Depois de algum
modo ter transformado todo o Islã em um inimigo, Washington simplesmente
atrelou-se a intermináveis crises, as quais não teve nenhuma chance de vencer.
Nesse sentido, o Iraque não foi uma aberração, mas o auge histórico de um modo
de pensar que agora está lentamente ruindo. Por Peter Van Buren, do The Nation
Peter Van Buren -
The Nation - Carta Maior
Eu estava lá. E
esse lugar era onde se deve estar se você quiser ver os sinais do fim dos
tempos para o império americano. Era o lugar para se estar se você quiser ver a
loucura e, oh, sim, foi uma loucura, não filtrada através de uma mídia
complacente e sonolenta que fez a política de guerra de Washington parecer, se
não sensível, pelo menos sensata e séria o suficiente. Eu estava no Ground
Zero, que era para ser a peça central de uma nova Pax Americana no
Grande Oriente Médio.
Não querendo estigmatizar, mas a invasão do Iraque acabou por ser uma piada.
Não para os iraquianos, claro, e nem para os soldados americanos. E aqui a mais
triste verdade de tudo: no dia 20 de março, que marca o décimo aniversário da
invasão infernal, nós ainda não entendemos seu propósito. No caso de você
querer ir para o cerne da questão, ao invadir o Iraque os Estados Unidos
fizeram mais para desestabilizar o Oriente Médio do que nós poderiamos ter
imaginado àquela altura. E nós - e muitos outros - iremos pagar o preço por
isso por muito, muito tempo.
A loucura do Rei George
É fácil esquecer quão normal a loucura pareceu naquela época. Em 2009, quando
eu cheguei no Iraque, já estávamos no momento do último suspiro da
possibilidade de salvar algo que já podia ser entendido como o maior erro da
história da politíca externa americana. Foi então que, como um oficial do
Departamento de Estado designado para liderar duas equipes de reconstrução
provincial no leste do Iraque, eu entrei pela primeira vez naquela fábrica de
processamento de frango que ficava no meio do nada.
Até então, o plano de resconstrução americano estava afundando em rios de
dinheiro mal gasto. No centro dos esforços americanos - pelo menos depois de os
Estados Unidos abandonarem a ideia de um governo interino para o Iraque, e de
que nossas tropas invasoras seriam recibidas com doces e flores como
libertadores - nós não tinhamos conseguido reconstruir nada de significante.
Primeiramente concebido como um Plano Marshall para o novo século americano,
seis longos anos depois tudo tinha se desenvolvido em uma farça.
Na meu período de atuação, os Estados Unidos gastaram algo entorno de 2,2
milhões de doláres para construir uma enorme instalação no meio de nada.
Ignorando a dura realidade dos iraquianos que nasceram e vendiam frangos ali há
cerca de 2000 anos, os Estados Unidos decidiram financiar a construção de uma
unidade central de processamento (tendo os iraquianos como gerentes de compras
locais) que cortará os frangos com máquinas complexas trazidas de Chicago,
empacotaria os peitos e asas em filme plástico e, em seguida, transportaria
tudo para supermercados locais. Talvez tenha sido o calor do deserto, mas isso
fazia sentido na época, e o plano foi apoiado pelo Exército, o Departamento de
Estado e a Casa Branca.
Elegante na concepção, pelo menos para nós, mas não se conseguiu lidar com
algumas deficiências simples, como a falta de energia elétrica regularmente, um
sistema logístico para levar as frangos para a fábrica, capital de giro, e...
mercearias. Como resultado disso, os reluzentes 2,2 milhões investidos na
fábrica não processaram nenhum frango. Para usar algumas das palavras de ordem
do momento, nada foi transformado, não qualificou ninguém, não estabilizou nem
promoveu economicamente nenhum iraquiano. Ele apenas ficou lá vazio, escuro e
não utilizado no meio do deserto. Como os frangos nós fomos depenados.
De acordo com a loucura da época, no entanto, o simples fato que a fábrica não
ter cumprido nenhum de seus reais objetivos não significa que o projeto não foi
um sucesso. Na verdade, a fábrica foi um sucesso na mídia dos EUA. Afinal, para
cada visita monitorada, com fins de propaganda, à fábrica, meu grupo abastecia
o local às pressas com frangos comprados, preparávamos as máquinas e faziamos
uma apresentação fantasiosa.
No humor negro daquele momento, nós batizamos o lugar de Fábrica de Frango
Potemkin. Entre visitas públicas e privadas, tudo ficava às escuras, apenas
ressurgindo com o cantar do galo a cada manhã que alguma equipe de filmagem
vinha para uma visita. Nossa fábrica foi, portanto, considerada um grande
sucesso. Robert Ford, então na embaixada de Bagdá e agora embaixador dos EUA
para a Síria, disse que sua visita foi o melhor dia que ele esteve no Iraque. O
general Ray Odierno, então comandannte de todas as forças dos EUA no Iraque,
enviou blogueiros e civis, que acompanhavam os militares, para ver o projeto da
vitória. Algumas das propagandas proclamavam que "ensinando os iraquianos
a florescer sozinhos dá a eles a capacidade de fornecer a sua própria
estabilidade, sem necessidade de contar com os americanos".
A fábrica de frangos era uma história engraçada no começo, o tipo da piada
interna que você precisa saber o que realmente ocorre pra entender. É, nós
desperdiçamos algum dinheiro, mas 2,2 milhões de dólares é uma quantia pequena
numa guerra que um dia irá custar trilhões. Realmente, ao final das contas,
qual foi o prejuízo?
O dano foi este: nós queríamos deixar o Iraque (e o Afeganistão) estáveis para
avançar nos objetivos americanos. Fizemos isso gastando nosso tempo e dinheiro
em coisas obviamente inúteis, enquanto a maioria dos iraquianos não têm acesso
a electricidade, água limpa, regular e assistência médica ou hospitalar. Como
poderíamos ajudar a estabilizar o Iraque se nós agíamos como palhaços? Como um
iraquiano me disse, "é como se eu estivesse pelado em uma sala com um
grande chapéu na minha cabeça. Todo mundo entra e ajuda a botar flores e fitas
no meu chapéu, mas ningúem parece reparar que eu estou pelado".
Por volta de 2009, é claro, tudo isso deveria estar muito óbvio. Nós não
estavamos mais dentro do sonho neoconservador de uma superpotência mundial
incomparável, estávamos apenas atolados no que aconteceu neste sonho. Nós
eramos uma fábrica de galinhas no deserto que ninguém queria.
Viagem no tempo para 2003
Aniversários são tempos de reflexão, em parte, porque é muitas vezes só
retrospectivamente que reconhecemos os momentos mais significativos em nossas
vidas. Por outro lado, em aniversários muitas vezes é difícil lembrar o que era
tudo, realmente, quando tudo começou. Em meio ao caos do Oriente Médio hoje, é
fácil, por exemplo, esquecer como as coisas pareciam no começo de 2003. O
Afeganistão pareceu ter sido invadido e ocupado de forma rápida e limpa, de
forma que os soviéticos (os britânicos, os gregos antigos...) jamais poderiam
ter sonhado. O Irã estava assustado, vendo o poderoso exército americano na sua
fronteira oriental e em breve na ocidental também, e estava pronto para
negociar.
A maioria do resto do Oriente Médio foi enfiado em um longo sono com ditadores
confiáveis o suficiente para manter a estabilidade. A Líbia era uma exceção,
embora as previsões eram de que em pouco tempo Muammar Kadafi iria fazer algum
tipo de acordo. E ele fez. Tudo o que era necessário era um golpe rápido no
Iraque para estabelecer uma presença militar americana permanente no coração da
Mesopotâmia. Nossas futuras guarnições militares lá, obviamente,
supervisionariam as coisas, fornecendo os músculos necessários para derrubar
todos os futuros elementos desestabilizadores. Isso fazia tanto sentido para a
visão neoconservadora do começo da era Bush. A única coisa com a qual
Washington não contava era que nós fossemos o primeiro elemento
desestabilizante.
De fato, o grande plano estava se desintegrando até durante o período em que
ele estava sendo sonhado. Com vontade de ter tudo em seus termos, a equipe de
Bush perdeu uma oportunidade diplomática com o Irã que poderia ter feito o
barulho de hoje desnecessário. Como parte do desastre, homens desesperados,
blindados pela história, aumentaram o volume de medidas desesperadas: tortura,
gulags secretos, dissimulações, uso de drones para assassinatos, e ações
extraconstitucionais em casa. O mais frágil do acordos foi aparado para tentar
salvar alguma coisa, incluindo ignorar a rede de proliferação nuclear
paquistanesa A.Q Khan em troca de uma aproximação com Líbia, e uma foto brega
da Condoleezza Rice com o Kadafi.
Dentro do Iraque, as forças do conflito sectário entre sunitas e xiitas foram
desencadeadas pela invasão dos EUA. Isso, por sua vez, criou as condições para
um confronto entre os Estados Unidos e o Irã dentro da política interna
iraquiana, similar à crescente guerra na política interna do Líbano entre
Israel e Irã.
Nada disso terminou. Hoje, de fato, a guerra na política interna desses países
simplesmente achou um novo palco, a Síria, com várias forças usando "ajuda
humanitária" para empurrar e impulsionar os seus alidados sunitas e xiitas.
Descontentando as expectativas neoconservadoras, o Irã emerge da década
americana no Iraque economicamente mais poderoso, com o comércio não oficial
entre os dois vizinhos sendo avaliado agora em cinco bilhões de dólares por
ano, valor que continua crescendo. Nessa década, os Estados Unidos também
conseguiram remover um dos contrapesos estratégicos do Irã, Saddam Hussein,
substituindo-o por um governo dirigido por Nouri al-Malaki, que já encontraram
apoio em Teerã.
Enquanto isso, a Turquia está agora envolvida em uma guerra aberta com os
curdos do norte do Iraque. A Turquia é, naturalmente, parte da Otan, então
imagine o governo dos EUA sentado em silêncio enquanto a Alemanha bombardeava a
Polônia. Para completar o círculo, o primeiro-ministro do Iraque advertiu
recentemente que uma vitória dos rebeldes da Síria vai desencadear guerras
sectárias em seu próprio país e vai criar um novo refúgio para a Al Qaeda, que
iria desestabilizar ainda mais a região.
Enquanto isso, militarmente queimado, economicamente sofrendo com as guerras no
Iraque e no Afeganistão e sem qualquer moral no Oriente Médio pós-Guantánamo e
Abu Ghraib, os Estados Unidos sentam sobre suas próprias mãos, com a faísca
regional do que veio a ser chamada de Primavera Árabe se apagando, para ser
substituída por desestabilização ainda maior dentro da região. E mesmo assim
Washington não parou de procurar a versão mais recente da (agora sem nome)
guerra global contra o terror em regiões cada vez mais novas que precisam de
desestabilização.
Tendo notado a facilidade com que o entorpecido público americano
patrioticamente olhou para o outro lado, enquanto nossas guerras seguiram seus
caminhos específicos para o desastre, nossos líderes nem sequer piscam mais
ante a possibilidade de mandar caças americanos não tripulados e forças de
operaçoes especiais para lugares cada vez mais distantes, notavelmente mais
para dentro da África, criando das cinzas do Iraque uma versão do estado de
guerra perpétua que George Orwell uma vez imaginou em seu romance não-utópico
1984.
Feliz aniversário
No décimo aniversário da Guerra do Iraque, o Iraque continua, em qualquer
nível, um lugar perigoso e instável. Até mesmo o sempre otimista Departamento
de Estado aconselha viajantes americanos que vão para o Iraque, posto que esses
cidadãos "continuam correndo risco de serem sequestrados... porque grupos
rebeldes, incluindo Al Qaeda, ainda estão ativos", além de notar que
"a norma do Departamento de Estado para negócios americanos no Iraque
aconselha o uso de 'Detalhes de Segurança'".
Numa perspectiva mais ampla, o mundo está muito mais inseguro e perigoso do que
estava em 2003. De fato, para o Departamento de Estado, que me enviou para o
Iraque para testemunhar as leviandades do imperialismo, o mundo tornou-se ainda
mais assustador. Em 2003, no momento infame do "missão cumprida", só
a embaixada em território afegão foi considerada "extremamente
perigosa" na lista de embaixadas além-mar. Não muito mais tarde, ainda,
Iraque e Paquistão foram adicionados nesta lista. Hoje, Iemêm e Líbia, antes
seguros para embaixadas, agora estão categorizadas como "extremamente
inseguras".
Outros lugares antes considerados tranquilos para diplomatas e suas famílias,
como Síria e Mali, foram esvaziadas e não contam com nenhuma presença
diplomática americana. Até mesmo a sonolenta Tunísia, uma vez calma o bastante
para que uma escola de árabe fosse estabelecida na embaixada, conta agora com
uma equipe reduzidíssima com nenhum familiar residente. No Egito isso é
oscilante.
Explicitamente o grande apologista da estrátegia adotada no Iraque, com a
ausência de George W. Bush e dos altos funcionários de seu governo, o
ex-primeiro-ministro britânico Tony Blair lembrou-nos recentemente de que há
mais no horizonte. Admitindo que há "muito tempo desistiu de tentar persuadir
as pessoas do Iraque que foi a decisão certa", Blair acrescentou que novas
crises estão se aproximando. "Você tem uma crise hoje na Síria, você tera
uma outra no Irã em breve", disse ele. "Estamos no meio dessa luta,
que vai levar uma geração, e vai ser muito árduo e difícil. Mas acho que
estaremos cometendo um erro, um erro profundo, se pensarmos que podemos ficar
fora dessa luta".
Pense nesse comentário como um aviso. Depois de algum modo ter transformado
todo o Islã em um inimigo, Washington simplesmente atrelou-se a intermináveis
crises nas quais não tem nenhuma chance de vencer. Nesse sentido, o Iraque não
foi uma aberração, mas o auge histórico de um modo de pensar que agora está
lentamente ruindo. Por décadas, os Estados Unidos terão uma força militar
grande o suficiente para garantir que a nossa queda seja lenta, sangrenta, feia
e relutante, embora inevitável. Um dia, porém, mesmo os caças não tribulados
terão que aterrissar. Assim, feliz 10 anos de aniversário, Guerra do Iraque!
Uma década depois da invasão, um caótico e instavél Oriente Médio é o legado
não terminado da nossa invasão. Eu acho que o alvo da piada somos nós ao final,
embora ninguém esteja rindo.
Tradução: Mailliw Serafim e Caio Sarack
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