José Manuel Pureza
- Diário de Notícias, opinião
Temos um Presidente
da República que, entre a Constituição de que é garante e o memorando com a
troika, escolhe este e hipoteca aquela.
Bem pode o
porta-voz do PS louvar a mensagem de ano novo do Presidente por ter deixado
Passos Coelho politicamente isolado. Bem podem os opinadores encartados do
costume encontrar na dita sinais de descolagem de Belém relativamente a São
Bento. Um e outros querem que esqueçamos o essencial: Cavaco Silva é figura de
referência das direitas tecnocráticas e dos economistas do deslaçamento social
para quem a democracia é um estorvo.
Cavaco Silva é um
político profissional. E a sua mensagem de ano novo foi isso mesmo: um
exercício de pura política profissional. Daquela que, por dizer uma coisa e o
seu contrário, tem conduzido a uma alergia crescente dos portugueses pela
política. Do Orçamento do Estado disse que é um alimentador da espiral
recessiva que está a destruir a economia portuguesa, que arrasa fiscalmente a
população trabalhadora e o tecido empresarial, que é profundamente injusto e,
para usar palavras brandas, que "suscita dúvidas" sobre a sua
conformidade com os princípios elementares de equidade e não discriminação
estatuídos pela Constituição. Isto dito, Cavaco pede desculpa mas promulga o
dito horror. Fica claro: Cavaco partilha com Seguro a cultura da abstenção
violenta. É o interesse nacional que mo impõe, diz com o ar grave que essa
contrariedade requer. Queria não o ter promulgado mas se o não tivesse feito o
País afundar-se-ia, seria o caos. E a gente pergunta: mas uma coisa assim tão
má como o Presidente da República a pinta não traz o caos agarrado a ela? Um
Orçamento tão destruidor não afunda o País? Uma lei com tão grande
probabilidade de ser inconstitucional promulga-se e depois logo se vê? É isto
um Presidente responsável?
Político
profissional com muitos anos de prática, Cavaco Silva faz escolhas a coberto de
imperativos gerais, pedindo desculpas por não poder alegadamente fazer outras.
Na sua mensagem, Cavaco Silva enunciou com clareza a sua escolha política:
repudiará qualquer crise política - leia-se: não quer que se force a demissão
do Governo nem que haja eleições - e fará do cumprimento do memorando com a
troika o mandamento maior da vida do País. Ora, criticar o Orçamento e fazer a
apologia do cumprimento do memorando é uma contradição insanável. O Orçamento é
o que é porque o memorando estabelece o que estabelece. O Orçamento do
memorando é a crise da política real, mesmo se não houver crise política formal.
Mas disso Cavaco Silva não quer saber. O que verdadeiramente lhe causa
preocupação é que possa ganhar força a exigência de renegociação da dívida.
Porque sabe que é aí que se desmorona a política de que ele é presidente, sabe
que é aí que se rompe com a hegemonia da política do embaratecimento do
trabalho, da política das privatizações a pataco, da política que rasga o
contrato com os cidadãos mas sacraliza o contrato com os credores.
Cumprir o memorando
para que tenhamos imagem de bom aluno e os credores possam continuar a
financiar uma economia de baixos salários, de baixa qualificação e de direitos
mínimos - esse é o desígnio de Cavaco Silva. E para que ele se cumpra, o
Presidente toca a reunir. Ao lembrar que o memorando foi assinado por uma
constelação partidária que representa 90% do espaço parlamentar, Cavaco põe no
centro da política uma fórmula governativa de banda larga para apoio ao
memorando da troika, seja com coligação formal ou com outra forma
institucional. É a essa escolha de Cavaco que cada partido tem de responder.
Alinhando com ela ou combatendo-a. Não há espaço para abstenções. Mesmo
violentas.
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