Rui Peralta
I
Historicamente a greve geral foi uma das armas mais importantes do movimento operário que com essa forma de luta obteve grandes vitórias e também pesadas derrotas (quando não foi usada de forma eficaz ou não era sentida pela classe). Em alguns casos tomando um carácter insurrecional, noutros um protesto pacífico, a greve geral foi e é uma das formas de luta a que os trabalhadores recorrem para manter os seus direitos ou ampliar as suas revindicações. Através dos anos as greves gerais foram absorvidas pelo sistema e hoje são regulamentadas, consideradas um protesto legal, normalizadas pelo Estado de Direito, reduzidas a um ritual de demonstração pacífica de força, com serviços mínimos, politicamente correctas (como manda a ética dominante), muito longe dos tempos em que representavam uma efectiva arma de classe.
O Estado de Mercado do capitalismo pós-industrial, que ainda está em construção no meio da crise sistémica global, comporta alguns tiques do Estado-Nação e do seu regime politico pós-acumulação de capital, o Estado de Direito. Neste sentido é, politicamente, um regime de partido único guardado por dois polícias: a Esquerda e a Direita, cada um com um corpo de informadores, cobrindo uma área política que tem início no ponto de encontro, o centro – que é deles – espalhando-se para os pontos de divergência máxima, os extremos – a cargo dos informadores. Estes dois polícias fazem, claro está, de polícia mau e de polícia bom. Um bate e outro sussurra-nos ao ouvido palavras de alento, demonstrando o seu desacordo com o colega em deixas bem encenadas e gestos teatrais. Quando o interrogatório termina, continuamos presos e eles vão tomar um copo em sadia confraternização.
Existem depois outros agentes de controlo social, como os sindicatos. Se nos primórdios do movimento operário eram associações de classe, de defesa dos seus interesses, reivindicativas e actuantes - chegando mesmo a tornarem-se focos insurreccionais - os sindicatos estão na actualidade reduzidos a um papel de barómetros do descontentamento laboral, quanto muito fazendo umas marchas de protesto e umas lamuriosas jornadas reivindicativas, muitas vezes mais assentes em interesses corporativos do que em reais e efectivas preocupações de classe, amarrando os trabalhadores a um pacto social cuja função é passar a “mão no pelo do cão”.
É assim que algumas experiencias alternativas são sempre refrescantes, pela sua criatividade e pelos ensinamentos que proporcionaram, pequenas alternativas de práctica comunitária, com base nas pequenas coisas do quotidiano. Recordo-me, por exemplo, da assistência alternativa praticada nos bairros negros pelo Partido dos Panteras Negras, nos USA. Controlavam centros comunitários de saúde e de educação que constituíam vastas redes de saúde e educação, públicas e gratuitas. Reivindicavam também o seu direito ao uso e porte de arma e instauraram um interessante sistema de autodefesa popular. Recentemente, na Andaluzia, esta experiencia foi o ponto de partida do Socorro Vermelho Solidário, uma rede de assistência às vítimas do capitalismo, aos excluídos pelo sistema, já sem lugar na engrenagem da produção de lucros.
Ainda na Andaluzia, surgiram nos últimos meses novas experiencias de poder popular, como a Utopia, no bairro sevilhano de Macarena. Cerca de 30 famílias ocuparam um edifício residencial, propriedade de uma imobiliária que está em tribunal por incumprimento de prazos de pagamentos acumulados. As autoridades municipais cortaram a água e a luz ao edifício, mas os ocupantes, de forma criativa e apoiando-se nas prácticas e manuais de sobrevivência, contornaram os cortes de abastecimento e mantêm sistemas limpos de energia eléctrica, para alem de montarem uma rede solidária de abastecimento de água e um disciplinado sistema de autodefesa.
Também na Andaluzia, numa herdade ocupada por um grupo de jornaleiros, foi criada uma cooperativa de trabalhadores, que fizeram da herdade o seu modo de vida. Construíram as suas habitações e trabalham comunitariamente. A cooperativa contactou professores e abriu uma escola, que cobre os níveis básicos e secundários da cadeia de ensino, para além de os seus residentes terem cursos universitários de Verão, em programas conjuntos com a Universidade Nómade e com grupos universitários que desenvolvem projectos de ensino e formação alternativos. Conta ainda com um centro de saúde com maternidade e centro para a terceira idade, onde ocorrem os mais velhos das aldeias e populações vizinhas. Não ficou esquecido o fundamental sistema de autodefesa, essencial para afastar os abutres e os falcões que rondam o espaço a mando dos antigos proprietários, já para não falar na Guardia Civil, que por várias vezes tentou evadir as instalações, mas que por ordem judicial está agora impedida de qualquer acçäo até decisão das instância jurídicas sobre o futuro da Herdade Este exemplo está a estender-se a outras herdades, sendo o caso mais recente o da herdade La Turquilla.
A estes exemplos podia adicionar muitos outros, noutras partes do globo, na Venezuela, Bolívia, Equador, Brasil, Colômbia, India, Sri Lanka, Grécia, Grã-Bretanha, Canadá, Islândia, cobrindo o globo numa vasta rede solidária. “São ilhas”! Dirão os mais cautelosos. Sem dúvida que são ilhas! E depois? São também zonas libertadas, espaços de liberdade, esferas alternativas de vivências, distantes do bolor das esquerdas e do fedor das direitas. Atiram para a fogueira nocturna o pacto social e demonstram que todas as actividades humanas, sejam culturais, sociais, estrictamente produtivas ou de autodefesa são possíveis fora da logica do capital, do estado e do partido.
II
A questão da autodefesa nos tempos que correm é delicada. Nos países em que é um direito constitucional o uso e posse de arma (como os USA) decorrem grandes campanhas contra esse direito básico, individual e colectivo e um garante das liberdades individuais e sociais. Os argumentos utilizados nas campanhas são diversos de um lado e do outro, embora nos USA assista-se mais aos argumentos dos que querem eliminar esse direito. A CNN, por exemplo, colocou um dos seus produtos informativos mais influentes (um tal Piers não sei das quantas, que sempre considerei um mentecapto mal educado) e fez a questão ultrapassar as fronteiras norte-americanas.
Querer atribuir os cíclicos e horrendos casos de homicídio que povoam o quotidiano dos USA ao direito constitucional que permite a qualquer cidadão o uso e posse de arma, é um acto de má-fé e um atirar de areia para os olhos, escamoteando as razões que levam á ocorrência desses actos de homicídio. É que quem comete esses crimes, continuaria a cometê-los mesmo com a eliminação desse direito, conforme é facilmente verificável nas estatísticas dos países onde as armas são monopólio do estado e o cidadão um pobre coitado que limita-se a pagar impostos, a ir votar nos dias de eleições e a aceitar as iluminadas decisões daqueles que sabem olhar por ele.
México, Rússia e Brasil, por exemplo, são países com um nível de controlo de armas superior aos USA, onde as armas não são legalmente acessíveis ao cidadão, sendo monopólio do estado e com um rácio muito superior de crimes ao dos USA. Israel e a Confederação Helvética, com um controlo de armas muito inferior ao dos USA e onde o uso e a posse de arma é um direito do cidadão, têm índices baixíssimos de crimes com utilização de armas. A Grã-Bretanha, cujos governos nas últimas décadas do seculo passado, retirara aos seus cidadãos o direito á autodefesa armada, monopolizando para o estado o uso e a posse das mesmas, assistiu a um aumento dos crimes por uso de arma. Mesmo nos USA, New York é um exemplo de que o monopólio das armas por parte do estado não resolve seja o que for e os seus índices criminais não foram reduzidos, pelo contrário, aumentaram, com a implementação da legislação anticonstitucional contra a posse de armas por parte dos seus cidadãos.
A posse de armas e a criminalidade são duas discussões diferentes, que podem ter os seus links mas implicam diferentes abordagens. Discutir a posse de armas e o seu uso para melhorar a legislação é algo que deve ser feito, de forma séria, sem perder de vista o direito básico do cidadão á autodefesa e sem perder de vista o que isso representa para a liberdade individual e colectiva. Discutir a criminalidade, as suas causas profundas e formas de a combater é um debate legítimo e necessário, mas que não é efectuado em parte alguma. Pelo contrário. Sempre que o tema é a criminalidade assistimos, seja onde for, a um acto de propaganda e a uma práctica de coercçäo que afasta o cidadão mais consciente dos seus direitos de qualquer intervenção no assunto. Os estados sentem-se mais seguros se desarmarem os cidadãos e os media necessitam do crime para vender, seja o que for, mesmo os sentimentos das vitimas e dos seus entes queridos. Depois é tudo misturado e criam enormes produtos propagandísticos, oco e vazios de sentido, recheados de patranhas moralistas.
Escamotear a realidade e arranjar um bode expiatório é um comportamento típico do totalitarismo. E a tirania justifica o tiranicídio…
III
Outra das discussões em voga e que implicam direitos, liberdade e garantias da livre informação e do conhecimento livre, é a questão do segurança no ciberespaço. Também aqui assiste-se a nível internacional a uma intensa batalha entre a liberdade de consultar, produzir e partilhar informação e as forças que pretendem colocar o ciberespaço ao serviço do estado e / ou dos interesses privados. Assume por isso especial relevo a recente decisão do Senado norte-americano em chumbar o Acto de Cibersegurança de 2012 (CSA).
Introduzido pelos senadores Joe Liberman e Susan Collins este projecto assentava na ideia de criar padrões legais de defesa dos USA contra possíveis ciberataques a partir do estrangeiro, assim como atentados contra a infraestructura critica do país. Na práctica o que aconteceria era que as companhias iriam espiar os usuários e partilhar os seus dados pessoais com os governos. Qualquer pessoa, nos USA ou em qualquer parte do mundo, seria considerada uma ameaça potencial, um terrorista suspeito e os seus dados pessoais seriam espiolhados. Por sua vez o governo delegaria a vigilância a empresas privadas, outorgando-lhes a faculdade de partilhar a informação dos usuários das redes e de bloquear, modificar e interromper a conexão às redes. Além do mais toda a informação de serviços internacionais como o Google, a Facebook e o Twitter ficariam ao alcance do governo, sem qualquer ordem ou controlo judicial. O Acto previa ainda a partilha de dados entre o governo norte-americano e os restantes governos aliados ou “amigos”.
Por agora livrámo-nos desta, mas outras vão vir e atendendo á composição do senado norte-americano da próxima a coisa pode ser diferente. Até lá, respiremos.
IV
Uma das áreas do conhecimento mais vedadas aos mortais é a Economia. Se falarem com um economista das duas uma: ou não entendem patavina do que ele está a dizer (quando tem uma sólida formação técnica ou andou em boas escolas) ou acham que o homem andou a queimar pestanas por gosto (nos 99% dos casos), pois têm as mesmas duvidas do que nós, simples mortais que não alcançamos as profundezas da teoria económica. Se experimentarem ler um manual de economia vão encontrar matéria altamente formalizada, tudo baseado em modelos abstractos, muitas suposições e raciocínios matematizados. O problema não será a linguagem do manual mas sim o facto de ficarmos com a sensação de que afinal estamos perante uma disciplina que não se coaduna com um mundo em mudança, sempre baseada em modelos estanques e que parte, em muitos casos, de pressupostos errados. A teoria económica é como colocar alguém numa sala fechada, com o objectivo de abrir a porta, utilizando um conjunto de ferramentas colocadas ao seu dispor. Ao fim de algum tempo o candidato a economista conclui que afinal as ferramentas não são as adequadas para abrir a porta e senta-se imaginando uma fechadura onde possa utilizar as sublimes e veneradas ferramentas.
A maior parte dos mortais sabe que os recursos naturais são finitos assim como a capacidade do ambiente em absorver os resíduos resultantes das actividades produtivas. Mas poucos, muito poucos, economistas têm consciência disso. Para a teoria económica burguesa, ensinada nas escolas, o capital produzido pelo homem é um substituto do capital produzido pela natureza, ou seja, não há limites ambientais finitos para um crescimento económico infinito. Perdidos num tal mundo alucinatório ignoram o custo pleno da produção e ficam impossibilitados de responder á questão sobre o custo real dos aumentos do PIB: serão maiores ou menores do que o custo pleno para produzi-lo?
A teoria económica é absolutamente dogmática. Durante o período pós II Guerra Mundial, o dogma era Keynes e todas as suas teorias. As bíblias da ciência económica começavam e acabavam na letra K. Keynes para a esquerda, Keynes para a direita e forma construindo uma realidade absolutamente alucinogénia sobre os mecanismos económicos. Durante finais da década de 70 do seculos passado, começaram a surgir outras alucinações, Hayeks, que tinha andado esquecido nas gavetas (e que tinha realizado um excelente trabalho) começa a ser falado para lá do conhecimento esotérico. Nomes como Mises e a Escola Austríaca afirmam-se aos poucos no firmamento do saber económico, recuperados pela Escola de Chicago, embora as diferenças entre as escolas Austríaca e de Chicago sejam as inerentes á de mestres e aprendizes (senhor Friedman por muita sopa que coma nunca chegará aos calcanhares de Mises ou de Hayek ou de qualquer outro da escola Austríaca). No entanto Keynes acabou por desaparecer do firmamento como uma supernova e durante os finais do seculo passado e o inicio do nosso século a alucinação transformou-se em aldrabice, como acontece geralmente ao conhecimento metafisico.
É assim que hoje encontramos economistas, ilustres professores universitários, a confundirem a deslocalização das empresas (e dos empregos) com o livre comércio, produzindo, inclusive, estudos destinados a mostrar que uma economia interna é beneficiada ao ser transformada em PIB de outro país e outros absurdos do género, mesmo sendo óbvio que esta práctica gerou autenticas devastações nos países onde foi exercida (USA inclusive). Afirmar que a exportação de empregos é a antítese do livre comércio e apenas uma práctica depredatória é uma blasfémia e não há economista recém-licenciado que não se arrepie ao ouvir tamanha “monstruosidade” (embora com o passar dos anos aprenda ou a mentir com todos os dentes, ou a beber uns copitos para “colmatar a dor” de ter de mentir tantas vezes sem saber patavina do que se está a passar).
A crise sistémica global é também uma crise da ciência económica, ou melhor, da metafisica económica e dos dogmas por ela criados. Talvez que as universidades no seu afã de criarem apostadores financeiros tenham criados monstrinhos mentalmente débeis para servirem os 1% que subjugam a riqueza dos 99%. Talvez. Mas ao menos que tivessem criado monstrinhos pensantes com massa cinzenta e critica. É que fica mal ao saber Académico ser um aviário de papagaios…
Fontes
Jared Diamond; Colapso; Gradiva, 2005
Ralph E. Gomory / William J. Baumol; Global Trade and Conflicting National Interests; MIT Press. 2000
Manuel Navarrete; Autodefensa, resistencia y poder popular; http://www.rebelion.org
Thomas Sowell; News Versus Propaganda; http://www.lewrockwell.com
Pepe Flores; El Acta de Ciberseguridad es frenada por el Senado de Estados Unidos; http://alt1040.com
Paul Craig Roberts; http://www.counterpunch.org/2012/07/31/escape-from-economics/
Michel Chossudovsky; http://globalresearch.ca/globaloutlook/GofP.html
Michael Hudson; http://michael-hudson.com/2012/07/the-bubble-and-beyond/
The Guardian; 02/08/2012
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