Respekt,
Praga – Presseurop – imagem Zuzana Piussi
Poucos meses depois
do caso Gorila ter revelado a extensão da corrupção no país, um documentário
revela os descaminhos de um sistema judicial controlado por meia dúzia de
magistrados sem misericórdia por quem os incomoda. Sobre Zuzana Piussi, a
realizadora, impende agora uma ameaça de dois anos de prisão. Excertos.
Esta loira frágil,
de voz com requebros infantis, desencadeou a ira de personalidades altamente
colocadas na estrutura de poder. O seu documentário sobre a justiça eslovaca “Nemoc tretej moci” [O
mal do terceiro poder] tornou-se o símbolo da revolta contra um clã de juízes
que faz da justiça uma farsa.
Zuzana Piussi já
sentiu o poder desse clã. Um dos juízes que aparece no documentário apresentou
queixa contra ela. "Sabe como é, há pressões", confessou-lhe um jovem
investigador, durante o inquérito que lhe foi movido. Arrisca-se a apanhar até
dois anos de prisão.
Um homem chamado
Harabin
A justiça eslovaca
é controlada por um grupo de magistrados que fez dela a sua galinha de ovos de
ouro, com deliberações que beneficiam "organizações mafiosas". Cerca
de 70% da população não confia na justiça eslovaca. O atual ministro da
Justiça, Tomás Borec, chegou mesmo a declarar que "a situação já não pode
piorar". O Fórum Económico Mundial classifica a Eslováquia em 140º lugar
(em 144 países), em matéria de aplicação da legislação.
Como foi possível
chegar a este ponto, num Estado que figura entre os países mais bem-sucedidos
na transição do comunismo para a democracia?
Stefan Harabin,
hoje com 55 anos, foi, sem dúvida, o homem que mais influenciou a história
moderna da justiça eslovaca. Antigo juiz sob o regime comunista e amigo do
ex-primeiro-ministro Vladimir Meciar, é há muitos anos presidente do Supremo
Tribunal. Ocupou também o cargo de ministro da Justiça. Mas, acima de tudo,
controla um dos principais instrumentos do poder no interior do aparelho
judiciário, o Conselho da Magistratura.
A uns, apresenta-se
como um personagem encantador, habituado ao convívio com a melhor sociedade; a
outros, revela-se um vulgar ditador, movido pela sede de poder e de vingança contra
os seus críticos. Os meios de comunicação eslovacos, coagidos por juízes
servis, viram-se na contingência de pagar dezenas de milhares de euros por
"atentado ao bom nome" da sua pessoa.
Harabin ensinou
outros truques aos membros do seu clã. Em outubro, ganhou uma ação judicial
contra o Estado. Um juiz atribuiu-lhe €150 mil por perdas e danos, depois de
descobrir que o Ministério Público tinha, há vários anos, atentado contra a sua
reputação, ao certificar a autenticidade de um telefonema privado entre ele e o
albanês Baki Sadiki, chefe da máfia da droga, revelado pela comunicação social.
Sadiki escapou e foi, mais tarde, condenado à revelia a 22 anos de prisão na
Eslováquia.
As vítimas
O Conselho da
Magistratura, criado em 2003, é a mais alta instância judiciária autónoma. Mas
pessoas com reputação mais do que duvidosa assumiram o seu controlo e começaram
a silenciar os seus opositores.
Juraj Majchrák foi
quem concebeu o Conselho da Magistratura. Vice-presidente prestigiado do
Supremo Tribunal Federal, foi o primeiro da lista. Na qualidade de presidente
da instituição, Harabin encetou uma série de procedimentos disciplinares contra
ele, em 2009, por alegada inércia no exercício das suas funções; aplicou-lhe a
punição mais grave de que dispunha – a exoneração. Majchrák entrou em profunda
depressão. Em 2011, enforcou-se na garagem de sua casa.
Nas suas exéquias,
que mais se assemelharam a um protesto contra Harabin do que a uma cerimónia
religiosa, um juiz declarou abertamente que as “intimidações” tinham tido uma
grande quota-parte de responsabilidade na morte de Majchrák.
A história de Marta
Lauková é igualmente trágica. Em 2009, recebeu uma mensagem da sua superior
hierárquica, dizendo-lhe para libertar da prisão um homem suspeito de pertencer
a uma quadrilha internacional de traficantes – era uma "exigência do
Ministério" (a que Harabin presidia). Recusou-se e participou à polícia,
numa tentativa de influenciar o veredicto.
Começou
imediatamente a sofrer retaliações, provenientes da mais alta esfera: transferência
para outro departamento, controlos de presença no local de trabalho,
humilhações de todos os tipos. Acabou por não aguentar e ficou doente. O
Conselho da Magistratura vetou o pagamento do subsídio de doença, alegando que
se tratava de fingimento. Pouco tempo depois, ela entrou em coma e morreu de
insuficiência cardíaca.
Foi Helena
Koziková, sua colega e superior hierárquica, quem, numa atitude revanchista,
procedeu à apreensão do seu subsídio de saúde. Hoje, a mesma juíza entrou com
uma queixa-crime contra a realizadora Zuzana Piussi, que integrou no seu
documentário uma cena dramática, em que a filha da falecida juíza acusa
frontalmente Koziková de ter parte de responsabilidade na morte da mãe. Além de
uma pena de prisão, Koziková pretende condenar a realizadora e a televisão
eslovaca, num processo civil, a pagarem €40 mil por perdas e danos.
A situação começa a
mudar
A morte de Juraj
Majchrák e Marta Lauková podem ter sido a proverbial gota de água que despertou
a maioria silenciosa. "Não deixemos que tenham morrido em vão",
ouvia-se em reuniões públicas da nova organização de juízes Za Otvorenú
Justíciu [Por uma justiça transparente]. "Somos cerca de 50", diz
Javorciková, a presidente do movimento. "E, graças aos meios de
comunicação, conseguimos fazer-nos ouvir cada vez mais. Já não ousam
intimidar-nos hoje como faziam há alguns anos. Mesmo a opinião pública começa a
estar mais sensibilizada." O clã de juízes que controla o topo do aparelho
judiciário constitui uma franja relativamente marginal (de aproximadamente 10%)
dos 1400 juízes da República Eslovaca.
A situação começa a
mudar. Harabin ainda controla o Conselho da Magistratura, mas já não dispõe de
maioria. E agora, jornalistas e deputados europeus apresentam-se, em
solidariedade, nas sessões de procedimentos disciplinares contra juízes
recalcitrantes, num simulacro dos julgamentos criminais do regime comunista (fala-se
em "lesar a reputação da justiça ").
A ação contra
Zuzana Piussi é seguida de muito perto. Foi lançada uma campanha de assinaturas
ao estilo das petições que se apresentavam durante o regime comunista. Os
signatários declaram aprovar a infração cometida por Zuzana Piussi –
intervenção da juíza Koziková no documentário, sem consentimento – e, desta
forma, exigem também ser punidos. São já algumas centenas.
O produtor do
documentário colocou-o gratuitamente na Internet. Dezenas de milhares de
cibernautas já o viram.
"Que época é
esta, afinal, em que, como no tempo do comunismo, as pessoas assinam petições
para se defenderem umas às outras?”, interroga Zuzana Piussi. "Mas sem
esse apoio, provavelmente eu iria parar à cadeia."
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