Francisco Luque - De Buenos Aires – Carta Maior
A rede ferroviária estatal argentina tinha 40.000 km e nela trabalhavam 190.000 empregados. Era a mais extensa da América Latina e, de certo modo, a coluna vertebral de um país. A história do desmonte desse sistema começa nos anos 60, quando montadoras estadunidenses e o Banco Mundial impulsionaram o Plano Larkin para desarmar a rede ferroviária do país, chegando até a reforma do Estado dos anos 90, quando o neoliberal Carlos Menem desmontou o Estado, privatizando todo seu patrimônio. O artigo é de Francisco Luque.
Buenos Aires - Ao se completar um mês do trágico acidente ferroviário da linha Sarmiento, na Estação de Once, em Buenos Aires, que deixou 51 mortos e 703 feridos - três deles continuam hospitalizados -, ainda escuta-se o barulho. O barulho das famílias das vítimas que pedem maior celeridade à justiça para esclarecer as causas diretas do acidente e estabelecer quem foram os responsáveis. Também o ruído de uma sociedade ainda chocada que quinta-feira pela manhã, às 8h30min, a mesma hora da colisão, fez soar as buzinas de seus carros em lembrança das vítimas. Mas há outro ruído, talvez mais permanente e profundo, e é o ruído do saque do qual foi objeto o sistema ferroviário argentino.
A Justiça argentina investiga as responsabilidades imediatas da tragédia, mas para os especialistas, as causas que produziram este acidente estão nos processos sociais e econômicos que a Argentina viveu nos últimos 60 anos. A busca chega até aos anos sessenta, quando as montadoras estadunidenses instaladas na Argentina, impulsionaram o Plano Larkin – implementado por sua vez pelo Banco Mundial, para desarmar a rede ferroviária argentina –, até a reforma do Estado dos anos noventa, quando o neoliberal Menem desmontou o Estado, privatizando - saqueando?- todo seu patrimônio.
Historicamente, a rede ferroviária estatal argentina tinha 40.000 km e nela trabalhavam 190.000 empregados. Era a mais extensa da América Latina e era, de certo modo, a coluna vertebral de um país. A Argentina havia se estruturado em povoados que nasceram ao longo desses trilhos. Era um país solidário e inclusivo, com acesso aos centros nevrálgicos de produção e participação nas definições sobre um conceito de país.
O saque começou na ditadura de 1976, quando não só se usurpavam vidas, mas também bens. Era a destruição planejada do Estado e do patrimônio nacional acumulado durante o século XX com o objetivo de consolidar o capital financeiro e os grupos econômicos.
Quando a ditadura se instalou, a condução da área de Transporte ficou radicada no Ministério de Economia através da Secretaria de Transporte e Obras Públicas. Ali se elaborou um plano de ação para retomar as medidas de racionalização recomendadas 15 anos antes pelo Plano Larkin para pôr em prática a privatização periférica (vazamento lento e progressivo, somado à terceirização de investimentos, atividades e serviços de empresas privadas) da estatal Ferrocarriles Argentinos. O resultado? Fechamento de ramais antieconômicos, supressão de trens de passageiros de baixa utilização, fechamento de oficinas redundantes, fechamento de estações, supressão da tração a vapor, etc.
Entre 1976 e 1980 foram abandonadas cerca de 600 estações, reduziram-se trens de passageiros interurbanos e locais do interior em 30% e fecharam-se 5500 km de linhas secundárias. Só nas oficinas, a quantidade de pessoal reduziu-se de 155 mil empregados em 1976 para 97 mil em 1980, segundo o livro “Nueva Historia del Ferrocarril en Argentina”, de Mario López e Jorge Waddol. A desconexão do país e a intensa eliminação de oficinas contribuíram para a decadência e desaparição de uns 700 povoados, e a aceleração da pobreza e da desigualdade.
Com Menem, nos anos 90, e a influência do neoliberalismo em escala planetária, decidiu-se arrasar com o sistema de trens e aplicou-se a célebre frase do presidente: “Cirurgia maior sem anestesia”. 600 povoados desapareceram. Oitenta mil trabalhadores ferroviários foram despedidos. A imprensa fiel ao período de “pizza com champanhe” informava que os trens perdiam um milhão de dólares diários sobre uma rede de 35.000km. Havia que fechá-la ou privatizar o pouco que restava. Foi a amostra feroz da cumplicidade do poder político com os grupos econômicos.
Na atualidade subsistem uns 7.000km de vias maltratados e trens que não podem avançar a mais de 40 km por hora. Cerca de 20.000 pessoas trabalham no ramo. A maioria dos vagões tem entre 40 e 50 anos; os trilhos são instáveis, as janelas quebram e não são consertadas, as portas não fecham.
A Justiça argentina investiga as responsabilidades imediatas da tragédia, mas para os especialistas, as causas que produziram este acidente estão nos processos sociais e econômicos que a Argentina viveu nos últimos 60 anos. A busca chega até aos anos sessenta, quando as montadoras estadunidenses instaladas na Argentina, impulsionaram o Plano Larkin – implementado por sua vez pelo Banco Mundial, para desarmar a rede ferroviária argentina –, até a reforma do Estado dos anos noventa, quando o neoliberal Menem desmontou o Estado, privatizando - saqueando?- todo seu patrimônio.
Historicamente, a rede ferroviária estatal argentina tinha 40.000 km e nela trabalhavam 190.000 empregados. Era a mais extensa da América Latina e era, de certo modo, a coluna vertebral de um país. A Argentina havia se estruturado em povoados que nasceram ao longo desses trilhos. Era um país solidário e inclusivo, com acesso aos centros nevrálgicos de produção e participação nas definições sobre um conceito de país.
O saque começou na ditadura de 1976, quando não só se usurpavam vidas, mas também bens. Era a destruição planejada do Estado e do patrimônio nacional acumulado durante o século XX com o objetivo de consolidar o capital financeiro e os grupos econômicos.
Quando a ditadura se instalou, a condução da área de Transporte ficou radicada no Ministério de Economia através da Secretaria de Transporte e Obras Públicas. Ali se elaborou um plano de ação para retomar as medidas de racionalização recomendadas 15 anos antes pelo Plano Larkin para pôr em prática a privatização periférica (vazamento lento e progressivo, somado à terceirização de investimentos, atividades e serviços de empresas privadas) da estatal Ferrocarriles Argentinos. O resultado? Fechamento de ramais antieconômicos, supressão de trens de passageiros de baixa utilização, fechamento de oficinas redundantes, fechamento de estações, supressão da tração a vapor, etc.
Entre 1976 e 1980 foram abandonadas cerca de 600 estações, reduziram-se trens de passageiros interurbanos e locais do interior em 30% e fecharam-se 5500 km de linhas secundárias. Só nas oficinas, a quantidade de pessoal reduziu-se de 155 mil empregados em 1976 para 97 mil em 1980, segundo o livro “Nueva Historia del Ferrocarril en Argentina”, de Mario López e Jorge Waddol. A desconexão do país e a intensa eliminação de oficinas contribuíram para a decadência e desaparição de uns 700 povoados, e a aceleração da pobreza e da desigualdade.
Com Menem, nos anos 90, e a influência do neoliberalismo em escala planetária, decidiu-se arrasar com o sistema de trens e aplicou-se a célebre frase do presidente: “Cirurgia maior sem anestesia”. 600 povoados desapareceram. Oitenta mil trabalhadores ferroviários foram despedidos. A imprensa fiel ao período de “pizza com champanhe” informava que os trens perdiam um milhão de dólares diários sobre uma rede de 35.000km. Havia que fechá-la ou privatizar o pouco que restava. Foi a amostra feroz da cumplicidade do poder político com os grupos econômicos.
Na atualidade subsistem uns 7.000km de vias maltratados e trens que não podem avançar a mais de 40 km por hora. Cerca de 20.000 pessoas trabalham no ramo. A maioria dos vagões tem entre 40 e 50 anos; os trilhos são instáveis, as janelas quebram e não são consertadas, as portas não fecham.
Néstor Kirchner herdou a pior crise econômica da história da Argentina. E muito não pôde fazer com respeito aos trens, entendido como um serviço público indispensável. Manteve-se um funcionamento deficiente compensado com uma tarifa congelada – quase simbólica -, outorgando subsídios à concessionárias, administradores do funcionamento - sem os controles adequados. Recuperaram-se alguns ramais ferroviários, mas sem melhoras em infraestrutura e adquiriu-se material descartado em seus países de origem pelos anos de uso.
“Os subsídios às empresas privadas sem controles efetivos do Estado são mais uma página sombria na continuação de um “Estado Hood Robin”, como o batizou outrora o jornalista Horacio Verbitsky, onde se paga para que continuem crescendo empresas privadas à custa de cada argentino. Em outras palavras, “se tira do pobre para dar ao rico”, sustenta a analista Maria Seoane.
As empresas concessionárias foram a grande dor de cabeça do sistema ferroviário nos últimos tempos. Como bem aponta o jornalista Hernán Brienza: “a política de subsídios pensada desde 2003 para que milhões de argentinos humildes possam viajar a preços irrisórios acabou sendo letal em mãos do grupo concessionário que mais controle e poder tem sobre os trens”. Grupos empresariais beneficiados como o da família Cirigliano, concessionária do Trem Sarmiento TBA, entre outras, teve um crescimento econômico exponencial durante os últimos anos, e, como afirma Edgardo Reynoso, secretário da União Ferroviária, os trens da linha dos Cirigliano continuam circulando "à beira do desastre". Esta concessionária está sob intervenção do Estado desde o acidente.
Para a classe trabalhadora, a solução é clara: que os concessionários vão embora e que se reestatizem todos os trens em uma empresa só, sob o controle dos trabalhadores e dos usuários. Essa é a única possibilidade de solução para o atual estado calamitoso da ferrovia, sustentam.
Passado um mês da tragédia de Once, entre aplausos, buzinas e pedidos de "justiça", centenas de pessoas protestaram na estação de trens pedindo o esclarecimento do acidente.
Tradução: Libório Junior
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