Vaiar um rei, como
ocorreu na final do torneio nacional de basquete espanhol, neste final de
semana, não é comum nos países que têm reis e rainhas. Na Espanha, nunca tinha
acontecido. Agora aconteceu, numa demonstração cabal de que a desesperança
alcançou seu limite máximo no país de Pablo Picasso e de Joan Miró.
Eric Nepomuceno - Carta Maior
Até um ou dois anos
atrás, seria impensável. Mas aconteceu, no domingo 10 de fevereiro. Na final do
torneio nacional de basquete espanhol, a Copa del Rey, o rei em pessoa foi
vaiado. E muito vaiado. O Barcelona derrotou o Valencia por 85 a 69. Mas o jogo
não será lembrado por esse resultado: será lembrado pela primeira vaia pública
ao monarca que foi considerado, por décadas, uma espécie de guardião da
democracia reconquistada após a morte do sinistro Francisco Franco, ‘caudillo
de España por la gracia de Dios’, em 1975.
Vaiar um rei não é comum nos países que têm reis e rainhas. Questão de
educação, de boa conduta. Na Espanha, nunca tinha acontecido. Agora aconteceu,
e não por um súbito surto de má educação dos súditos de sua majestade real
(que, aliás, gastam milhões de euros por ano para manter a família do monarca).
Aconteceu numa demonstração cabal de que o desencanto e a desesperança
alcançaram seu limite máximo no país de Pablo Picasso e de Joan Miró.
Há dois anos, quando explodiu em seu esplendor na Espanha o movimento dos
‘indignados’, o país tinha quatro milhões de desempregados e todos diziam que
estavam vivendo uma crise tremenda. Pois bem: hoje, os desempregados superam a
marca dos seis milhões. Isso quer dizer que 26% da força de trabalho do país
estão desempregados. Entre os jovens com menos de 30 anos, o panorama é ainda
mais desolador: 55% deles não têm esperança alguma de conseguir um emprego.
Jovens recém formados em universidades falsificam a própria condição para
disputar um posto de lixeiro ou entregador de correios. Dizem ter educação
secundária. É que o que restou da legislação trabalhista, dizimada pelo governo
direitista do Partido Popular, ainda prevê certas regalias para quem tem curso
superior – progredir na carreira, por exemplo.
A saúde pública, que já foi considerada uma das melhores da Europa, foi para o
brejo. Médicos da rede pública pedem demissão e buscam emprego em outros
países. Eles se negam a restringir a atenção à população, conforme determina o
governo.
A educação pública está virando mingau. As famílias passaram a vender o que têm
ou tinham: a quantidade de ouro, joias familiares passadas de geração a
geração, que a Espanha exporta para mercadores internacionais ganhou vulto em
2012, a ponto de chamar a atenção dos especuladores do mundo. E como se tudo
isso fosse pouco, pipocam, com intensidade cada vez maior, as denúncias de
corrupção.
O rei Juan Carlos I foi vaiado pelo que fez e pelo que fizeram membros da
família real. Seu genro Iñaki Urdangarín, por exemplo, está sendo acusado de
ter desviado pelo menos oito milhões de euros de recursos públicos. O próprio
rei foi pilhado numa viagem clandestina (dizem as leis que quando quiser sair
do país o monarca tem que pedir autorização aos parlamentares) para caçar elefantes
na África, em companhia de sua jovem amiga alemã. Pois o desastrado rei caiu,
quebrou a bacia, e foi um deus-nos-acuda, já que, formalmente, ele estava em
casa e não num safári ilegal. A rainha Sofia fechou a cara, os súditos
espanhóis abriram sorrisos: afinal, não é todo dia que se pega um rei safado
numa escapadela conjugal – e matando elefantes, justo ele, que presidia várias
organizações de defesa da natureza e do reino animal.
O esfacelamento maior da Espanha, porém, se dá na descoberta de um sistema de
compra de parlamentares, por grandes empreiteiras, grandes empresas e pela
banca, que atinge, entre outros, o puritano galego Mariano Rajoy,
primeiro-ministro e estrela até agora fulgurante do Partido Popular, de
direita.
Na verdade, e pensando bem, Rajoy até que era baratinho: 25 mil euros anuais.
Uns 6 mil reais por mês. Para tentar se defender e negar a lambança, ele
divulgou suas declarações de renda dos últimos dez anos. Pior a emenda que o
péssimo soneto: ficou claro que ele não pagava a devida contribuição da
previdência social. E mais: que ganhou 30% de aumento enquanto os salários do
funcionalismo público eram recortados em 25%.
Conforme crescem as denúncias contra o Partido Popular, fica mais claro que os
instrumentos de fiscalização e controle da Espanha são de uma ineficácia
formidável. E assim, o que agora caiu em descrédito foi a própria Justiça
espanhola.
Enquanto isso, os espanhóis desassossegados se perguntam quando e como tudo
aquilo que havia sido conquistado e consolidado desde o fim da ditadura
franquista começou a virar purê. Considerada, por anos, como exemplo de uma
transição entre ditadura cruel e democracia promissora, a Espanha de hoje é o
pálido reflexo de uma imagem que se esfumou.
Fotos: Wikipedia
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