Manuel Maria
Carrilho – Diário de Notícias, opinião
O eco que as
inconformistas palavras de Mário Soares têm encontrado, na sua crítica à
situação atual, revelam bem como todas as facetas da crise acabam por convergir
numa aguda crise de sentido, na sua dupla aceção de direção e de significado:
nem sabemos para onde vamos, nem percebemos o que fazemos, ou nos pedem que
façamos.
Com efeito, vivemos
numa época em que, sob a torrencial pressão dos fluxos da atualidade, tudo
desaparece mal aparece, tornando o passado numa reminiscência. Em que todas as
expectativas se esvaem entre as maiores incertezas, tornando o futuro numa
quimera. Em que as ideologias já quase nada explicam. Em que não há bússola e
as maiores mutações ocorrem sem registo nem avaliação. Em que uma decomposição
cloroformizada atinge devastadoramente todas as instituições.
Portugal vive num
desatino completo: quer se trate das funções do Estado e da sua
"refundação", do orçamento e das suas inconstitucionalidades, da RTP
e caos em que mergulhou a ideia de serviço público, do impasse europeu e das
suas consequências. Um desatino que lembra as inspiradas palavras de Agustina
Bessa-Luís, quando ela fala de uma "perfeita improvisação do destino.
Todos se contradizem, mas ninguém entra em conflito. De facto,
não há nenhum desejo de luta. As pessoas confraternizam com o irremediável,
mais do que estão divididas nas ideias."
É verdade que a
sociedade mediática torna tudo simultaneamente mais instável e mais fugaz,
dificultando assim a formação de uma opinião pública que compreensivelmente
procura sempre pontos de estabilidade e de referência, que lhe orientem as
expectativas e lhe inspirem a ação.
Ela caracteriza-se,
como bem explica Gilles Lipovetsky em Sociedade da Decepção (agora
oportunamente traduzido para português, pela Edições 70), pela multiplicação e
a alta frequência da experiência decetiva, tanto no plano público como no
privado, experiência que, como ele sublinha, decorre não só dos
"despedimentos, das deslocalizações e da gestão ansiógena dos potenciais de
cada um, mas se enraíza nos ideais de 'épanouissement' pessoais veiculados em
grande escala pela sociedade de hiperconsumo."
Neste contexto, a
responsabilidade dos media é enorme. Mas a crise também os atinge fortemente,
pondo cada vez mais em causa um bem público da maior importância: a informação,
uma informação que a vitalidade democrática exige que seja tão rigorosa, tão
contextualizada e tão plural quanto possível.
Porque a informação
é uma necessidade vital, de primeira ordem, dos indivíduos e das sociedades.
Ela é o cimento da sua ligação ao mundo, que tanto abre para a formação da
opinião e para a evolução do conhecimento, como para o entrosamento coletivo e
para a vivência solidária. Sem informação, não há sociedade, mas apenas
exclusão, fragmentação e clausura.
Infelizmente, a
crise acaba por estimular sobretudo outros caminhos, e nomeadamente uma
insidiosa cumplicidade em que a política e os media tendem a convergir cada vez
mais, transformando-se em verdadeiros coprodutores da atualidade. É este facto
que hoje impõe no espaço público português um tipo de abordagem que tem mais a
ver com a excitação em torno de eventos, do que com a compreensão do que na
verdade acontece no País, na Europa e no mundo.
Neste quadro,
embora não surpreenda, é de lamentar a degradação do comentário político a que
se tem vindo a assistir, também ele coproduzido nos mesmos moldes e em geral
(as exceções confirmam a regra) entregue mais a histéricos
"animadores" da atualidade, do que a observadores, analistas ou decifradores
das suas razões, das suas tensões e das suas evoluções. Como se a tagarelice
pública se tivesse tornado numa mera câmara de ressonância dos atordoamentos
privados.
Tudo começou há
muito com Marcelo Rebelo de Sousa, que continua sem dúvida a ser o exemplo mais
inspirador desta singularidade lusitana, a do comentário que tudo confunde numa
alacridade sem prudência, e muitas vezes sem escrúpulos: pequena intriga e
grande política, ruminação e interpretação, tagarelice e explicação,
gesticulação e autenticidade.
Características
que, de resto, fazem dele hoje o mais sério candidato à reencarnação mediática
do saudoso José Hermano Saraiva, que - talvez para surpresa de alguns! - é
manifestamente o destino nacional que os portugueses lhe reservam, e também
aquele que as suas habilidades comunicacionais mais indiscutivelmente lhe
garantem.
Pena é que, na
nossa democracia, sejam poucos os que vêm como uma evidência o facto de o uso e
a manipulação de informação privilegiada, enviesadamente obtida junto de dóceis
gabinetes (ministeriais e não só), ser exatamente o processo que está na origem
de múltiplas formas de tráfico de influências e de diversas modalidades de
corrupção, que tão mal têm feito ao País.
Coisas sérias,
portanto... E é por isso mesmo que - entre outras razões de peso - estas
práticas mediáticas são estritamente impensáveis nas democracias europeias mais
consolidadas e exigentes, onde uma tal transumância não é sequer tolerada.
Precisamos mais de
observadores da realidade do que de comentadores da atualidade. De observadores
que, mais do que tagarelar sem fim sobre as insignificâncias de um qualquer
evento, consigam explicar as causas do que acontece e decifrar os indícios do
que lá vem.
E o que lá vem é um
destino que não se improvisa. É justamente por isso que as palavras de Mário
Soares merecem o eco que têm tido - e um debate sério, que não tem havido.
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