Daniel Oliveira –
Expresso, opinião
Aviso: se está sem
tempo, guarde esta leitura para mais tarde. O texto é longo.
A direita que levou
a Islândia à maior crise financeira que todo o mundo alguma vez conheceu num
país, pelo menos nos últimos cem anos, venceu, para espanto de muitos, as
eleições. Há um ano, quando lá fui fazer uma reportagem para o EXPRESSO,
esperavam-se as eleições presidenciais, o julgamento do ex-primeiro-ministro e
muitos suspeitavam que seria este o resultado eleitoral nas legislativas
seguintes. Eu próprio fiquei convencido disso. O Presidente, um dos poucos
políticos respeitados na Islândia, foi reeleito, o ex-primeiro-ministro foi
absolvido e a direita voltou ao poder.
Porque tem tão
pesada derrota um governo que consegue conter, depois de uma hecatombe
financeira, o desemprego próximo dos 7%, consegue que a economia cresça acima
da média europeia, consegue que o FMI já se tenha ido embora e deixa, no
essencial, o poderoso Estado Social islandês intacto? Porque apesar de
tudo isto nos parecer extraordinário, não lhes parece a eles? Porque não
estavam preparados para viver esta crise e porque esperavam muito mais deste
governo, depois de, pela primeira vez na sua história recente, se terem
realmente mobilizando por uma mudança. As coisas não pioraram como podiam ter
piorado, é verdade. Não pioraram como aqui. Mas não mudaram no fundamental.
Porque vivem na Islândia e não aqui, os islandeses não terão a consciência do
que teria sido a crise se tivesse sido outro o caminho. Mas sabem o que poderia
ter sido a mudança se o governo tivesse acompanhado o sentimento social saído
da "revolução das frigideiras". Ou pode dar-se o caso das pessoas
estarem de tal forma frustradas com esta crise que não haja resposta política
possível para esta ansiedade e decepção.
"O anterior
governo caiu por causa de nós e isso deu-nos a sensação de ter poder. Reconheço
tudo: que podíamos estar muito pior, que há julgamentos, que, ao contrário de
outros, não usámos o dinheiro dos contribuintes para salvar bancos. Mas julgávamos
que isto ia muitíssimo mais longe." Foi isto que uma das pessoas com quem
falei me explicou para dizer porque era impopular este governo e porque não
conseguia animar tanta gente afundada em dívidas aos bancos. O escritor Einar
Már apontou o principal erro do governo de esquerda: "Quando os sindicatos
americanos exigiram mais a Roosevelt, ele respondeu: rapazes, eu não posso
fazer isso por vocês, mas vocês podem obrigar-me a fazê-lo. O nosso governo
disse o contrário: vão para casa, não nos perturbem."
Deixo aqui, na
íntegra (e sem os cortes que, por razões de falta de espaço, tive de fazer para
edição impressa), a reportagem que então publiquei na revista do EXPRESSO.
É jornalismo, sem qualquer opinião. Talvez a dimensão do texto não seja a ideal
para publicar online, mas pode ajudar a compreender as razões deste resultado
num país que, quando lá estive, não vivia em festa, mas em ressaca.
A minha estada na
Islândia, assim como este resultado eleitoral que, como podem ver na
reportagem, apesar de me entristecer não me surpreende muito, não muda a
opinião que formei sobre os caminhos acertados que a Islândia seguiu. Apenas
confirma que os processos políticos de ruptura não dependem exclusivamente de
soluções de poder. Precisam de ser acompanhados por um processo social e
têm de ser tão mobilizadores que contrariem a enorme desconfiança que as
pessoas sentem hoje em relação à política. Uma reflexão para a esquerda. Sendo
certa uma coisa: a direita pode ter ganho, mas a Islândia não deixa, depois de
ter feito algumas opções que nem os que agora regressam ao poder se atrevem a
contestar, de estar bem melhor do que Portugal, Irlanda ou Grécia. Segue a reportagem
de Maio de 2012.
A RESSACA ISLANDESA
A luz clara de um
dia soalheiro entra forte pelas janelas grandes do apartamento branco, bem no
centro de Reiquiavique. Uma pequena vivenda de madeira, como muitas numa
capital que mais parece uma vila europeia. É véspera de feriado. O dia que
marca, no antigo calendário, o começo do Verão. Lá fora, estão 4 graus. Uma
festa para os islandeses. Foi fácil juntar Thóra, o marido, os filhos, a irmã e
o cunhado. Para falar com o jornalista que queria saber da sua "loan
story" (história de empréstimos). Quase todos os islandeses têm uma. Quase
todas dramáticas. Num país onde 90% das pessoas têm casa própria, cerca de 40%
tem hoje dificuldades em pagar as dívidas bancárias. Thóra recebe-nos com a sua
enorme barriga e um grande sorriso. Duas coisas comuns na Islândia: a simpatia
e a gravidez. A Islândia tem uma das mais altas taxas de natalidade da Europa.
"No Inverno e sem dinheiro, o que mais há para fazer?", ri-se Thóra.
Falam todos ao
mesmo tempo, interrompem-se, riem-se, provocam-se, fazendo da sua tragédia um bom
motivo de piada. No meio da desgraça, Thóra e o seu marido Jón até podem rir.
Sim, ele era vendedor e perdeu o emprego. Sim, tiveram, como quase todos os
islandeses, problemas com o empréstimo da casa. Depois da crise, disparou. Mas
a regra decidida pelo governo em 2010 impôs que nenhuma dívida pode ser
superior a 110% do valor da casa. E é isso que estão a pagar com o salário de
professora de Thóra, enquanto Jón toma conta dos filhos. A irmã de Thóra,
Ragnhildur, que se mantém em silêncio, e o seu marido francês, Stanislas, é que
estão mesmo em dificuldades. Stanislas chegou à Islândia em 1978. Por causa de
uma mulher, claro. "Não foi seguramente pelo queijo e pelo vinho",
diz, perante o riso de todos, habituados às suas provocações altivas. Como Jón,
perdeu o emprego. É arquiteto paisagista. "Quem havia de querer jardins no
meio de uma crise?"
Em 2008, quando os
bancos faliram, percebeu que estava tudo acabado. Para piorar as coisas, uma
súbita doença levou-lhe a perna, o que atrasou a recuperação financeira
urgente. A mulher é cozinheira e é hoje quem sustenta, como Thóra, a casa. Tudo
se poderia compor se não fosse, claro, a dívida. Uma parte do empréstimo estava
em moeda estrangeira. Um negócio que, explicado pelos bancos aos seus clientes,
parecia infalível. Veio a crise e a coroa caiu para metade. Essa parte da
dívida triplicou. Com a decisão do Supremo Tribunal de Justiça, em 2010, que
decretou que esta indexação era ilegal, voltou a descer. O resto estava, como
era a regra para proteger as poupanças das tendências inflacionistas da
economia islandesa, indexado à inflação. A inflação disparou e passou dos
iniciais 18 milhões para 25,3. Passaram 10 anos de um empréstimo de 20 e devem
bem mais do que pediram. Estão em negociações e, como muitos islandeses, há
dois anos que não pagam nada. "Esperamos que o banco nos ajude a sair da
alhada em que nos meteu", diz, com otimismo, Stanislas. Se nada resultar,
resta declarar bancarrota, a terceira solução que o governo encontrou para os
devedores. Não podem pedir empréstimos nos dois anos seguintes. Mas ficam com
as suas contas limpas.
Que Deus abençoe a
Islândia
Tudo começou nos
anos 90, quando um grupo de jovens neoliberais do jornal "A
Locomotiva" tomou o poder do Partido da Independência (de centro-direita, no
poder de 1946 até esta crise) e, a partir dele, o governo. A conduzir o comboio
ia Davíd Oddsson, antigo presidente da Câmara de Reiquiavique. Chegou a
primeiro-ministro em 1991 e lá ficou durante 14 anos. A Islândia era, então, um
típico estado social escandinavo, apenas mais clientelar e corrupto que os seus
vizinhos, comandado pelo "polvo" (14 famílias poderosas). Os dois
principais bancos eram públicos e dirigidos por dois partidos: o Partido da
Independência e o Partido do Progresso (centrista). Assim como quase toda a
economia, política e sistema judicial. Saído do poder, Oddsson tomou conta do
banco central da Islândia, como seu governador. E, depois de um pequeno
intervalo, o seu protegido de sempre, o antigo ministro das Finanças Geir
Haarde, chega a primeiro-ministro, em 2006.
Num processo mais
alargado de liberalização da economia, os dois bancos públicos foram
privatizados e ficaram exclusivamente na mão de quadros dos dois partidos do
poder. Landsbanki para um, Kaupthing para outro, e um terceiro, o Glitnir, foi
criado por pequenas instituições públicas e privadas. Seriam estes três bancos,
com a proteção do poder político e do Banco Central, a levar a Islândia à
desgraça. Em 2001, um conselheiro de Davíd Oddsson escrevia um relatório com o
sugestivo título: "Como fazer da Islândia o país mais rico do mundo".
Estava encontrado o caminho: criar, no meio do Atlântico, um paraíso
financeiro. O trabalho começou com dois enormes projetos internacionais para
uma central eléctrica e uma fundição de alumínio. Era o começo da massiva
entrada de dinheiro que os novos bancos precisavam. A partir daí, iniciou-se a
roda viva da compra e venda de ações dos bancos, entre si, a transformação de
poupanças em ações e a caça desvairada ao empréstimo. Mas este mercado era
demasiado pequeno e o Landsbanki criou a Icesave, que funcionava na Internet e
permitia depósitos internacionais. E é assim que, em 2007, os três
insignificantes bancos já valem oito vezes o PIB da pequeníssima Islândia. Mais
do que isto, só na Suíça. Até que veio a crise imobiliária nos EUA e a bolha
rebentou.
A 8 de Outubro, o
primeiro-ministro informava a um País a transbordar de dinheiro e de dívidas
que os três bancos tinham falido. Ao mesmo tempo. No mesmo dia. "Deus
abençoe a Islândia", conclui Geir Haarde. Nesse mesmo mês não era Deus que
socorreria a ilha. Era o FMI. Em Novembro de 2008 a coroa caía de 70 por
euro para 190 por euro. A derrocada islandesa entrava diretamente para a lista
dos 11 maiores colapsos financeiros da história mundial.
À volta de um
peixe, num restaurante da Laugavegur, a mais animada rua da capital, que nos
fins de semana se enche de raparigas demasiado despidas para a temperatura
pouco convidativa e de rapazes demasiado alcoolizados para o sossego dos
turistas que enchem os hotéis, Gulla tenta dar o retrato da Islândia que
reencontrou em 2008, a
quatro meses da crise rebentar. Primeiro as apresentações. Gulla tem dupla
nacionalidade. Portuguesa e islandesa. Estudou em Coimbra e é tradutora. Agora
trabalha numa embaixada. Foi viver para Portugal depois de conhecer o seu
marido. Viveu 25 anos em Leiria. Metade de uma vida. Quando finalmente
regressou sentiu-se uma intrusa no meio de uma festa.
Conta que, quando
chegou, o banco lhe ofereceu, sem que ela o tivesse pedido, um plafom de
crédito de 10 mil euros. Três vezes superior ao seu salário na altura. Isto
para além do que já lhe ofereciam na sua conta à ordem. "As pessoas iam de
férias para o estrangeiro no Inverno e no Verão, sem problemas. Os refeitórios
dos bancos tinham chefes gourmet." O melhor Natal para o comércio local,
em muitos anos, foi depois de rebentar a crise. "As pessoas iam a Londres
fazer as compras de Natal", conta Gulla. Nesse ano ficaram em
Reiquiavique. Stanislas já explicara como se passavam as coisas: "Podíamos
ir de manhã ao banco e voltar de lá com 10 milhões de coroas. Era
terrível." Jón interrompe: "Terrível? Era bom. Agora é que percebemos
que é terrível." Em 2007, o rendimento médio da Islândia era o quinto
maior do Mundo: 160% do dos Estados Unidos. Um estudo internacional indicava,
em 2006, que os islandeses eram "o povo mais feliz do mundo". Mas não
nos iludamos com as aparências. Nos meados dos anos 90 a igualdade na distribuição
dos rendimentos disponíveis era semelhante à da Noruega. Em 2007 estava próxima
da dos Estados Unidos, o país mais desigual do mundo desenvolvido. Num país
orgulhoso da sua cultura igualitária, este crescimento desigual, seguido de
tamanho trambolhão, abalou os alicerces de toda a sociedade. Gulla viu, diante
dos seus olhos, um povo a mudar do dia para a noite: "Nas primeiras
semanas não havia ninguém na rua e nas lojas. Era como se fosse pecado
divertirem-se, comprarem, viajarem."
A revolução das
frigideiras
Depois do choque
veio a revolta. Começou logo em Outubro, com pequenas manifestações em frente
ao Parlamento. Thóra conta, com um brilho nos olhos, como, no início, eram umas
dezenas: "Faziam pouco de nós". Mas lá continuaram a ir, no gélido e
escuro inverno islandês , todos os sábados. Os discursos, que passavam na
televisão, chamavam cada vez mais gente. Na primeira reunião do Parlamento,
depois das férias de Natal, a manifestação atingiu novas proporções. Milhares
de pessoas. Invadiram o edifício, houve confrontos com a polícia, atiraram ovos
a Geir Haarde, o primeiro-ministro em exercício. Tudo absolutamente impensável
na recatada e ordeira Islândia. "Em trinta anos nunca tinha visto tal
coisa", diz Stanislas. Três meses depois do começo da "revolução das
frigideiras" o governo caiu. Novas eleições dariam a vitória ao primeiro
governo, desde 1946, sem o Partido da Independência. Os social-democratas,
dirigidos por Jóhanna Sigurdardóttir, ativista lésbica de 70 anos, aliavam-se à
esquerda-verde. Mas os islandeses queriam mais do que mudar de governo. E
tiveram mais.
A ideia de rever a
Constituição começou nas redes sociais. E a 26 de Outubro são eleitos, entre
500 candidatos anónimos que fizeram campanha nas redes sociais, 25 membros de
um Conselho Constitucional. Para presidir este original instituição de democracia
direta é escolhida a professora de ética e filosofia, Salvor Nordal. Ficara
conhecida pela sua ativa participação na comissão, nomeada pelo Parlamento, a
meio da "revolução", para investigar os bancos. E foi o que descobriu
sobre o comportamento dos banqueiros, que punha em causa todas as suas
convicções, que a levou uma mulher sem grande passado político a ter uma
participação mais ativa: "O comportamento irresponsável dos bancos foi
menos inocente e mais institucionalizado do que eu esperaria, com uma clara
intensão de transferir os riscos que corriam para terceiros." Quanto ao
anterior governo, é menos severa: "Todas as pessoas achavam extraordinário
haver tanto dinheiro. As pessoas estavam bêbedas. O problema é que, no dia
seguinte à festa, temos duas possibilidades: ou decidimos que paramos de beber
ou achamos que precisamos de uma bebida para a ressaca passar. E às vezes tenho
a sensação que anda muita a gente à procura de um bar aberto."
Em Julho de 2011 a proposta do conselho
constitucional é entregue ao Parlamento. Terá de ser aprovada pelos deputados
antes das próximas eleições, daqui a um ano. E de novo pelo parlamento que se
lhe seguir. Segundo a proposta, 10% da população pode impor um referendo, a
impopular candidatura da Islândia à adesão à União Europeia (apenas 17% a
defendem) tem de ser referendada e os recursos naturais que ainda sejam
públicos não podem ser privatizados.
Feito o caminho
pela estrada que atravessa a desoladora e repetitiva paisagem em volta da
cidade, é difícil perceber que chegámos a um edifício oficial. Três pequenas
casas brancas. Nem um único polícia. Toca-se à campainha e um funcionário, de
calças de ganga, abre a porta. Lá dentro, seria a casa discreta de uma família
de classe média endinheirada. Entramos na pequena biblioteca. E lá chega um
velho alto e afável. Só quando começa a entrevista percebemos que não estamos
perante um simpático avozinho nórdico. E percebe-se porque é que, apesar do
terramoto, este é um dos poucos homens em que os islandeses ainda têm alguma
confiança. Foi dos poucos que percebeu o que significavam as inéditas
manifestações de 2008 e 2009.
Depois da
bancarrota, dois dos três gigantes falidos conseguiram, apesar de tudo, pagar
aos seus depositantes estrangeiros. O problema mais complicado de resolver
estava nas mãos do Landsbanki e da sua criação no mundo virtual: o Icesave. E
mesmo este banco começou, recentemente, a pagar o que devia. Ao contrário do
que geralmente se julga, a questão nunca foi se as dívidas eram pagas. Mas
quando e por quem. Só que os governos do Reino Unido e da Holanda não
esperaram. "Apressaram-se, pagando aos depositantes dos cofres dos seus
Estados, na convicção que poderiam enviar a conta para os contribuintes
islandeses", explica-nos o Presidente da Islândia. Quando o novo governo
se preparava para, como todos os restantes, pagar a conta, Ólafur Grímsson fez
o impensável: marcou um referendo. E nunca um político pareceu tão isolado como
então: "Todos os governos europeus, todas as instituições financeiras e
quase todas as forças com poder no meu próprio país, incluindo o governo e a
maioria do Parlamento, foram contra a minha decisão". Os avisos vieram:
"Ficaríamos isolados durante décadas. Seríamos a Cuba do norte. Nunca mais
ninguém quereria fazer negócios connosco. Nada disso aconteceu. Três anos
depois da crise estamos a caminho da recuperação." Apesar dos dramas de
milhares de famílias endividadas, o desemprego anda próximo dos 7%, alto para a
Islândia mas muito baixo para a generalidade dos países em crise. O crescimento
do ano passado foi de 3%, o deste ano andará pelos 2,5%. O FMI já se foi
embora, com as contas fechadas e mais nada para fazer.
Grímsson estava
determinado: "Não vamos ter um sistema onde os bancos podem funcionar como
querem. Se tiverem sucesso, os banqueiros recebem enormes bónus e os seus
acionistas recebem o lucro, mas, se falharem, a conta será entregue aos
contribuintes. Porque serão os bancos tão sagrados para lhes darmos mais
garantias do Estado do que a qualquer outra empresa?"
Os islandeses foram
votar e nem o establishment político teve coragem de enfrentar a
fúria popular. O resultado foi esmagador: 92% votou "não". Nascia
assim o perigoso exemplo islandês. Como reação, o Reino Unido aplicou uma lei
antiterrorista para acabar com todas as transações com a Islândia, pondo-a numa
lista ao lado dos talibã e da Al-Qaida.
Cidades fantasmas
Em Hafnafjördur, a
sul de Reiquiavique, há cidades sem cidade. Ruas, rotundas, cadeeiros. Tudo o
que o espaço público precisa. Mas sem prédios nem casas. Apenas o mesmo cenário
lunar de sempre. Até que começam os prédios. Quase todos vazios. Uma cidade
fantasma que nos conta a tragédia islandesa. O dinheiro era barato e as
construtoras nasciam como cogumelos. As autarquias planearam um crescimento
urbano que nem o mais empenhado labor demográfico islandês poderia garantir.
Fizeram-se as estradas e, em muitos casos, fizeram-se os prédios. Isto foi em
2007. Em 2008 rebentou a crise. E aquilo ficou ali, congelado, a lembrar a
loucura de outros tempos.
Mas na casa de
Hugrún e do seu marido Gudfinnur a densidade populacional é maior do que eles
desejariam. Três crianças correm pela casa, moderna mas acanhada. Há apenas
dois quartos. Um para eles e para os dois mais pequenos. Outro para o mais
velho. A crise marcou definitivamente o seu futuro. Em 2005 compraram um
apartamento. Pediram um empréstimo. Metade em moeda estrangeira. Dos 13 milhões
que receberam ficaram a dever mais de 21 milhões. Tiveram sorte: conseguiram
vender o apartamento apenas um pouco abaixo do que a dívida. Ainda havia a do
carro e outros empréstimos pessoais. "Saía tão barato", explica
Hugrún, "eles telefonavam a toda a hora a oferecer dinheiro".
Com grande parte
das dívidas pagas, não sobra dinheiro. Ela não tem emprego, são três crianças e
uma casa pequena. Comprar outro apartamento? Só pedindo um empréstimo. Nunca
mais. E para alugar um maior não há dinheiro. Apesar de aos bancos sobrarem
casas (já ficaram com cerca de três mil), não arrendam mais barato nem vendem,
para não fazerem cair os preços e perderem assim o valor do seu património.
Como a procura aumentou, arrendar é agora ainda mais caro. Solução? Vão, como
muitos, para a Noruega.
Turismo, peixe e
Internet
Volta-se ao centro
de Reiquiavique e o ambiente dá algumas razões para otimismo. Partem, a todas
as horas e de todos os hotéis, autocarros cheios de turistas para as muitas
atrações naturais da Islândia. Com a queda da coroa os islandeses perderam e
ganham. Perderam nos seus empréstimos, nos seus salários e na compra de
produtos importados. Ganharam nas exportações e no turismo. Um fenómeno de
Verão passou a ser uma das principais fontes de receita todo o ano.
Um dos principais
destinos é a Lagoa Azul. Uma piscina natural com temperaturas acima dos 30
graus. É um dos principais cartões postais da Islândia. Quando se sai da água é
quase impossível aguentar muito tempo sem um abrigo: o vento gélido empurra-nos
para a água quente de novo. Mas um pequeno chinês resiste, tremendo num canto,
para tentar acender um cigarro. Li, um comerciante de Xangai, representa o
jackpot de oportunidades que a crise trouxe à Islândia. Não é apenas turista.
Veio em negócios. Habituado a exportar, é a importação que o traz à ilha. Com a
queda da coroa e um yuan forte o negócio do peixe promete ser rentável. "Eles
têm muito peixe, nós temos muitas bocas".
Mas nem só de
comida vive o mundo. E os islandeses descobriram a segunda principal
necessidade humana: o divertimento. Quando a CCP nasceu, em 1997, eram apenas
três jovens ambiciosos. Hoje são 590 funcionários. Metade está em Reiquiavique.
Os restantes em Atalanta, Xangai e Newcastle. Metade dos funcionários da sede
são estrangeiros. Os outros islandeses. Tudo roda à volta de um jogo.
Espalhados por todo o mundo uma horda de fanáticos de "Eve Online" garante
o crescimento da empresa. 300 mil jogadores registados. É quase a população da
Islândia. O suficiente para serem hoje a maior empresa instalada no porto de
Reiquiavique.
A sede da CCP
corresponde a todos os clichés das empresas de IT. Quase todos jovens. Gente de
todo o mundo. Um ambiente descontraído. Mesas de bilhar e de pingue-pongue.
Para além do refeitório, um médico, um massagista e um cabeleiro vão lá todas
as semanas. Não se recebe maravilhosamente. Mas paga-se em euros, o que é uma
enorme vantagem na galopante inflação que a Islândia tem conhecido nos últimos
três anos. Como as receitas são em divisa estrangeira e o mercado não está na
Islândia foram pouco afectados pela crise. E algumas coisas até melhoraram.
"Depois da crise muita gente perdeu o emprego e decidiu dedicar-se ao que
gosta, por isso passámos a ter aqui mais mão de obra disponível", explica
Eldar Astthorsson, o relações públicas que veio da indústria musical. O país
tem, segundo Eldar, tudo o que esta indústria precisa para crescer: um excelente
sistema de ensino e um ambiente criativo fervilhante. "A indústria de IT
não cresce num país onde não haja muita atividade cultural tradicional. É a ela
que vamos buscar os músicos, os guionistas, os estilistas, os desenhadores e os
realizadores que fazem os nossos jogos. Os computadores não chegam para
garantir a indústria de entretenimento."
Está então resumida
a saída para Islândia: peixe, turistas e Internet. Têm tudo o que é preciso.
Peixe em abundância. Energia e água de graça, garantidas pela natureza. Beleza
natural, com exotismo quanto baste. Nada disso, independentemente da crise, se
vai embora. A coroa barata e uma população extraordinariamente educada fazem o
resto.
A enorme decepção
As vivendas com
jardins relvados fazem lembrar os filmes de Hollywood sobre a pacata vida
suburbana. Elisabet apanha algum lixo perdido em frente à sua casa. Sveinn está
lá dentro. Recebem-me como sempre: um sorriso aberto e um pedido que me
descalce à porta. O porteiro é um pequeno duende de louça. No jardim, um velho
barco espera arranjo. Com 75 anos, Sveinn pode estar reformado, mas não se
esquece da sua profissão de quase sempre: carpinteiro de embarcações. Elisabet,
com 73, era professora de culinária. Uma arte que, definitivamente, não está no
ADN dos islandeses. Basta provar o tubarão podre com cheiro a amoníaco que é o
pitéu nacional para o perceber. Sentamo-nos à mesa. Elisabet faz as despesas da
casa. É ela que tem algum passado de empenhamento político. E, quando foi a
revolução, voltou à carga. Participou nos inúmeros debates públicos. Propôs
várias emendas à constituição. Uma passou: a linguagem gestual será uma das
línguas oficiais na Islândia. Só perde o sorriso quando falamos dos políticos nacionais.
Levanta-se num esbracejar indignado. Sveinn tem gestos mais curtos. Sobretudo
quando se fala de Davíd Oddsson, antigo governador do banco central. Com o dedo
indicador traça um risco no pescoço. Guilhotina, portanto. Quando toca a falar
do futuro da Islândia, não hesita: "Faremos o mesmo de sempre: vamos à
pesca. Os portugueses vão continuar a comer bacalhau, não vão?"
"É verdade que
muita gente gastou dinheiro que não tinha", diz Sveinn, "mas a
maioria foi enganada". Porquê? "Era a mensagem que os bancos e o
governo passavam para toda a sociedade: Gastem!" Nem a mudança de governo
reconciliou Elisabet com os políticos: "Esperava melhor. Prometeram muito.
Não fizeram nada. As estatísticas não contam. Se toda a gente levantar os seus
depósitos vamos para a bancarrota." Da primeira-ministra, acha que
"baixou as calças". "Começou bem, mas agora é como se tivesse
uma pistola apontada à cabeça". À sua ira sobrevive apenas o Presidente:
"não teve medo de enfrentar a Icesave, fala bem, é educado e conhece os
problemas". A quase unânime impopularidade do atual governo devolverá o
poder ao Partido da Independência? Não acreditam.
O parlamento,
perante a ira pública, reavivou um velho tribunal para governantes (Landsdómur)
para julgar as responsabilidades políticas desta crise. O ex-primeiro-ministro
Geir Haarde sentou-se no banco dos réus. E ouviu, no dia 23 de Abril, o
veredicto: inocente de três das quatro acusações. Culpado por não ter mantido
os seis ministros adequadamente informados. Nada que espante os islandeses.
Quase todos acham que ele não passava de um bode expiatório e que muito mais
gente deveria ser julgada. E será. Um outro processo, que avança pelas mãos de
uma Procuradoria-Especial para os Crimes da Banca, irá julgar responsáveis por
instituições financeiras. Mas há muita impaciência. Thóra explica porquê:
"Sim, fomos os únicos na Europa a processar alguém. Estamos contentes com
isso. Mas apenas um foi condenado". Reconhece a dificuldade da coisa:
"Somos muito pequenos. Toda a gente é amiga de toda a gente. Claro que
isto tinha de ser corrupto." Para Elisabet, os julgamentos, assim como o
referendo, ajudaram a acalmar as pessoas. Mas servem de pouco. "Ninguém
irá para a prisão", diz ela. Sveinn discorda: "alguma vez acontecerá".
E enumera, com os dedos, os que quer ver atrás das grades. Os dedos das duas
mãos esgotam-se. Quase tudo banqueiros. Reconhecem os dois, no entanto, que os
islandeses foram os únicos a ir tão longe na responsabilização dos culpados.
"Mas podemos espremer mais os poderosos", diz ele.
Stanislav resume o
que quase todos pensam: "O governo de Geir Haarde teve todos os sinais.
Tinha toda a informação. Não fez nada. O novo governo teve boas ideias no
início. Agora não faz nada". Ou seja: não sobra, da velha política
dominada por quatro paridos, quase nada que dê esperança aos islandeses. E é
isto que os parece deixar à deriva. Gulla é menos condescende com os seus
concidadãos: "Esperavam que, com um governo de esquerda, não houvesse
cortes e agora culpam todos os políticos, todos os que tenham experiência. É
popular quem não é político. Estavam habituadas ao bom demais e agora é mais
fácil culpar os governos." E os não políticos, ou quem nunca teve
responsabilidades governativas, parecem ser os únicos a quem as pessoas dão ouvidos.
O comediante, a
estrela da TV e a economista
Jon Gnarr
recebe-nos no seu gabinete, com uma enorme janela para o Lago de Reiquiavique.
De fato, colete e um corte de cabelo um pouco excêntrico, não se diria um
político comum. Porque não é. Gnarr foi um dos primeiros efeitos colaterais da
crise, que se abateu sobre todos os políticos tradicionais. O "Melhor
Partido", que não tem nem militantes, nem direção, nem programa, venceu as
eleições autárquicas de Reiquiavique, apesar de prometer coisas tão prosaicas
como toalhas gratuitas nas piscinas e um urso polar no Zoo. Antes de ser
presidente de Câmara, Gnarr era o mais popular comediante da Islândia. E,
fazendo rir, desalojou o todo poderoso Partido da Independência da Câmara
Municipal da capital.
Diz que não é político.
Como pode um presidente da câmara da capital não ser político? "Se eu for
viver para Bélgica quando é que me torno um belga? Só quando as pessoas
começarem a dizer: ah, agora já começas a comportar-te como um belga."
Aceita o seu papel: "fui uma opção com graça, inofensiva e pacífica aos
políticos previsíveis." E explica a inexistência de futuro na sua nova
carreira: "Sou como o foguete que lança a nave. Provoca muito barulho e
luz, mas explode quando deixa de ser necessário. Só que a nave continua o seu
caminho."
Gnarr está longe de
ser a única excentricidade da nova política islandesa. O Presidente, graças ao
seu papel no referendo, é um dos poucos políticos populares no ativo. Mas nem
ele escapa ao terramoto. Numa eleição que costuma ser um "pro forma",
arrisca-se a perder nas urnas. Uma sondagem indica que está empatado com a
candidata sensação do momento: Thóra Arnórsdóttir. É jornalista e apresentadora
de televisão. O que pensa Thóra sobre a situação política, social e económica
da Islândia? Ninguém sabe. Melhor: todos sabem. "Não pensa nada". Mas
é simpática e o Presidente está lá há 16 anos. Nos corredores da política
sabe-se que a candidatura de Thóra é vista com bons olhos pelo governo. Não
fará ondas.
Num país que foi
durante muitas décadas governado pelas mesmas pessoas, onde poucas famílias
dominaram as empresas, os media, onde o nepotismo e a corrupção o distingue dos
restantes nórdicos, a crise abalou todas as estabilidades políticas. Nasceram
novos partidos. Os velhos, que continuam ao leme, ficaram mais fracos. Surgiram
novos rostos que a política desconhecia e que desconheciam a política. Gnarr é
a parte burlesca disto. Thóra a parte desconcertante. Mas surgem novas
estrelas, um pouco mais consistentes. Lilja Mósesdóttir é hoje uma das
deputadas mais populares. Provavelmente a única. Saiu da Esquerda-Verde em
confronto com as grandes escolhas do novo governo, dirigido pela Aliança
Social-Democrata e pelos ecologistas. Está a formar o Solidariedade, mais
radical. Nas sondagens, já teve 20%. Agora tem 9%. Mas, na autêntica montanha
russa que é a política islandesa, e quando metade do eleitorado não sabe em
quem vai votar ou se vai votar, pode bem voltar a subir. Ou a descer tanto que,
como diz a sua líder, nem vai a votos. Uma coisa é certa: na Islândia, todos
conhecem a professora de economia que, caloira no parlamento, faz as despesas
da oposição de esquerda. E mesmo os que acham demasiado radical dizem, sem
hesitar, que a respeitam. Até porque foi, como académica, das poucas a avisar para
a caminhada que a Islândia fazia para o abismo.
No minúsculo
gabinete que o Parlamento reserva para os deputados independentes, Lilja
explica-nos a sua ruptura com a primeira maioria de esquerda a governar a
Islândia: "É verdade que as coisas podiam estar bem piores, mas são
pessoas normais é que estão a carregar o fardo da crise. As caras no sistema
bancário são mais ou menos as mesmas." E sobre a aparente boa situação
económica, põe água na fervura: "para conseguirmos pagar as nossas dívidas
temos de ter um crescimento de 4% e não estamos a conseguir." Thórólfur
Matthíasson, adversário de Lilja no debate económico, responsabiliza a oposição
pela impopularidade do governo: "O partido que construiu as fundações para
este colapso e que tem feito um discurso populista, em que critica os acordos
que antes defendeu, está com 35% nas sondagens. Podemos voltar para o mesmo de
sempre."
A Islândia foi dos
poucos países a recusar-se a pagar, com o dinheiro dos contribuintes, a dívida
de um banco. Os empréstimos, graças a decisões da justiça e do governo,
acabaram por descer. Prepara-se uma revisão constitucional. Um
ex-primeiro-ministro foi julgado. Vários responsáveis pela crise financeira
aguardam julgamento. O desemprego está abaixo da maioria dos países atingidos
pela crise. Tem um crescimento acima dos restantes países europeus. O FMI já se
foi embora e o Estado Social foi, no essencial, poupado. Três anos depois da
Islândia ter vivido, tendo em conta a sua dimensão, a maior crise financeira de
que há memória no Mundo Ocidental. E, apesar de tudo isto, os islandeses olham
com espanto para quem os vê como exemplo. E estão frustrados e zangados com o
primeiro governo de esquerda. Difícil de perceber? Thóra tenta explicar:
"O anterior governo caiu por causa de nós e isso deu-nos a sensação de ter
poder. Reconheço tudo: que podíamos estar muito pior, que há julgamentos, que,
ao contrário de outros, não usámos o dinheiro dos contribuintes para salvar
bancos. Mas julgávamos que isto ia muitíssimo mais longe." Sim, talvez
sejamos mimados." E pela primeira vez deixa-se abater. "Não, não se
trata de mimo", responde Lilja, no seu pequeno gabinete parlamentar:
"A esperança foi muita. E o governo está a fazer o mesmo que o Partido da
Independência faria: até querem privatizar energia."
Talvez o melhor
seja ir procurar um olhar mais distanciado. Para lá das desavenças políticas do
momento e do desespero de quem esperava muito mais.
Descemos a pequena
colina atravessada pela principal artéria da cidade. Uma rua estreita, cheia de
pequenos edifícios com as melhores lojas da cidade. Onde desfilam luxuosos
jeeps comprados no tempo da fartura. Ao meu lado, Einar Már Guomundsson faz de
cicerone. Aponta uns pequenos becos. Mesmo no começo da Bankastraeti (Rua dos
Bancos), onde já não existe banco nenhum. É o número zero, diz ele. E foi
aquilo que deu o título ao seu último livro: "Bankastraeti Núll" (Rua
dos Bancos, número zero). Uma ácida provocação ao papel das instituições
financeiras na crise. Quem é de Reiquiavique percebe. A expressão tem uma
tradução no calão local: urinar.
Einar Már é o mais
importante escritor islandês vivo. Este ano recebeu o Prémio da Academia Sueca,
conhecido como o "Pequeno Nobel". Foi uma voz fundamental nas
revoltas de 2008. Sentamo-nos num dos principais cafés da cidade. Pede o de
sempre: um termo de café que vai esvaziando ao longo da conversa. As
circunstâncias podem tê-lo transformado num ativista, mas mantém o otimismo e é
muito menos severo com o atual governo, "que tem contra qualquer mudança
todos os grandes poderes". O seu principal erro? "Quando os
sindicatos americanos exigiram mais a Roosevelt, ele respondeu: rapazes, eu não
posso fazer isso por vocês, mas vocês podem obrigar-me a fazê-lo. O nosso
governo disse o contrário: vão para casa, não nos perturbem." Mas está
longe de desvalorizar o que se conquistou: "Fomos uma espécie de
laboratório, onde tudo foi muito nítido. E fomos capazes de lutar e mostrar
alguma solidariedade. Não achámos o paraíso e a verdade absoluta. Mas pelo
menos refrescámos qualquer coisa que estava perdida."
Sem comentários:
Enviar um comentário