domingo, 22 de janeiro de 2012

O que “Vale”o preço do desenvolvimento? - Vale do Brasil e governo moçambicano



A Verdade (mz)

Mais de 700 famílias reassentadas pela empresa brasileira Vale (Moçambique) na região de Cateme, Distrito de Moatize, Província de Tete, insurgiram-se na madrugada do dia 10 de Janeiro de 2012, protestando contra a constante violação de seus direitos e as péssimas condições de vida a que estão sujeitas pela Vale sob o olhar passivo do Governo de Moçambique desde finais de 2009, altura do seu reassentamento.

Durante os últimos três anos a Organização Não Governamental Justiça Ambiental(JA) tem desenvolvido um intenso trabalho de monitoria, confrontada com denúncias e queixas relatando irregularidades no contexto do processo de reassentamento involuntário resultado da implantação do projecto de Mineração da Vale. Entre os dias 25 e 26 de Outubro último decorreu em Maputo, o Seminário sobre Responsabilidade Corporativa em Moçambique, organizado em parceria pela KEPA e JA.

Durante o encontro, a voz das comunidades de Moatize ergueu-se mais uma vez, denunciado os impactos e violações da Vale como um grito de socorro para as autoridades governamentais nacionais e organizações da sociedade civil que advogam em prol do respeito e promoção dos direitos humanos. A Justiça Ambiental aproveitou a oportunidade da presença dos representantes das comunidades de Moatize em Maputo para agendar dois encontros com os Ministérios dos Recursos Minerais e da Administração Estatal. Em seguida, a JA em representação das comunidades reassentadas pela Vale teve um encontro com a Comissão dos Assuntos Sociais, Género e Ambiente da Assembleia da República onde submeteu uma Carta Queixa e uma petição. Cópias desta documentação foram entregues pelos reassentados ao Governador de Tete, Direcção Provincial dos Recursos Minerais e Energia de Tete e Ministérios dos Recursos Minerais e da Administração Estatal solicitando a intervenção destas entidades para a resolução urgente dos seus problemas. Entretanto, todas as diligências feitas pelas famílias e por diversas organizações entre as quais a Justiça Ambiental foram em vão e ignoradas.

Durante três dias (13, 14 e 15 de Janeiro) a equipa da Justiça Ambiental trabalhou na cidade de Tete, Vila de Moatize, Bairro 25 de Setembro e na região de Cateme, onde manteve vários contactos com os Governos provincial e Distrital, Comando Distrital de Moatize, Posto Policial de Cateme, líderes comunitários e secretários de Bairros de Cateme, professores, jornalistas da rádio Moçambique, Savana, STV, Canal de Moçambique, Fórum das ONGs de Tete, Associação de Apoio e Assistência Jurídica às Comunidades, Liga dos Direitos Humanos e várias pessoas reassentadas em Cateme e vítimas da FIR e da PRM.

De acordo com as informações obtidas, a manifestação ocorrida resulta de uma concertação entre as mais de 700 famílias dos quatro bairros ou povoados e seus respectivos líderes e secretários de bairro. Cansados da falta de interesse e resposta da Vale e do Governo face ao incumprimento dos acordos e promessas estabelecidos entre a Vale e a população durante as reuniões de consulta pública, as mais de 700 famílias e seus respectivos líderes e secretários decidiram enviar uma carta à Vale e ao Governo no dia 20 de Dezembro de 2011 dando um último alerta para a resolução de seus problemas. Nesta, os reassentados informaram aos mesmos que caso não obtenham resposta até ao dia 10 de Janeiro de 2012, se iriam manifestar, facto que veio a acontecer.

Esta manifestação iniciada por volta da 1 hora da madrugada, teve participação massiva dos reassentados estimada em mais de 600 pessoas e incluiu a colocação de barricadas bloqueando as vias de transporte ferroviário e rodoviário que passam pela região de Cateme. A paralisação abrangeu a linha férrea que liga a Vila de Moatize e o Porto da Beira através da qual é transportado o carvão extraído pela Vale em Moatize, e a estrada que faz a ligação entre a Vila de Moatize e a região de Cateme. Como resultado, o Comboio de transporte de carvão da Vale já carregado e em marcha para o Porto da Beira teve de recuar ficando retido em Moatize.

Durante as manifestações, de carácter pacífico e consagradas na Constituição da República de Moçambique, o Governo de Moçambique a nível do Distrito de Moatize e da Província de Tete, com recurso à Polícia da República de Moçambique-PRM e à Força de Intervenção Rápida-FIR, reprimiu brutal e violentamente as famílias reassentadas em Cateme. De acordo com a informação obtida, o Comandante da PRM e o seu batalhão, incapazes de dispersar os reassentados ordenou a vinda da FIR para Cateme.

Curiosamente, encontra-se instalada uma unidade da FIR alimentada por fundos da Vale junto da estrada Nacional Nº 103 que liga a cidade de Tete ao Malawi passando por Zóbwe e cruzamento da estrada de terra planada que vai para Cateme. Por volta das 10 horas do dia 10 de Janeiro a FIR chegou ao local e o som da sua sirene atraiu os reassentados ao local pensando estes que finalmente teriam uma oportunidade para ouvir o Governador ou o representante da Vale. No entanto, de imediato a FIR começou a agredir violentamente os reassentados fazendo com que estes fugissem para as suas casas.

Durante a sua intervenção, a FIR fez rusgas às casas arrombando portas e com recurso a chambocos, pontapés e murros agrediu várias pessoas, dentre estes 14 jovens foram capturados e encarcerados, durante cerca de 3 horas no Posto Policial local. Mais tarde, 5 dos detidos foram soltos e os outros 9 foram transferidos para as celas da cadeia da Carbomoc na Vila de Moatize onde permaneceram durante dois dias e duas noites sem alimentação adequada e submetidos a torturas e maus tratos por agentes da PRM e só vieram a ser libertados no dia 12, após intervenção da Procuradoria.

Dois dos detidos apresentam ferimentos nas nádegas e sinais de vários golpes no corpo. De entre as vitimas entrevistadas, seguem-se os exemplos: Um professor afecto ao Distrito de Namacurra na Zambézia foi violentamente agredido em casa durante uma visita à sua esposa e família em Cateme. Encontra-se com o braço e as mãos gravemente inchadas desde o dia 10, tendo recebido primeiros socorros no Posto de saúde local, onde recebeu uma guia de transferência para o Hospital Provincial para tratamentos e exames adicionais incluindo o Raio X. Até 15 de Janeiro ainda não se tinha apresentado no Hospital Provincial por falta de recursos para custear as despesa de transporte e de tratamento.

O professor exige agora que a PRM e a FIR assumam a responsabilidade e apela a urgente resolução dos problemas dos reassentados. Um residente na cidade de Tete e de visita a Cateme no momento da manifestação foi agredido violentamente pela FIR. Uma bala verdadeira causou lhe um ferimento ligeiro no pé. Os murros e chambocos provocaram problemas graves a nível dos órgãos internos. A FIR e a PRM quando se aperceberam que o cidadão não tinha nada a ver com a manifestação soltaram-no.

Encontra-se neste momento internado no bloco de Cirurgia do Hospital Provincial de Tete, com dores fortes em diversas partes do corpo, a urinar sangue e com dificuldade. Um deficiente visual conta que a FIR chegou à sua barraca em Cateme, onde se encontrava com outros familiares e forçou-o a sair da mesma. Apesar de informada que o senhor era portador de deficiência visual e em tratamento no Hospital Provincial de Tete e no Malawi, a FIR ignorou o facto, tendo insistido para que andasse, empurrando-o pela camisa que ficou em pedaços. Diante da impossibilidade de se locomover, a FIR agrediu-o fisicamente alegando que se tratava de fingimento.

A agravar a situação e num gesto desumano a FIR lançou gás lacrimogéneo sobre os seus olhos, e este de imediato desmaiou. Depois desta acção criminosa, a FIR levou-o para o Posto Policial de Cateme onde ficou detido por algumas horas até que o seu sogro apresentou as provas da sua deficiência e exigiu a sua soltura. Entretanto, apesar de todas as evidências e factos relatados, o Comandante Distrital de Moatize Jaime Samuel Mapume afirma desconhecer os casos de tortura e a onda de maus tratos a que os detidos foram vítimas na cadeia da Carbomoc.

O Governador de Tete Alberto Vaquina referiu não ter elementos suficientes para classificar a actuação da PRM e da FIR afirmando “o que eu sei é que a força usada (pela PRM e FIR) foi a proporcional para dispersar a população”. As manifestações do dia 10 de Janeiro de 2012, são o culminar de um longo processo caracterizado por promessas falsas e total falta de respeito, transparência, consideração e ética para com as famílias reassentadas, onde os acordos alcançados entre estas e a Vale durante o processo de consulta pública aparentam não ter qualquer validade, com a cumplicidade e conivência das entidades governamentais, agravando e perpetuando as já tão difíceis condições de vida a que as famílias reassentadas estão sujeitas desde finais de 2009.

As comunidades protestam contra o processo de reassentamento desde o início mal conduzido; infra-estruturas de má qualidade e sem condições de habitação; dificuldade de acesso à água, terra e energia; terra imprópria para a agricultura; fome aguda e subnutrição de crianças; incumprimento de promessas de indemnização; restrição na circulação de pessoas e bens através da instalação da vedação à volta da Vila de Moatize e das vias de acesso aos recursos; incumprimento da promessa de provisão trimestral de produtos alimentares durante os primeiros cinco anos de reassentamento; Incumprimento das responsabilidades do Estado de monitorizar todo o processo de reassentamento e garantir o cumprimento total e integral das obrigações da Vale Moçambique para com os afectados; Conflitos de terra com as comunidades originárias de Cateme; Falta de meio de transporte para a circulação de pessoas e bens; permanente abandono e desamparo a que as comunidades reassentadas foram sujeitas pelas instituições de Justiça, do Estado, do Governo, às quais têm recorrido nos últimos dois anos com vista à reposição dos direitos violados através de petições, queixas e reclamações sem resposta.

A 17 de Janeiro, em sequência dos acontecidos acima referidos deu-se um encontro entre o Governador de Tete, Alberto Vaquina, e as famílias reassentadas, cerca de 500, no Bairro 25 de Setembro, na Vila de Moatize. Várias fontes presentes na reunião com o Governador de Tete contactaram a Justiça Ambiental durante a tarde do dia 18/01/2012 denunciando aquilo que consideram ameaças feitas pelo Governador.

"Alguns membros do Governo Distrital de Moatize e de Tete receberam dinheiro da Vale e estão a comer com a Vale. É por isso que não querem ouvir as nossas reivindicações e resolver os nossos problemas" disseram a Vaquina as famílias reassentadas no bairro 25 de Setembro, na sua maioria funcionários do aparelho do Estado e do Governo.

"Nós queremos voltar para as nossas zonas de origem. Só aceitamos sair de lá e sermos reassentados por causa das promessas que a Vale se comprometeu a cumprir. A Vale se comprometeu a repor condições iguais ou melhores das que nós já tínhamos. Prometeu que durante 5 anos iria prestar todo o apoio necessário e assistência técnica e manutenção das novas infra-estruturas. Mas agora nada disso está a cumprir, temos falta de escolas, água, energia, terra para a agricultura. Estamos a passar fome. Falta quase tudo e nós estamos a sofrer."

Acrescentaram os populares do Bairro 25 de Setembro indignados com a falta de soluções do Governo. Alberto Vaquina não gostou destas acusações, respondendo "se vocês falam assim devem denunciar as pessoas do Governo que comem com a Vale... Vocês não podem lançar críticas aos membros do Governo porque nós somos Governo e podemos fazer tudo o que podemos dentro das nossas competências".

A população não gostou do discurso de Vaquina e interpretou-o como ameaça grave contra as famílias reassentadas que estão a sofrer com os impactos negativos da Vale. O Governador de Tete é citado ainda pelas nossas fontes como tendo ficado bastante indisposto com a população e acabou por interromper o encontro à pressa retirando-se sem explicação. Diante desta atitude de Vaquina, as mais de 500 famílias residentes naquele Bairro ficaram desiludidas com o seu Governador e saíram do encontro insatisfeitas com a maneira como o executivo de Tete tem estado a lidar com os seus problemas.

"Nós não vamos parar. Nem tão pouco as ameaças do Governador farão com que desistamos das nossas reivindicações, porque elas são legítimas e são dirigidas à Vale em primeiro lugar e ao próprio Governo como nosso Pai" disse uma das fontes bem identificadas que telefonou para a Justiça Ambiental para depois acrescentar que "...avançaremos com outras formas de reivindicações e continuaremos a denunciar a cumplicidade existente entre a Vale e alguns membros do nosso Governo. Faremos tudo que estiver ao nosso alcance e intensificaremos os nossos mecanismos de exigência até que estejamos satisfeitos. Esperamos por uma decisão definitiva e favorável do nosso Governo.”

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