Rui Peralta
Guiné-Bissau: notas sobre a geoestratégia do narcotráfico (3)
Nino Vieira
João Bernardo Vieira, mais conhecido por Nino Vieira ou Kabi Nafantchamna, nasceu em Bissau, a 27 de Abril de 1939. Electricista, afiliou-se no PAIGC em 1960 e tornou-se um elemento importante a quando da passagem á luta armada. Demonstrou ser um guerrilheiro hábil, com capacidade de liderança e ascendendo rapidamente na cadeia de comando. Os seus companheiros de luta chamavam-lhe Nino e esse passou a ser o seu nome de guerra, durante a guerra de libertação nacional. Em 1972 foi nomeado presidente da primeira Assembleia Nacional Popular, formada nas zonas libertadas, função que exercia quando em 1973 foi proclamada a independência. Após 1974, depois da saída do colonialismo português, voltou ao sector militar, cabendo-lhe um papel importante na estruturação das jovens forças armadas, mantendo no entanto, uma forte responsabilidade interna no PAIGC
Em 1978 foi nomeado primeiro-ministro da Guiné-Bissau e dois anos depois conduziu o golpe de 14 de Novembro de 1980, com o apoio de uma ala do PAIGC, o Movimento Reajustador. De um só golpe eliminou-se o projecto revolucionário unitário de Amílcar Cabral, a unidade politica Guiné-Cabo Verde que tanto afectava os agentes franceses da região (liderados por Senghor, sendo o Senegal o grande gendarme desses interesses na região) e a via de desenvolvimento progressista, não-capitalista e democrático, que o PAIGC tentava implementar. Em 1984 o Conselho Militar da Revolução fez aprovar uma nova constituição e o país seguiu os passos políticos do resto da Africa subsariana: eleições multipartidárias, privatizações, abertura aos capitais estrangeiros, etc.
Realizam-se as eleições de 1994, ganhas por Nino Vieira (numa segunda volta contra o fantoche mais descarado: Kumba Ialá), tomando posse como presidente da Republica da Guiné-Bissau.
Este mandato não chegou ao fim, pois em 1998, uma tentativa de golpe militar, liderada por Ansumane Mané, conduziu o país a uma breve, mas violenta, guerra civil. Os rebeldes depuseram Nino Vieira em 1999 e este refugiou-se na embaixada portuguesa, partindo para Portugal, em Junho desse ano.
Terminou a primeira fase do papel de Nino Vieira no processo de neocolonização deste território, processo inserido num plano mais vasto de manutenção dos interesses do capitalismo internacional na Africa Ocidental, baseado na política de desestabilização politica e institucional dos Estados da região. Não foi por acaso que no golpe de 1980 que o conduziu ao poder, o primeiro apoio surgiu do Banco Mundial, que 48 horas após o golpe, enviava uma delegação a Bissau para tratar com as novas autoridades “dos assuntos urgentes da economia guineense” conforme expressão do relatório anual para os assuntos africanos do Banco Mundial desse ano.
Esta é uma fase típica de neocolonização utilizando uma figura de prestígio do movimento de libertação nacional, um ex-guerrilheiro, um combatente que desempenhou cargos de responsabilidade durante a luta armada e no período imediato á independência. Este período de transição, iniciado com o golpe de 1980, termina 20 anos depois com o exilio de Nino em Portugal. Aliás este país também não é escolhido ao acaso. Durante o golpe de 80 uma das acusações feitas pelos golpistas de Nino ao presidente Luís Cabral, prendia-se com o facto do desaparecimento sucessivo de comandos guineenses ao serviço do exército colonial, acusando o presidente de cometer um genocídio e apontando os locais das valetas onde teriam sido enterrados os corpos dos colaboradores fuzilados. Ou seja, a ligação de Nino aos interesses portugueses vinha de longe, do tempo da luta armada, onde deverá ter sido um dos muitos infiltrados da polícia política colonial. O processo iniciado por Nino trás consigo o apoio de interesses portugueses coloniais ligados a Bissau e a ex-militares do exército colonial, como o Major Valentim Loureiro, designado por Nino como Cônsul honorário da Guiné e que tratava dos filhos de Nino enquanto estes estudavam em Portugal.
Nino reaparece mais tarde na cena política de Bissau, durante as eleições de 2005, numa altura em que o país estava já numa avançada fase de degradação, provocada pela desestabilização sucessiva e pelo governo ruinoso do fantoche multifacetado Kumba Ialá. Concorrendo na segunda volta contra o candidato apoiado pelo PAIGC, Malam Bacai Sanhá, Nino vence as eleições presidenciais de 2005. Dissolve o governo do primeiro-ministro Carlos Gomes Júnior e nomeia o seu aliado Aristides Gomes.
Mas a Guiné-Bissau já não passava de terra de ninguém, de um território de embates abertos entre os gangues que tomaram conta das forças armadas guineenses e que disputavam abertamente a supremacia territorial sobre o país. Em 2 de Março de 2009, um dia após o assassinato do chefe de Estado Maior das Forças Armadas da Guiné, morto por uma atentado á bomba, Nino Vieira é assassinado em casa, morto a tiro por militares que cercaram e saquearam a sua residência.
O homem que conduziu o processo contra-revolucionário guineense morreu às mãos do monstro que ele próprio criou.
Kumba Ialá
Nasceu em Bula, região do Cacheu, aos 15 de Março de 1952. Filho de gente do campo Ialá na adolescência adere ao PAIGC, na luta armada de libertação nacional. Estudou Teologia e Filosofia na Universidade Católica de Lisboa, em Portugal e Direito em Bissau. Fala, para alem do português, francês e crioulo, espanhol, inglês, hebraico, latim e grego.
Quando das comemorações dos 70 anos da Revolução Soviética, Kumba Ialá comandou a delegação do PAIGC á URSS, mas dois anos depois foi expulso do PAIGC. Em Março de 1991, com Rafael Barbosa, fundou a Frente Democrática e Social (FDS), afastando-se em 1992 para formar o Partido para a Renovação Social (PRS). Na segunda volta das presidenciais de 1994 foi derrotado por Nino Vieira. Ialá recusou os resultados, embora as eleições tenham sido consideradas livres e não fraudulentas pela totalidade dos observadores internacionais. Acaba por aceitar os resultados mas impede o PRS de participar no governo.
A sua acçäo foi sempre desestabilizadora e a sua influência fez-se sentir, negativamente, na guerra civil que termina com o processo eleitoral de 1999, onde vai á segunda volta derrotando o candidato do PAIGC, Malam Bacai Sanhá. Eleito presidente com quase 80% dos votos, o seu mandato foi caracterizado pela instabilidade institucional, com sucessivas destituições de ministros e altos oficiais e pela péssima gestão financeira, sendo os programas de reestruturação económica sido suspensos pelo BM e FMI.
As suas relações com Ansumane Mané, general e líder do golpe militar que depôs Vieira na guerra civil de 1998 a 1999, deterioraram-se. Ansumane Mané destitui o chefe de estado-maior general Veríssimo Correia Seabra e ameaça assumir o controlo das forças armadas. Os gangues protectores de Ialá acabam por impor-se no terreno e Ansumane Mané é assassinado por ordem de Iala. Com o caminho aberto Kumba Ialá tenta ampliar os poderes presidenciais e alega ter descoberto um complot, acusando o governo da Gâmbia de fomentar a desestabilização em Bissau. De cabeça perdida (que é, aliás o seu estado natural) o incompetente, corrupto e assassino Kumba Ialá, ameaça declarar guerra á Gâmbia e inicia uma vaga de repressão sobre a oposição. Dissolve a ANP, em finais de 2002, nomeando Mário Pires primeiro-ministro provisório e convoca eleições legislativas antecipadas, jogando depois no seu adiamento sucessivo.
A degradação e estagnação da economia guineense, chegando ao ponto de não haver dinheiro para pagar salários aos militares e funcionário públicos, aliada á sucessiva instabilidade politica provocada pela absoluta incompetência de Ialá, levaram á eclosão de um sangrento golpe militar, em 2003, liderado pelo general Veríssimo Correia de Seabra. Kumba Ialá ficou proibido de participar na vida politica por um período de 5 anos. Estabeleceu-se, até realização de eleições um governo provisório liderado por Henrique Rosa, empresário (?) e por Artur Sanhá o secretário-geral do PRS.
Ialá acabou por ser libertado da prisão antes das eleições legislativas, em Março de 2004, acabando por participar na campanha do PRS, que conquistou 35 lugares, num total de 100, tornando-se no segundo maior partido, atrás do PAIGC. Um ano depois, Kumba Ialá foi escolhido como candidato presidencial do PRS para as eleições presidenciais de Junho de 2005. Em Maio, numa das palhaçadas a que ele nos habituou, Ialá ocupou o palácio presidencial em Bissau com um dos seus bandos armados pelos traficantes. Acabou por suspender a acçäo e abandonar o palácio ao fim de 4 horas.
Os resultados eleitorais atiram-no para a terceira posição, impedindo-o de realizar a segunda volta, que seria disputada entre Nino Vieira e Malam Bacai Sanhá. Kumba Ialá contesta os resultados (como também nos habituou, sempre que perde eleições) acabando por acatar os resultados. Na segunda volta apoiou Nino Vieira.
Kumba Ialá representa quem? Que interesses? Qualquer um que lhe garanta poder politico e riqueza. Esse é o seu objectivo. É o que acontece quando as situações atingem um ponto alto de degradação e os peões de brega assumem posições influentes no tabuleiro. Não é um caso único na História da Guiné ou mesmo da região. São conhecidos inúmeros exemplos, nas Historia destes povos, de mercenários da zona que colocaram-se ao serviço de quem pagava mais, escravizando, matando e reprimindo os seus povos. Kumba Ialá é um exemplo contemporâneo dessas gentes, com uma diferença: falta-lhe a coragem necessária para pegar numa arma, preferindo a finura do dote oratório demagógico, mas sujando tanto as mãos de sangue como os seus gangsters. Kumba Ialá é um pivô na estratégia do narcotráfico. Demasiado incompetente para os interesses das potências neocoloniais (e demasiado inconstante também) e para os agenciados dos estados vizinhos. Acaba por ser o joguete dos que fazem o jogo sujo e a figura indicada para o estabelecimento do contacto com os interesses dos barões da droga sul-americanos.
É um palhaço. Mas um palhaço perigoso, assassino…e um expert em operações de desestabilização.
Ansumane Mané
Nasceu algures na Gâmbia, em 1940. Guerrilheiro temido do PAIGC, desde muito novo, o seu nome de guerra era o Brik Brak. Pouco se sabe da actividade politica e militar desenvolvida na guerrilha e no PAIGC. Amílcar Cabral tinha-o em grande estima e consideração, tanto quanto afirmam algumas fontes, mas próximas a Mané, o que deixa os testemunhos algo duvidosos. Um facto é que as únicas referências que se encontram sobre a sua actividade são sempre de natureza operacional militar, actividade em que desenvolveu-se a militância de Mané. As suas ligações á Gâmbia nunca foram escamoteadas e parece terem sido de grande utilidade durante a luta armada. Outra das características de Mané era o seu posicionamento de apoio acérrimo á separação de Casamance, sabendo-se que por várias vezes dirigiu operações de apoio logístico a grupos armados separatistas em Casamance.
Chefiou a Junta Militar responsável pelo levantamento de 1998 que levou á queda de Nino Vieira em 1999. Este levantamento, que mergulhou o país numa violenta e sangrenta crise politica e militar, foi levado a cabo por ele devido ao facto de ter sido demitido do cargo de Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas na semana anterior por Nino Vieira. Para se proteger, pois sempre que alguém demitido por Nino Vieira acabava morto quando este se ausentasse do país, Ansumane Mané decidiu juntar vários militares próximos a si e executar o levantamento.
É também conhecida o seu difícil relacionamento com Kumba Ialá. Temos aqui uma demarcação que tem muito a ver com as influências comerciais no narcotráfico. Não nos esqueçamos das sucessivas acusações de Ialá á Gâmbia, país onde Mané tinha nascido e com o qual sempre manteve os laços. Ou seja Ansumane Mané representava os interesses comerciais da região, apostados em livrarem-se do monopólio francês, exercido pelos agentes comerciais senegaleses. Daí também o seu relacionamento a Casamance e aos interesses em torno da separação desta província senegalesa.
Temos assim traçado as três pontas de um imenso icebergue. Nino, o homem dos portugueses, sem grandes ligações aos interesses regionais (era um homem de Bissau) que construiu o seu cartel dentro das ligações portuguesas á região, mas que serviu bem os propósitos dos seus investidores, que nele apostaram. Kumba Ialá, um típico mercenário da região da Africa Ocidental, que reuniu em seu torno os grupos provenientes do Senegal e da Guiné-Conacry interessados na lavagem do dinheiro e Ansumane Mané, representante dos interesses comerciais mais próximos da influência anglo-saxónica.
Estamos agora mais aptos a estabelecer a questão do narcotráfico na região, sendo, ao contrário do que afirmam, a Guiné-Bissau o elo mais recente e também o mais fraco, deste trafico na Africa Ocidental. Das formas como isso é processado e o porquê da necessidade e interesse de associar a ideia de narco-estado á Guiné-Bissau falaremos na parte 4 deste artigo.
Fontes
Peter Karibe Mendy; Colonialismo português em África: A tradição de Resistência na Guiné-Bissau (1879-1959); INEP, Bissau, 1994
Carlos Lopes; A transição histórica na Guiné-Bissau: Do movimento de libertação nacional ao Estado-Parte1 Nação ou Nação em formação?; Institut Universitaire d’Etudes du developpement, Geneve, 1982
J.Bowman Hawkins; Conflict, Interaction and Change in Guinea-Bissau, 1850-1900; California University Press, Los Angeles, 1980
Basil Davidson; The people cause. A History of Guerrillas in Africa; Penguin Books, London, 1981.
Jaime Nogueira Pinto; Os jogos africanos; A esfera dos livros, Lisboa, 2008
Banco Mundial; Guinea-Bissau General Report (1980). World Bank - African Reports.
United Nations Interregional Crime and Justice Research Institute (UNICRI); Guinea Golf; Annual Bolletin, 2005
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