Pessoas contaminadas acampadas no Estádio Olímpico (Foto: Yoshikazu Maeda/O Popular) |
Atualmente, as vítimas reclamam da omissão do governo para a assistência da qual necessitam, tanto médica como de medicamentos. O acidente com Césio-137 foi o maior acidente radioativo do Brasil e o maior do mundo ocorrido fora das usinas nucleares.
Na semana em que o acidente com o césio-137, em Goiânia, completa 25 anos, vítimas, familiares, governo e sociedade voltam os olhos para um passado ainda não cicatrizado. De acordo com a Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen), este foi o maior acidente radiológico — que envolve uma fonte radioativa usada em hospitais — do mundo. O maior acidente radioativo de forma geral foi na usina nuclear de Chernobyl, na atual Ucrânia, em 1986.
Os dados oficiais e a contagem das vítimas divergem no que diz respeito ao número de mortos e de pessoas diretamente afetadas. Mas o fato é que, nos dias posteriores à divulgação da abertura da cápsula radioativa, a Cnen monitorou os níveis de radioatividade de 112.800 pessoas, no Estádio Olímpico de Goiânia.
Em 271 delas, foi constatada a contaminação pelo césio-137. Nesse grupo, 120 tinham rastros da substância em roupas e sapatos; nos outros 151 foram observadas contaminação interna e externa ao organismo. A Cnen percebeu ainda danos causados por radiação em 28 pessoas. Na época, 20 foram hospitalizadas.
No dia 1º de outubro daquele ano, um grupo de 14 pessoas que estavam em estado mais grave foi levado para o Hospital Naval Marcílio Dias, no Rio de Janeiro. Poucas semanas depois, quatro dessas pessoas morreram enquanto se tratavam no Rio. A primeira foi Leide das Neves Ferreira, de 6 anos, garota que se tornou o símbolo dessa tragédia.
No mesmo dia, morreu Maria Gabriela Ferreira, de 37 anos. Naquela mesma semana, faleceram também dois jovens, de 22 anos e 18 anos. Esses quatro mortos são os únicos contabilizados pelos dados oficiais, que reconhecem ainda que outros quatro tiveram danos na medula óssea e oito tiveram síndrome de radiação aguda.
Na visão do presidente da Associação das Vítimas do Césio (AVCésio), Odesson Alves Ferreira, que teve cerca de 50 parentes atingidos e seis mortos em consequência do acidente, o número é bem maior. “Estima-se que, nesses 25 anos, 104 pessoas tenham morrido e 1.600 tenham sido afetadas de forma mais direta, entre as pessoas envolvidas com a tragédia e aquelas que trabalharam para controlá-la, como policiais militares, bombeiros e servidores públicos do estado”, avalia. Parte das pessoas que se consideram vítimas e carregam no corpo sequelas que atribuem a exposição à radioatividade ainda luta na Justiça por reconhecimento.
Contaminação: como tudo começou
Um dos maiores acidentes com o isótopo Césio-137 teve início no dia 13 de setembro de 1987, em Goiânia, Goiás. O desastre fez centenas de vítimas, todas contaminadas através de radiações emitidas por uma única cápsula que continha césio-137.
O instinto curioso de dois catadores de lixo e a falta de informação foram fatores que deram espaço ao ocorrido. Ao vasculharem as antigas instalações do Instituto Goiano de Radioterapia (também conhecido como Santa Casa de Misericórdia), no centro de Goiânia, tais homens se depararam com um aparelho de radioterapia abandonado. Então tiveram a infeliz ideia de remover a máquina com a ajuda de um carrinho de mão e levaram o equipamento até a casa de um deles.
O maior interesse dos catadores era o lucro que seria obtido com a venda das partes de metal e chumbo do aparelho para ferros-velhos da cidade. Leigos no assunto, não tinham a menor noção do que era aquela máquina e o que continha realmente em seu interior. Após retirarem as peças de seus interesses, o que levou cerca de cinco dias, venderam o que restou ao proprietário de um ferro-velho.
O dono do estabelecimento era Devair Alves Ferreira que, ao desmontar a máquina, expôs ao ambiente 19,26 g de cloreto de césio-137 (CsCl), um pó branco parecido com o sal de cozinha que, no escuro, brilha com uma coloração azul.
Ele se encantou com o brilho azul emitido pela substância e resolveu exibir o achado a seus familiares, amigos e parte da vizinhança. Todos acreditavam estar diante de algo sobrenatural e alguns até levaram amostras para casa. A exibição do pó fluorescente decorreu 4 dias, e a área de risco aumentou, pois parte do equipamento de radioterapia também fora para outro ferro-velho, espalhando ainda mais o material radioativo.
Algumas horas após o contato com a substância, vítimas apareceram com os primeiros sintomas da contaminação (vômitos, náuseas, diarreia e tonturas). Um grande número de pessoas procurou hospitais e farmácias clamando dos mesmos sintomas. Como ninguém fazia ideia do que estava ocorrendo, tais enfermos foram medicados como portadores de uma doença contagiosa. Dias se passaram até que foi descoberta a possibilidade de se tratar de sintomas de uma Síndrome Aguda de Radiação.
Somente no dia 29 de setembro de 1987, após a esposa do dono do ferro-velho ter levado parte da máquina de radioterapia até a sede da Vigilância Sanitária, é que foi possível identificar os sintomas como sendo de contaminação radioativa.
Os médicos que receberam o equipamento solicitaram a presença de um físico nuclear para avaliar o acidente. Foi então que o físico Valter Mendes, de Goiânia, constatou que havia índices de radiação na Rua 57, do Setor Aeroporto, bem como nas suas imediações. Diante de tais evidências e do perigo que elas representavam, ele acionou imediatamente a Comissão Nacional Nuclear (CNEN).
O ocorrido foi informado ao chefe do Departamento de Instalações Nucleares, José Júlio Rosenthal, que se dirigiu no mesmo dia para Goiânia. No dia seguinte a equipe foi reforçada pela presença do médico Alexandre Rodrigues de Oliveira, da Nuclebrás (atualmente, Indústrias Nucleares do Brasil) e do médico Carlos Brandão da CNEN. Foi quando a Secretaria de Saúde do estado começou a realizar a triagem dos suspeitos de contaminação em um estádio de futebol da capital.
A primeira medida tomada foi separar todas as roupas das pessoas expostas ao material radioativo e lavá-las com água e sabão para a descontaminação externa. Após esse procedimento, as pessoas tomaram um quelante denominado de “azul da Prússia”. Tal substância elimina os efeitos da radiação, fazendo com que as partículas de césio saiam do organismo através da urina e das fezes.
As remediações não foram suficientes para evitar que alguns pacientes viessem a óbito. Entre as vítimas fatais estava a menina Leide das Neves, seu pai Ivo, Devair e sua esposa Maria Gabriela, e dois funcionários do ferro-velho. Posteriormente, mais pessoas morreram vítimas da contaminação com o material radioativo, entre eles funcionários que realizaram a limpeza do local.
O trabalho de descontaminação dos locais atingidos não foi fácil. A retirada de todo o material contaminado com o césio-137 rendeu cerca de 6000 toneladas de lixo (roupas, utensílios, materiais de construção etc.). Tal lixo radioativo encontra-se confinado em 1.200 caixas, 2.900 tambores e 14 contêineres (revestidos com concreto e aço) em um depósito construído na cidade de Abadia de Goiás, onde deve ficar por aproximadamente 180 anos.
No ano de 1996, a Justiça julgou e condenou por homicídio culposo (quando não há intenção de matar) três sócios e funcionários do antigo Instituto Goiano de Radioterapia (Santa Casa de Misericórdia) a três anos e dois meses de prisão, pena que foi substituída por prestação de serviços.
Atualmente, as vítimas reclamam da omissão do governo para a assistência da qual necessitam, tanto médica como de medicamentos. Fundaram a Associação de Vítimas contaminadas do Césio-137 e lutam contra o preconceito ainda existente.
O acidente com Césio-137 foi o maior acidente radioativo do Brasil e o maior do mundo ocorrido fora das usinas nucleares.
USP, BRescola e Agências
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