Carlos Pimenta –
Jornal i, opinião
Viveu-se acima das
suas possibilidades! O leitor? O seu amigo que lhe pediu emprestado? Não. Foi o
núcleo empreendedor e dinâmico da elite financeira mundial
1. Se já emprestou
dinheiro a um amigo sabe que ficou sem essa maquia, temporariamente se ele
pagar, definitivamente se tal não acontecer.
Libertemos a
imaginação. Para não ficar sem esse dinheiro imprime uns documentos que diz
serem uma promessa de pagamento aos seus possuidores de um determinado montante
da dívida que o seu amigo contraiu para consigo. Vende esses “documentos
financeiros” prometendo uma taxa de juro compensadora. Como suspeita que terá
dificuldades em vender, pede a um familiar que afiance aqueles “títulos”,
reembolsando os compradores, se alguma coisa correr mal. Ainda pode tomar uma
iniciativa adicional: contrata uma empresa, pagando-lhe, para que divulgue
“cientificamente” que aqueles títulos são bons. Resultado, vendeu tudo.
Gerou-se o milagre.
Emprestou ao seu amigo, que talvez nunca pague, mas já recebeu mais do que lhe
entregou. Até poderá continuar a emprestar, mesmo a quem sabe que não tem
possibilidades de pagar. Basta mostrar-lhes que o futuro é o melhor dos mundos.
E se surgir algum entrave burocrático há sempre algum dinheiro para
desenferrujar dificuldades.
2. Eu sei. Esta
história parece-lhe mal contada. Mesmo sendo empreendedor não o conseguiria
fazer.
Tem razão, mas
muitas instituições bancárias, seguradoras e empresas de rating o fizeram.
“Venderam latão por ouro”, criaram uma imensa teia de conflitos de interesse,
alimentaram a fraude e a corrupção. Viveram o sonho do capitalismo sem
regulação do Estado, onde o dinheiro gerava dinheiro, sem agricultura, sem
indústria e outras actividades carentes de trabalho produtivo. Anunciava-se um
futuro radioso sem crises, ao mesmo tempo que se agravavam as desigualdades
sociais.
Viveu-se acima das
suas possibilidades! O leitor? O seu amigo que lhe pediu emprestado? Não. Foi o
núcleo empreendedor e dinâmico da elite financeira mundial que viveu acima das
suas possibilidades, arrastando as sociedades para essa voragem galopante. Tão
acima das suas possibilidades que, quando a crise se lhes atravessou no
caminho, em 2007/8, havia uma dívida que não era pagável, de algumas dezenas de
vezes o produto mundial anual.
3. O eticamente
responsável seria fazer com que esse mundo da alta finança pagasse os desvarios
que cometeu. Custasse o que lhes custasse. Mas a realidade não é cor-de-rosa
porque quem tem o poder económico também está perto do poder político.
Longe da ética e da
dignidade humana o caminho percorrido foi outro. Meteram nas nossas cabeças que
nós é que éramos os culpados e precisávamos de pagar a dívida da fraude que os
outros cometeram. Depois, especularam sobre os produtos alimentares e
energéticos, responsabilizaram os cidadãos honestos pelo pagamento da dívida
dos Estados. E assim se conseguiu aumentar as desigualdades sociais já antes
brutais.
Como é que nós,
cidadãos arrastados para mais desemprego e precarização poderemos pagar tais
dívidas? Pagando mais impostos, não tendo direito a saúde e educação, passando
fome. Entregando-lhes as contas bancárias e outros seus haveres. Transformando
em barras de ouro exportadas as suas recordações dos ancestrais. Talvez amanhã
entregando-lhes a mobília ou algum órgão humano comercializável.
Pensando bem, há
uma outra “solução”: matar uma parte da população. Só tem um pequeno problema:
se quem trabalha nos sectores produtivos morre eles também morrem.
4. Histórias das
Arábias ou de África? De alguma temível ditadura?
Não, das democracias
e do local onde o leitor vive.
Escreve à
sexta-feira
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