Martinho Júnior, Luanda
8 – O compromisso com sentido de vida não pode deixar de ser responsável também em relação ao respeito que merece o passado de luta.
Esse compromisso dessa forma não corta com o passado, confere-lhe coerência e mantém a direcção em relação à necessidade de equilíbrio, de construção duma democracia para além da representatividade, com participação e cidadania, de solidariedade, internacionalismo e de luta contra o subdesenvolvimento.
À antiga rota de escravos, sucedeu-se um conjunto enorme de nações, em ambos os lados do Atlântico Sul, onde a imperatividade da luta contra o subdesenvolvimento tem sido uma constante da vida, dando também identidade e consolidação às independências para lá do içar de suas próprias bandeiras de há pouco mais de 200 anos a esta parte.
Em Angola os resgates históricos não acabaram com o final da guerra e necessário se torna que as vitórias contra o colonialismo, o “apartheid” e as suas sequelas, não terminem num mero “1 homem, 1 voto”, ainda por cima quando isso ocorre numa lógica capitalista elitista sistematizada em relação à exploração dos recursos, relativamente tímida em relação às indústrias e tecnologias e com fins lucrativos, especulativos, ou incentivando tráficos, uma lógica que pela via do império e de sua “globalização” se abre aos interesses da aristocracia financeira mundial.
África existe para o colonialismo, tanto como para o neo colonialismo, como fonte de matérias-primas e pouco mais, pelo que esse quadro não é admissível nos termos da legitimidade do renascimento africano, numa sustentação da lógica com sentido de vida!
9 – A luta contra o subdesenvolvimento implica pois a necessidade dos relacionamentos com as emergências, em especial aquelas que fluem Sul-Sul, precisamente na mesma altura em que estão em causa as relações desiguais impostas por essa aristocracia, tão profunda e barbaramente sentida em África desde os alvores do capitalismo moderno e depois tanto com a sua revolução industrial, como com a revolução tecnológica dos últimos dias.
Com esse enquadramento Angola não perde o passado histórico de relacionamento com Cuba Revolucionária durante as horas difíceis do parto da independência e primeiros anos de sua afirmação, por que Cuba Revolucionária deu sequência aos ganhos de sua Revolução, apesar do bloqueio com mais de 50 anos, em relação às questões fundamentais da educação, da saúde e da investigação de acordo com as necessidades humanas e planetárias.
A lógica capitalista está historicamente associada à escravatura, ao fascismo, ao colonialismo, ao “apartheid” e às suas sequelas, restando como um factor dissuasor do progresso para todos, do aumento do conhecimento científico e tecnológico para todos, dissuasor da implantação de indústrias e tecnologias em função dos equilíbrios e do interesse de todos, retrógrado em relação ao desenvolvimento sustentável, às tecnologias que se disseminam com base nas energias renováveis, enfim fomentadora de desequilíbrios e injustiças sociais, como ainda retrógrado em relação à saúde e educação dos povos!
É nessa lógica que ocorre a apropriação da natureza e por isso em África as poderosas elites fazem surgir uma das suas últimas “invenções”: os “Peace Parks”, alguns deles transfronteiriços, onde podem desfrutar de todas as benesses modernas em estreita integração nos ambientes mais selvagens, mantendo, tal como acontece noutros sectores de actividade, natureza e mão-de-obra barata ao dispor e para seu exclusivo uso, “benfeitoria” e serviço!
É nessa lógica em que se registam 66% de pessoas letradas com tanto analfabetismo ainda por combater!
É nessa lógica capitalista que como colmeias vão surgindo os “condomínios murados” que trazem para a geografia humana das grandes cidades o cunho visível do “apartheid social”, fórmula que só pode surgir com o avolumar das injustiças sociais!
É nessa lógica capitalista que, apesar da construção, da reconciliação e da emergência, Angola possui ainda, segundo alguns, cerca de 27% de desemprego da sua população activa!
É por via dessa lógica capitalista que tende a explodir o “vulcão” sul africano!...
Angola merece a hora dos saudáveis oportunidades em função dos sacrifícios de sangue consentidos nas longas lutas que travou e por isso deve-se voltar ainda sobre si própria e descobrir as fórmulas e os métodos para um resgate que vai ser longo, um resgate que além do mais terá de buscar equilíbrio, cidadania, participação e justiça social e não se perca o que para África é tão importante – um amplo e coerente renascimento do continente-berço, assumido e com toda a legitimidade!
A atenção para com alguns extractos sociais, como as crianças, as mulheres, os jovens e os antigos combatentes deve ser uma constante dessa afirmação!
A mobilização de meios humanos, científicos e técnicos para resolução dos problemas do povo deve ser uma constante!
Os índices de mortalidade para as crianças e para as mulheres são ainda elevados; os índices de desemprego para os jovens são elevados e, quanto aos antigos combatentes é de lembrar que, sendo alguns deles dos primeiros nas frentes de batalha, estão a ser dos últimos a experimentar os benefícios da reconstrução e reconciliação nacional.
A lógica com sentido de vida é a energia mais potente que está presente desde o passado e irá estar presente em todas as pequenas vitórias que há que alcançar na longa luta contra o subdesenvolvimento e na construção duma economia efectivamente sustentável, assente e consciente no inventário real dos recursos e não no neo liberalismo promovido pelo capital em crise que alguns tentam impor a partir de fora e no momento em que se “abrem as portas”!
Vinte e cinco anos depois daquele ano de 1987, alimentar essa lógica com consciência crítica, é uma prova de paz, de amor, de coerência e de responsabilidade histórica que responde ao Programa Maior do movimento de libertação!
Gravura: - Capa do livro de Peter Stiff, o historiador dos Recces do regime do “apartheid”, “The silent war”; à “guerra silenciosa” por parte do desaparecido regime racista sul-africano, sucedeu-se uma guerra psicológica levada a cabo por alguns sectores interpretando a hegemonia do império, uma guerra psicológica que desde então ainda não teve fim!
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