sexta-feira, 2 de março de 2012

Moçambique: UMA POPULAÇÃO ESQUECIDA



Hermínio José – A Verdade (mz)

A pobreza extrema por que passa uma esmagadora maioria do povo moçambicano é uma característica comum das zonas recônditas, onde conseguimos identificar o Moçambique real. Gadzene, uma localidade do distrito de Marracuene, é disso exemplo. Aliás, os seus moradores defendem que ela já não faz parte deste país.

As povoações que a compõem, nomeadamente Xefina, Mhumtanhane, Nwamathe e Chihango, de diferente têm apenas o nome pois as dificuldades são as mesmas. Falta de tudo um pouco: hospitais, escolas, estradas, fontes de abastecimento de água.

Na povoação de Mhumtanhane, onde as habitações (de construção precária) estão distantes umas das outras, encontrámos Samuel Zanane, de 52 anos de idade, casado e pai de quatro filhos. Vive naquela zona há sensivelmente 25 anos. “Vim para esta zona depois da guerra civil. Vivia na vila da Manhiça, onde tinha uma casa de alvenaria. Os guerrilheiros fizeram questão de destrui-la”.

Quando saiu da Manhiça, tinha a esperança de encontrar em Gadzene um lugar tranquilo, onde pudesse reconstruir a vida e, talvez, esquecer as sequelas da guerra dos 16 anos. “Vi a minha casa ser reduzida a escombros, os meus bens saqueados e pessoas a serem mortas indiscriminadamente. Queria esquecer tudo isso, mas não é possível. Vivemos na pobreza, não temos alternativas”.

Os quatro filhos de Samuel têm idade escolar mas nenhum deles teve a oportunidade de estudar porque o pai não tem condições para os matricular. Ainda que tivesse dinheiro, não há uma instituição de ensino por perto. A escola mais próxima situa-se a dez quilómetros, uma distância que dificilmente as crianças podem percorrer, sobretudo quando não existe transporte.

Viver de frutos silvestres

Joana Tamele, uma mulher de 45 anos de idade, é viúva e mãe de dois filhos, ambos menores de idade. Quando viu os nossos repórteres começou a lacrimejar, numa clara demonstração de desespero no qual ela e os restantes moradores vivem.

“Meus filhos, estamos a pedir socorro. Não temos o que comer, vivemos de frutos silvestres. Os preços dos produtos de primeira necessidade são proibitivos”, queixa-se. A título de exemplo, o quilograma de arroz custa 37 meticais, o de açúcar entre os 37 e 42 meticais.

“Desde que começou o ano, ainda não comemos arroz aqui em casa, não temos dinheiro e ninguém que nos ajude. O meu marido está doente há dois meses. Ele é desempregado. Não temos hospital, por isso não estou em condições de dizer de que tipo de doença ele padece”, diz. As únicas unidades sanitárias a que se pode recorrer são as de Albasine e Marracuene, a cerca de 20 quilómetros.

Educação

Não é só da falta de hospitais que os moradores de Gadzene se queixam, mas também de escolas. Das três existentes, localizadas em Xefina, Mhumtanhane, e Chihango, nenhuma delas lecciona o nível secundário.

Depois de concluírem a sétima classe, as crianças só podem continuar os estudos nos bairros Albazine, Romão, Ferroviário das Mahotas e na vila de Marracuene, uma tarefa nada fácil uma vez que têm de andar mais de 30 quilómetros, o que leva a que muitos petizes desistam de estudar.

“Se tivéssemos mais escolas, pelo menos duas em cada povoação, as crianças não estariam a sofrer tanto para estudar. O pior é que não temos transporte”, comenta Salvador Mabote, líder religioso de Chihango.

As crianças preferem a pesca à escola

Felizmente, em Gadzene existem muitas crianças, as que seriam os futuros dirigentes deste belo Moçambique. Porém, quase todas não vão à escola. Dedicam-se à pesca. Algumas interromperam os estudos ainda cedo para se engajarem na actividade piscatória, outras nem sequer sabem o que é estar no banco da escola.

Elas imitam o que os pais e outras pessoas mais velhas fazem ou deviam fazer em prol do seu sustento. Pegam no barco a remo, fazem-se ao mar nas primeiras horas do dia e só regressam ao cair da tarde. Neto João é um deles.

Era aluno da Escola Primária de Chihango mas teve de deixar de estudar na terceira classe porque os pais já não tinham dinheiro para custear as despesas de transporte e material escolar. “Parei de estudar porque já não conseguia ir a pé todos os dias à escola. Para eu não ficar em casa ou roubar coisas alheias, preferi dedicar-me à pesca”, afirma.

Neto tinha de percorrer uma distância de cerca de 10 quilómetros para chegar à escola, o que perfazia 20 quilómetros, tendo em conta que ia e voltava a pé.

Sorte diferente (e mais triste) teve João Cossa pois nunca teve a oportunidade de se sentar numa carteira e aprender a ler e a escrever porque, segundo o pai, Arlindo Cossa, a vida está difícil.

“Eu vivo aqui no Ka Nwamathe há muito tempo e não há uma escola sequer. O meu filho não pode conseguir caminhar mais de 10 quilómetros todos os dias para chegar à escola”, justifica-se.

Por isso, Arlindo Cossa achou melhor ensinar o filho a pescar para que, no futuro, não passe pelas mesmas dificuldades que ele. “Ele é meu ajudante e quero que os meus filhos abracem esta profissão. Estou nesta área há 30 anos”.

Elevado custo de vida

Numa zona em que os preços dos produtos alimentares são diametralmente opostos ao poder de compra das populações, é normal que haja famílias que não podem comer arroz, pão, entre outros bens. Não porque lhes falta vontade para tal, mas porque não têm condições para adquiri-los.

“Nós às vezes tomamos chá sem açúcar e pão. Fazemo-lo apenas para aquecer a garganta. A última vez que comemos arroz aqui em casa foi na quadra festiva do ano passado, quando o meu marido conseguiu fazer um biscate”, afirma Elisa Manecas, moradora de Chihango.

Alguns comerciantes abordados pela nossa reportagem alegam que a alta de preços se deve ao elevado custo de transporte. “Eu tenho usado a via de Hulene, onde o “chapa” custa 50 meticais, e qualquer carga que o passageiro traga também tem o seu preço. Preferimos aquela via porque os carros circulam a qualquer momento. No Albasine só circulam uma vez por dia e nós (os comerciantes) não podemos estar reféns dos ´chapeiros`. O nosso trabalho não pode parar”.

Noites escuras

A falta de corrente eléctrica é um outro problema que faz com que os residentes de Gadzene se sintam excluídos do actual processo de governação. Aliás, não há evidências ou sinais de que nos próximos tempos aquela localidade estará a usufruir de energia da rede nacional, a não ser que os nossos governantes instalem empresas ou residências suas naquela parcela da província de Maputo.

Quando anoitece, as pessoas recorrem a velas e a candeeiros a petróleo para iluminação. “Compramos o litro de petróleo a 40 meticais, uma vela custa 15 meticais. Os preços são marcados arbitrariamente. O que não podemos fazer é passar a noite às escuras e com crianças ao lado”, lamenta Matilde, vendedora de amêijoa no mercado local.

Matilde é secundada por Cecília, que afirma que “felizmente, mesmo vivendo às escuras, não há registo de casos de criminalidade, tais como roubos a residências ou na via pública. Dificilmente os malfeitores dos outros bairros (da cidade de Maputo) podem entrar aqui na nossa zona. A falta de transporte é um embaraço”.

Moradores consomem água turva e salgada

Falar de água canalizada, inodora, insípida e incolor (características da água) é uma utopia em Gadzene. As populações daquela localidade estão habituadas a consumir água turva e salgada, não por prazer mas sim por falta de alternativas.

O único lugar onde se pode encontrar aquele líquido, (que de precioso nada tem) é a praia, o que representa um atentado à saúde pois é onde os moradores lavam a roupa, tomam banho, para além do lixo que lá é depositado. Em outras palavras, a água consumida em Gadzene é imprópria para consumo.

Embora não haja memórias de casos de cólera ou outras doenças associadas, não deixa de constituir preocupação o facto de não existir um hospital naquela zona.

“As pessoas adoecem e melhoram sem terem estado diante de um médico. Outras, porém, morrem. É difícil percorrer mais de 10 quilómetros para marcar uma consulta. Quando o Governo achar que merecemos ter um hospital (e outras infra-estruturas), virá implantá-las”.

O transporte

Para se chegar a Gadzene, tendo como ponto de referência a cidade de Maputo, pode-se usar duas vias, nomeadamente a da Costa do Sol, cujo transporte custa 50 meticais, e a do Albasine, que está a 15 meticais. As duas têm características diferentes. A primeira, em termos de transitabilidade, é relativamente melhor, para além de ser a mais rápida.

A nossa reportagem usou a via de Albasine, onde só operam duas viaturas de transporte semicolectivo de passageiros, que circulam de manhã e à tarde. Apesar disso, ela é a preferida da população, talvez por ser a menos dispendiosa.

Eram sensivelmente 13 horas quando a primeira viatura de caixa aberta chegou à paragem da linha férrea, algures no bairro Albasine. Havia pessoas que se tinham feito àquele local às 9 horas.

“Aqui só operam dois ´chapas` e os transportadores circulam quando entendem e quando acham que há muitas senhoras que vão comprar peixe, camarão e caranguejo na praia de Gadzene. Os motoristas só pensam nas vendedoras, pouco se importam com passageiros comuns”.

Entre vários problemas da localidade de Gadzene, o maior é, certamente, o facto de os moradores serem transportados como se de mercadoria se tratasse. Mas, entre proibir e tolerar que pessoas sejam levadas de forma desumana, mais vale a segunda opção. E os visados justificam recorrendo ao adágio segundo o qual “na falta do melhor o pior serve”. “Antes vale viajarmos nestas condições do que desafiar 30 quilómetros a pé”.

A viagem Albasine-Gadzene era, afinal, apenas o início do calvário que parecia nunca ter fim. Os buracos na estrada tornavam a viagem mais penosa e arriscada. A única coisa que os passageiros pediam a Deus era que chegassem o mais rápido possível.

Vias de acesso degradadas

Se a estrada (de terra batida) estivesse em boas condições, o troço Albasine-Gadzene podia ser feito em menos de 30 minutos. Mas isso não passa de um sonho. Por enquanto, viajar por aquela rodovia é um risco autêntico. Vezes há em que as viaturas se enterram nas covas e, quando se trata de um “chapa”, os passageiros são obrigados a descer para diminuir o peso e empurrá-las.

A cada declive que por que se passa fica-se com a sensação de que o carro está a capotar. “Nós já estamos acostumadas a viajar nestas condições, passamos por esta situação todos os dias. Há dias em que viajamos por baixo da chuva, molhamos e, o pior ainda, a estrada fica toda alagada e a transitabilidade torna-se mais difícil”, comentam os passageiros quando questionados sobre as condições em que fazem aquele trajecto.

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