sábado, 6 de abril de 2013

TORTURADA PELA POLÍCIA, QUEM VAI CUMPRIR PENA É ELA (uma história portuguesa)




Luís M. Faria – Expresso, opinião

Uma mulher é torturada pela polícia para confessar um crime. Confessa, e é condenada (quão fiável a confissão, nessas circunstâncias?), mas apresenta queixa da tortura.

Os polícias vão a tribunal. Em mais do que um processo, o tribunal considera provada a tortura. Mas diz que a mulher mentiu nalguns pormenores. Tinha ou não um saco enfiado na cabeça quando lhe bateram com um tubo de cartão? O inspector responsável encontrava-se na sala ou no corredor adjacente? O médico na altura viu-lhe só a cara ou o corpo todo? Em alturas diferentes, a mulher apresentou versões divergentes sobre estes aspectos.

Por causa das divergências, quiçá mais importantes que o facto de alguém sofrer tortura numas instalações da polícia portuguesa, a mulher é condenada a sete meses de prisão efectiva. O tribunal reconhece que ela foi torturada, mas aplica-lhe a pena, por falsas declarações. E recusa expressamente substitui-la por multa, dado que, conforme refere a sentença, a arguida tem antecedentes, cometeu um crime gravíssimo (um infanticídio), vai no oitavo ano de cumprimento de uma pena, e nem isso "foi bastante para a afastar do percurso delitivo", como diz a sentença, "continuando a não demonstrar qualquer respeito pelas regras comunitárias e uma personalidade avessa ao dever-ser jurídico".

Os torturadores, esses (quer dizer, os que foram condenados, pois alguns nem identificados foram), safaram-se com pena suspensa. E a opinião popular concorda, pois não há perdão para o que a mulher fez. Um critério jurídico irrepreensível, obviamente.

Tudo isto poderá ser justificado, ou pelo menos justificável, do ponto de vista formal. Mas que conclusão tirará muita gente sobre a democracia em que vive, ao constatar que num caso de tortura policial, mais processo menos processo, a única pessoa que vai efectivamente cumprir pena de prisão é a pessoa que foi torturada?  

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