segunda-feira, 19 de novembro de 2012

OS JUÍZES CORRUPTOS DA ESLOVÁQUIA

 


Respekt, Praga – Presseurop – imagem Zuzana Piussi
 
Poucos meses depois do caso Gorila ter revelado a extensão da corrupção no país, um documentário revela os descaminhos de um sistema judicial controlado por meia dúzia de magistrados sem misericórdia por quem os incomoda. Sobre Zuzana Piussi, a realizadora, impende agora uma ameaça de dois anos de prisão. Excertos.
 
Esta loira frágil, de voz com requebros infantis, desencadeou a ira de personalidades altamente colocadas na estrutura de poder. O seu documentário sobre a justiça eslovaca “Nemoc tretej moci” [O mal do terceiro poder] tornou-se o símbolo da revolta contra um clã de juízes que faz da justiça uma farsa.
 
Zuzana Piussi já sentiu o poder desse clã. Um dos juízes que aparece no documentário apresentou queixa contra ela. "Sabe como é, há pressões", confessou-lhe um jovem investigador, durante o inquérito que lhe foi movido. Arrisca-se a apanhar até dois anos de prisão.
 
Um homem chamado Harabin
 
A justiça eslovaca é controlada por um grupo de magistrados que fez dela a sua galinha de ovos de ouro, com deliberações que beneficiam "organizações mafiosas". Cerca de 70% da população não confia na justiça eslovaca. O atual ministro da Justiça, Tomás Borec, chegou mesmo a declarar que "a situação já não pode piorar". O Fórum Económico Mundial classifica a Eslováquia em 140º lugar (em 144 países), em matéria de aplicação da legislação.
 
Como foi possível chegar a este ponto, num Estado que figura entre os países mais bem-sucedidos na transição do comunismo para a democracia?
 
Stefan Harabin, hoje com 55 anos, foi, sem dúvida, o homem que mais influenciou a história moderna da justiça eslovaca. Antigo juiz sob o regime comunista e amigo do ex-primeiro-ministro Vladimir Meciar, é há muitos anos presidente do Supremo Tribunal. Ocupou também o cargo de ministro da Justiça. Mas, acima de tudo, controla um dos principais instrumentos do poder no interior do aparelho judiciário, o Conselho da Magistratura.
 
A uns, apresenta-se como um personagem encantador, habituado ao convívio com a melhor sociedade; a outros, revela-se um vulgar ditador, movido pela sede de poder e de vingança contra os seus críticos. Os meios de comunicação eslovacos, coagidos por juízes servis, viram-se na contingência de pagar dezenas de milhares de euros por "atentado ao bom nome" da sua pessoa.
 
Harabin ensinou outros truques aos membros do seu clã. Em outubro, ganhou uma ação judicial contra o Estado. Um juiz atribuiu-lhe €150 mil por perdas e danos, depois de descobrir que o Ministério Público tinha, há vários anos, atentado contra a sua reputação, ao certificar a autenticidade de um telefonema privado entre ele e o albanês Baki Sadiki, chefe da máfia da droga, revelado pela comunicação social. Sadiki escapou e foi, mais tarde, condenado à revelia a 22 anos de prisão na Eslováquia.
 
As vítimas
 
O Conselho da Magistratura, criado em 2003, é a mais alta instância judiciária autónoma. Mas pessoas com reputação mais do que duvidosa assumiram o seu controlo e começaram a silenciar os seus opositores.
 
Juraj Majchrák foi quem concebeu o Conselho da Magistratura. Vice-presidente prestigiado do Supremo Tribunal Federal, foi o primeiro da lista. Na qualidade de presidente da instituição, Harabin encetou uma série de procedimentos disciplinares contra ele, em 2009, por alegada inércia no exercício das suas funções; aplicou-lhe a punição mais grave de que dispunha – a exoneração. Majchrák entrou em profunda depressão. Em 2011, enforcou-se na garagem de sua casa.
 
Nas suas exéquias, que mais se assemelharam a um protesto contra Harabin do que a uma cerimónia religiosa, um juiz declarou abertamente que as “intimidações” tinham tido uma grande quota-parte de responsabilidade na morte de Majchrák.
 
A história de Marta Lauková é igualmente trágica. Em 2009, recebeu uma mensagem da sua superior hierárquica, dizendo-lhe para libertar da prisão um homem suspeito de pertencer a uma quadrilha internacional de traficantes – era uma "exigência do Ministério" (a que Harabin presidia). Recusou-se e participou à polícia, numa tentativa de influenciar o veredicto.
 
Começou imediatamente a sofrer retaliações, provenientes da mais alta esfera: transferência para outro departamento, controlos de presença no local de trabalho, humilhações de todos os tipos. Acabou por não aguentar e ficou doente. O Conselho da Magistratura vetou o pagamento do subsídio de doença, alegando que se tratava de fingimento. Pouco tempo depois, ela entrou em coma e morreu de insuficiência cardíaca.
 
Foi Helena Koziková, sua colega e superior hierárquica, quem, numa atitude revanchista, procedeu à apreensão do seu subsídio de saúde. Hoje, a mesma juíza entrou com uma queixa-crime contra a realizadora Zuzana Piussi, que integrou no seu documentário uma cena dramática, em que a filha da falecida juíza acusa frontalmente Koziková de ter parte de responsabilidade na morte da mãe. Além de uma pena de prisão, Koziková pretende condenar a realizadora e a televisão eslovaca, num processo civil, a pagarem €40 mil por perdas e danos.
 
A situação começa a mudar
 
A morte de Juraj Majchrák e Marta Lauková podem ter sido a proverbial gota de água que despertou a maioria silenciosa. "Não deixemos que tenham morrido em vão", ouvia-se em reuniões públicas da nova organização de juízes Za Otvorenú Justíciu [Por uma justiça transparente]. "Somos cerca de 50", diz Javorciková, a presidente do movimento. "E, graças aos meios de comunicação, conseguimos fazer-nos ouvir cada vez mais. Já não ousam intimidar-nos hoje como faziam há alguns anos. Mesmo a opinião pública começa a estar mais sensibilizada." O clã de juízes que controla o topo do aparelho judiciário constitui uma franja relativamente marginal (de aproximadamente 10%) dos 1400 juízes da República Eslovaca.
 
A situação começa a mudar. Harabin ainda controla o Conselho da Magistratura, mas já não dispõe de maioria. E agora, jornalistas e deputados europeus apresentam-se, em solidariedade, nas sessões de procedimentos disciplinares contra juízes recalcitrantes, num simulacro dos julgamentos criminais do regime comunista (fala-se em "lesar a reputação da justiça ").
 
A ação contra Zuzana Piussi é seguida de muito perto. Foi lançada uma campanha de assinaturas ao estilo das petições que se apresentavam durante o regime comunista. Os signatários declaram aprovar a infração cometida por Zuzana Piussi – intervenção da juíza Koziková no documentário, sem consentimento – e, desta forma, exigem também ser punidos. São já algumas centenas.
 
O produtor do documentário colocou-o gratuitamente na Internet. Dezenas de milhares de cibernautas já o viram.
 
"Que época é esta, afinal, em que, como no tempo do comunismo, as pessoas assinam petições para se defenderem umas às outras?”, interroga Zuzana Piussi. "Mas sem esse apoio, provavelmente eu iria parar à cadeia."
 

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