Luís M. Faria –
Expresso, opinião
Uma mulher é
torturada pela polícia para confessar um crime. Confessa, e é condenada
(quão fiável a confissão, nessas circunstâncias?), mas apresenta queixa da
tortura.
Os polícias vão a
tribunal. Em mais do que um processo, o tribunal considera provada a
tortura. Mas diz que a mulher mentiu nalguns pormenores. Tinha ou não um
saco enfiado na cabeça quando lhe bateram com um tubo de cartão? O inspector
responsável encontrava-se na sala ou no corredor adjacente? O médico na altura
viu-lhe só a cara ou o corpo todo? Em alturas diferentes, a mulher
apresentou versões divergentes sobre estes aspectos.
Por causa das
divergências, quiçá mais importantes que o facto de
alguém sofrer tortura numas instalações da polícia portuguesa, a
mulher é condenada a sete meses de prisão efectiva. O tribunal reconhece que
ela foi torturada, mas aplica-lhe a pena, por falsas declarações. E recusa
expressamente substitui-la por multa, dado que, conforme refere a sentença, a
arguida tem antecedentes, cometeu um crime gravíssimo (um infanticídio), vai no
oitavo ano de cumprimento de uma pena, e nem isso "foi bastante
para a afastar do percurso delitivo", como diz a sentença, "continuando
a não demonstrar qualquer respeito pelas regras comunitárias e uma
personalidade avessa ao dever-ser jurídico".
Os torturadores,
esses (quer dizer, os que foram condenados, pois alguns nem identificados
foram), safaram-se com pena suspensa. E a opinião popular concorda,
pois não há perdão para o que a mulher fez. Um critério jurídico
irrepreensível, obviamente.
Tudo isto poderá
ser justificado, ou pelo menos justificável, do ponto de vista formal. Mas que
conclusão tirará muita gente sobre a democracia em que vive, ao constatar
que num caso de tortura policial, mais processo menos processo, a única pessoa
que vai efectivamente cumprir pena de prisão é a pessoa que foi torturada?
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