
Outro problema vivido diariamente pelos deslocados após o terremoto são as ameaças constantes de pessoas incomodadas com a presença de acampados. O dono de um campo de golfe que foi completamente tomado pelas barracas de emergência já ameaçou diversas vezes ingressar no local com um trator para desocupá-lo e os vizinhos do Jean Marie Vincent, furiosos com a falta de condições de higiene no local, ameaçam colocar fogo no campo de desabrigados, segundo relatam militares brasileiros.
Na última quinta-feira (05/01), o governo haitiano anunciou que o acampamento localizado nas proximidades do aeroporto Toussaint Louverture, em Porto Príncipe, será removido. Em uma entrevista à rádio Metrópole, o chanceler Laurent Lamothe afirmou que os desabrigados que habitavam o local desde o terremoto receberam 500 dólares para abandonar o local.
Organizações de Direitos Humanos presentes no país reprovaram a medida, que consideram insuficiente, por não resolver os problemas habitacionais dos deslocados. O chanceler, por sua vez, justificou a decisão: “É importante que o Haiti mostre outra imagem aos visitantes que cheguem ao país”, afirma, em referência à pobreza dos acampamentos que já não será vista pelos turistas que desembarquem de um avião no Haiti.
*A reportagem viajou a convite do Ministério da Defesa do Brasil.
- Galeria - Haiti: dois anos depois do terremoto (fotos por Aldo Jofre Osorio)
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