Rui Peralta
A noite, a luz e as trevas
Luanda á noite é uma realidade virtual, sem qualquer necessidade das tecnologias visuais que acompanham este artefacto da tecno-cultura. Para os transeuntes, quer se desloquem a pé, de carro ou de mota, a iluminação pública é sui generis em algumas zonas da cidade: de dia os postes de iluminação acendem e de noite apagam-se. Nas vias em que a iluminação pública funciona, fica-se, inúmeras vezes na presença de uma luz amarelada, própria para o nevoeiro, o que provoca uma penumbra estranha e uma sensação insegura de semi-obscuridade. Vista de longe a cidade á noite fica bonita. Se nos colocarmos numa varanda de um edifício alto, num terraço ou na Ilha e observarmos a cidade, ficamos deslumbrados e somos transpostos para uma realidade em que o lixo, a miséria, os cheiros nauseabundos, a degradação dos edifícios e das infra-estruturas, enfim, a realidade que marca esta cidade, tornam-se inexistentes. Passamos a viver numa cidade quase futurista, imersa num imenso arco-íris.
No entanto esta é uma cidade que funciona, umas vezes mais outras menos, a geradores. Dia e noite. Embora existam melhoramentos substanciais, mas que deixam-nos sempre numa permanente e angustiante duvida shakespeariana. Quando o mais simples cidadão não tem dinheiro para o combustível do gerador aguarda pelo funcionamento da rede pública de energia. Se não conseguiu comprar um gerador, aguarda pelo sistema dos esquemas: o esquema do fio do vizinho, o esquema no serviço que lhe poderá proporcionar os meios necessários á aquisição do necessitado gerador, o esquema com os trabalhadores da distribuidora pública de energia que não lhe cortam a luz e por ai fora, aumentando o número de esquemas á medida que descemos no escalão social.
Claro que esta é uma cidade óptima para o mercado de geradores, pululando pela cidade toda uma população nacional e estrangeira em torno dos geradores. Chineses, libaneses e outros êses, para além do empresariado nacional, formal e informal, dedicam-se ao comércio de geradores. Os cubanos são mais dedicados á manutenção, competindo em preço e competência com os chineses e vietnamitas. Os libaneses só vendem e os portugueses, que vieram a Angola descobrir o gerador, fascinam-se e fazem contas com lápis e papel de embrulho ao negócio e serviços do sector de geradores. No entanto a grande maioria dos portugueses prefere ser consumidora e acho, sinceramente, que para eles é uma coisa in.
Mas voltando á noite… Em uma destas noites fui a um cocktail, num local agradável e fresco da cidade. Dois tipos de personagens: os “tubarões” com as suas respectivas e as “figuras” com as suas acompanhantes de ocasião. O resto eram meros acessórios, como eu. Os “tubarões” são todos tipos respeitáveis. Decisores fundamentais no sistema financeiro, transportam consigo toda uma panóplia de maneirismos e superficialidade ética. As esposas são todas simpáticas, beneméritas e fiéis (a qualquer coisa que o dinheiro e o status do esposo permita fazer). As “figuras” são mais terra-a-terra, mais broncos, na sua maioria ex-generais na reserva ou ex-ministros, donos de uma riqueza duvidosamente obtida, mas socialmente consentida e acompanhada com um sorriso de espanto, quando se conhece a história destas figuras, ou quando alguns deles são nossos conhecidos de infância, mas nunca nos viram em lado nenhum. Das acompanhantes das figuras não vale a pena falar.
É evidente que a inteligência costuma andar ausente destes cocktails, mas há sempre um ou outro que anda aqui por engano ou por necessidade e há ainda aqueles que não são totalmente mentecaptos, apenas parcialmente mentecaptos. Numa amena e discreta conversa com alguns deles, que ocupavam este ultimo grupo, falávamos de política e a China veio á baila (havia uma serie de chineses na sala). Defendi que a China, historicamente, nunca resistiu a nenhum projecto globalizador. As suas elites milenares necessitam da mundialização, mas para se manterem e sempre que determinadas premissas são atingidas, o processo pára. Stop. E as portas fecham-se, ou melhor, ficam semi-fechadas ou semi-abertas, encostadas, para o próximo Grande Salto. E isso porquê? Por causa da fragmentação. Se as coisas forem mais além, o Império do Meio, fragmenta-se. É que a China é um território desfragmentado. A abertura das elites, maior mobilidade social fora de controlo, provoca as paixões da fragmentação. Por isso a China passa de xis em xis tempo, durante um período ípsilon, por uma intensa febre. Portanto mais cinco, dez anos e das duas, três: ou a China encosta os portões, ou acaba estilhaçada em 3 ou 4 estados…
Bom o discurso levou a que “tubarões” e “figuras” franzissem o sobrolho. Isso estava fora de questão. De onde veio este tipo? Entendi o franzir de sobrolhos e achei por bem ficar quieto e calado no meu canto, conforme indica a sabedoria dos nossos mais velhos, dedicando-me a fazer olhinhos indiscretos às matronas e respectivas filhas…E assim passei a noite.
Na noite seguinte dediquei-me á cultura e fui ver uma peça de teatro intitulada: A Historia de um Reino Encantado, uma produção nacional. Interessante. Relatava a História de um reino cujo fundador afundou-se no álcool e que morreu de cirrose num pais frio e longínquo, enquanto o seu reino afundava-se na guerra e na degradação. Gostei da peça mas não concordei com o título da mesma, pois deveria estar patente algo relacionado com fundações e afundamentos. Quando a peça acabou fui para casa e como havia luz fiquei o resto da noite a ver televisão. Houve um programa que despertou a minha atenção: Mugabe e o Branco Africano. Antes de me deitar escrevi:
Mugabe
Africano Branco,
duas faces do passado.
O processo de expansão banto,
As réstias culturais do colonialismo.
A velha besta fascizante,
O cão velho que perdeu os dentes...
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