quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Portugal: IMPROVISAR O DESTINO

 


Manuel Maria Carrilho – Diário de Notícias, opinião
 
O eco que as inconformistas palavras de Mário Soares têm encontrado, na sua crítica à situação atual, revelam bem como todas as facetas da crise acabam por convergir numa aguda crise de sentido, na sua dupla aceção de direção e de significado: nem sabemos para onde vamos, nem percebemos o que fazemos, ou nos pedem que façamos.
 
Com efeito, vivemos numa época em que, sob a torrencial pressão dos fluxos da atualidade, tudo desaparece mal aparece, tornando o passado numa reminiscência. Em que todas as expectativas se esvaem entre as maiores incertezas, tornando o futuro numa quimera. Em que as ideologias já quase nada explicam. Em que não há bússola e as maiores mutações ocorrem sem registo nem avaliação. Em que uma decomposição cloroformizada atinge devastadoramente todas as instituições.
 
Portugal vive num desatino completo: quer se trate das funções do Estado e da sua "refundação", do orçamento e das suas inconstitucionalidades, da RTP e caos em que mergulhou a ideia de serviço público, do impasse europeu e das suas consequências. Um desatino que lembra as inspiradas palavras de Agustina Bessa-Luís, quando ela fala de uma "perfeita improvisação do destino. Todos se contradizem, mas ninguém entra em conflito. De facto, não há nenhum desejo de luta. As pessoas confraternizam com o irremediável, mais do que estão divididas nas ideias."
 
É verdade que a sociedade mediática torna tudo simultaneamente mais instável e mais fugaz, dificultando assim a formação de uma opinião pública que compreensivelmente procura sempre pontos de estabilidade e de referência, que lhe orientem as expectativas e lhe inspirem a ação.
 
Ela caracteriza-se, como bem explica Gilles Lipovetsky em Sociedade da Decepção (agora oportunamente traduzido para português, pela Edições 70), pela multiplicação e a alta frequência da experiência decetiva, tanto no plano público como no privado, experiência que, como ele sublinha, decorre não só dos "despedimentos, das deslocalizações e da gestão ansiógena dos potenciais de cada um, mas se enraíza nos ideais de 'épanouissement' pessoais veiculados em grande escala pela sociedade de hiperconsumo."
 
Neste contexto, a responsabilidade dos media é enorme. Mas a crise também os atinge fortemente, pondo cada vez mais em causa um bem público da maior importância: a informação, uma informação que a vitalidade democrática exige que seja tão rigorosa, tão contextualizada e tão plural quanto possível.
 
Porque a informação é uma necessidade vital, de primeira ordem, dos indivíduos e das sociedades. Ela é o cimento da sua ligação ao mundo, que tanto abre para a formação da opinião e para a evolução do conhecimento, como para o entrosamento coletivo e para a vivência solidária. Sem informação, não há sociedade, mas apenas exclusão, fragmentação e clausura.
 
Infelizmente, a crise acaba por estimular sobretudo outros caminhos, e nomeadamente uma insidiosa cumplicidade em que a política e os media tendem a convergir cada vez mais, transformando-se em verdadeiros coprodutores da atualidade. É este facto que hoje impõe no espaço público português um tipo de abordagem que tem mais a ver com a excitação em torno de eventos, do que com a compreensão do que na verdade acontece no País, na Europa e no mundo.
 
Neste quadro, embora não surpreenda, é de lamentar a degradação do comentário político a que se tem vindo a assistir, também ele coproduzido nos mesmos moldes e em geral (as exceções confirmam a regra) entregue mais a histéricos "animadores" da atualidade, do que a observadores, analistas ou decifradores das suas razões, das suas tensões e das suas evoluções. Como se a tagarelice pública se tivesse tornado numa mera câmara de ressonância dos atordoamentos privados.
 
Tudo começou há muito com Marcelo Rebelo de Sousa, que continua sem dúvida a ser o exemplo mais inspirador desta singularidade lusitana, a do comentário que tudo confunde numa alacridade sem prudência, e muitas vezes sem escrúpulos: pequena intriga e grande política, ruminação e interpretação, tagarelice e explicação, gesticulação e autenticidade.
 
Características que, de resto, fazem dele hoje o mais sério candidato à reencarnação mediática do saudoso José Hermano Saraiva, que - talvez para surpresa de alguns! - é manifestamente o destino nacional que os portugueses lhe reservam, e também aquele que as suas habilidades comunicacionais mais indiscutivelmente lhe garantem.
 
Pena é que, na nossa democracia, sejam poucos os que vêm como uma evidência o facto de o uso e a manipulação de informação privilegiada, enviesadamente obtida junto de dóceis gabinetes (ministeriais e não só), ser exatamente o processo que está na origem de múltiplas formas de tráfico de influências e de diversas modalidades de corrupção, que tão mal têm feito ao País.
 
Coisas sérias, portanto... E é por isso mesmo que - entre outras razões de peso - estas práticas mediáticas são estritamente impensáveis nas democracias europeias mais consolidadas e exigentes, onde uma tal transumância não é sequer tolerada.
 
Precisamos mais de observadores da realidade do que de comentadores da atualidade. De observadores que, mais do que tagarelar sem fim sobre as insignificâncias de um qualquer evento, consigam explicar as causas do que acontece e decifrar os indícios do que lá vem.
 
E o que lá vem é um destino que não se improvisa. É justamente por isso que as palavras de Mário Soares merecem o eco que têm tido - e um debate sério, que não tem havido.
 

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