José Manuel Pureza –
Diário de Notícias, opinião
Ironia do destino:
na mesma semana em que o Governo entregou no Parlamento o Orçamento que
corporiza a sua estratégia de "empobrecer para crescer", comemorou-se
o Dia Internacional para a Erradicação da Pobreza. Tenha a efeméride servido
para avivar a consciência de que o País que o Governo quer empobrecer é um país
pobre e desigual; e que o resultado da estratégia do Governo é torna-lo mais
pobre e mais desigual.
Se, em 2010, quase
metade da população portuguesa vivia no limiar da pobreza e um quinto (cerca de
dois milhões de pessoas) era declaradamente pobre, todos os estudos apontam
para a subida rápida para três milhões de pobres nos próximos meses. Três
milhões de pessoas a quem os gurus da austeridade, como retribuição honrada e
dedicada do investimento que o País fez na sua educação, dizem que viveram
acima das suas possibilidades. Um terço do País. E as contas, como as do FMI e
as do Governo, podem estar mal feitas: a essas cifras não vai o rendimento
disponível mensal das famílias depois de pagos os créditos bancários - fosse a
estatística calculada com esse cuidado e o número de pessoas com menos de 500
euros por mês seria ainda muito maior.
É um país assim,
com uma mancha de pobreza que alastra como uma mancha de óleo - incorporando
cada vez mais gente com habilitações escolares elevadas, percurso profissional
qualificado e trajetórias de vida consolidadas, é um país assim que o Governo
acha que tem de empobrecer. E para cumprir esse objetivo letal, o Orçamento agora
apresentado ataca em três frentes. A primeira é a das prestações sociais. Entre
1993 e 2009, a proporção do rendimento auferido pelos 5% mais pobres da
população teve um aumento assinalável. Mas todo esse aumento ficou a dever-se
não a uma mais justa política de salários, mas, sim, a transferências diretas
do Orçamento através de prestações como o rendimento social de inserção, o
subsídio social de desemprego ou o complemento social para idosos. Não tivessem
sido essas prestações e os números da pobreza em Portugal seriam já hoje muito
mais arrasadores. Ora a radical mudança imposta por este Governo em matéria de
prestações e políticas sociais, substituindo os princípios da universalidade e
da titularidade por uma orientação sociocaritativa que desonera o Estado da
responsabilidade pelo equilíbrio e pela coesão sociais e que opera cortes
brutais nos montantes destas prestações, está a ter como consequência um
agravamento dramático da intensidade da experiência de pobreza dos mais pobres
em Portugal.
A segunda fonte de
agravamento da pobreza neste Orçamento é a da agressão aos salários. No período
referido (1993-2009), as desigualdades salariais em Portugal aumentaram por
força dos aumentos brutais dos salários e prémios das chefias empresariais. Em
2009, os 10% de portugueses mais pobres tinham um salário médio de 458 euros,
enquanto os 10% mais ricos recebiam em média sete vezes mais. A principal causa
da pobreza é esta lógica salarial, que para aumentar muito uns poucos mantém
muitos com pouco demais.
Por fim, o terceiro
suporte orçamental da estratégia de empobrecimento é a política fiscal. Um
Orçamento cujo enorme aumento de impostos se repercute proporcionalmente mais
em quem recebe 800 euros do que em quem recebe dez mil euros é obviamente um
instrumento de agravamento deliberado das desigualdades e de geração de
pobreza.
Três milhões de
pobres. Um milhão e meio de desempregados, mais de metade dos quais sem
qualquer apoio social. Um Governo que olha para esta realidade e decide que a
melhor estratégia é empobrecer não passava de certeza no exame do primeiro ano
de qualquer curso de bom senso e de dignidade.
Sem comentários:
Enviar um comentário