A estupidez alemã
transformou a crise no Chipre, essa ilha de fantasia que funciona como um
paraíso fiscal para magnatas russos, num bumerangue com potencial de reverter
sobre a Europa e o mundo.
J. Carlos de Assis - Carta Maior
Em algum momento
algo como a crise de Chipre teria de acontecer para expor ao mundo, de forma
pedagógica, a monstruosidade que se tornou o sistema financeiro internacional.
Chipre é uma ilha insignificante do Mediterrâneo com um PIB de pouco mais de 10
bilhões de euros. Nada que tenha acontecido ali deveria, em tese, abalar o
sistema bancário europeu, mesmo que o montante de seus ativos financeiros
especulativos atinja cerca de 8 vezes o PIB. Contudo, a estupidez alemã
transformou a crise nessa ilha de fantasia, nada mais que um paraíso fiscal
para magnatas russos, num bumerangue com potencial de reverter sobre a Europa e
o mundo.
Foram os alemães como mandantes nos bastidores da troika – Comissão Europeia,
BCE e FMI – que tiveram a ideia fantástica de exigir como garantia de um
empréstimo de 10 bilhões de euros para estabilizar o sistema bancário cipriota
um imposto excepcional sobre depósitos em seus principais bancos. O imposto deveria
atingir inclusive a parte dos depósitos coberta por seguro (100 mil euros) o
qual protege depósitos de todos os países que aderiram ao euro. Considerado o
tamanho de Chipre, o efeito seria irrelevante. Considerado o precedente, é como
uma pequena gravidez: a insegurança está instalada em toda a zona do euro,
sobretudo no sul da Europa.
Trata-se de um confisco que vai assustar a todos os investidores e
especuladores nas suas relações com os bancos europeus já fragilizados pela
crise financeira e fiscal. Alguém pode esfregar as mãos e dizer: ótimo, que os
bancos de Chipre paguem pelos seus pecados, principalmente pelo pecado de lavar
dinheiro ilegal russo. Bem, tivemos algo similar com o Lehman Brothers: o
secretário do Tesouro norte-americano decidiu fazer jogo duro em nome do
liberalismo, e o resultado pagamos ainda hoje sob a forma de cinco anos de
virtual estagnação no mundo industrializado avançado e grande oscilação nos
países em desenvolvimento.
O fato é que os alemães, como árbitros da troika, estão conduzindo a política
europeia de repressão fiscal como um aspecto de seus preconceitos morais
calvinistas, e não como uma questão financeira. Fizeram assim na Grécia, na
Irlanda, em Portugal, na Espanha e agora na Itália. Em todos esses países estão
impondo políticas extremamente restritivas do ponto de vista fiscal impedindo
qualquer possibilidade de volta do crescimento. São cinco anos seguidos de
crise. A esses paises se somou a Inglaterra, que mesmo tendo moeda própria,
filiou-se ao clube da repressão fiscal, para entrar, também ela, na fila da
recessão permanente.
Com Chipre, porque parece suficientemente pequeno para não poder esboçar
qualquer reação, a troika a serviço de Merkel deu um passo avante, no sentido
de sinalizar a todos os depositantes em bancos na Europa que, na medida do
avanço da crise, poderão ser confiscados. É claro que todo mundo que tem
dinheiro, se tiver um mínimo de bom senso, retirará suas poupanças dos bancos
das economias mais vulneráveis para depositá-las em bancos alemães e, em último
caso, norte-americanos. Teremos muito provavelmente uma reedição em alguma
escala – não sei se muito grande, ou muito pequena, pois a incerteza está
instalada – do Lehman Brothers.
Não importa que hoje ou amanhã a decisão da troika seja revertida ou
transformada em algo mais palatável. O mal está feito. É que, num determinado
momento, as maiores autoridades financeiras e econômicas da Europa concordaram
com a medida antes impensável de tributar depósitos bancários. Não só
concordaram, mas a impuseram. Portanto, em situações similares no futuro, em
qualquer país cujos bancos estiverem em grande dificuldade, poderão voltar a
exigir a mesma medida. Se isso não for um expediente caviloso para liquidar com
os bancos do sul da Europa e alimentar os gatos gordos do norte é difícil ver
outro propósito.
Talvez no fim disso tudo haja um lado bom: a progressiva liquidação de bancos
de paraísos fiscais como Chipre na medida em que os aplicadores tomem
consciência dos riscos de colocarem seu dinheiro em instituições que não passam
de bases especulativas para lavagem de dinheiro. Logo depois do início da
crise, em 2008, França e Alemanha se alinharam no sentido de acabar com os
paraísos fiscais. Depois não se viu falar mais nisso, mesmo porque os norte-americanos
não se moveram. Com algumas quebras nos paraísos a partir de Chipre, talvez o
melhor aconteça.
*J. Carlos de Assis
é economista, professor de economia internacional da UEPB e autor, entre outros
livros, de “A Razão de Deus” (ed. Civilização Brasileira).
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