terça-feira, 14 de maio de 2013

GAZA, AS PEDRAS E A SINFONIA DAS QUATRO ESTAÇÕES




Rui Peralta, Luanda

I - Em Setembro do ano passado, o primeiro-ministro do governo do Hamas, em Gaza, repetiu um pedido, efectuado vezes sem conta, ao primeiro-ministro egípcio, para que o seu governo considerasse a possibilidade de estabelecer uma zona de comércio livre entre Gaza e o Egipto. Desta forma o Egipto poderia apoiar a destroçada economia da Faixa de Gaza e acabar-se de vez com o contrabando efectuado através das centenas de tuneis que atravessam o subsolo na zona fronteiriça entre Gaza e o Egipto.

Os palestinianos de Gaza estão completamente dependentes do contrabando efectuado através dos tuneis para poderem sobreviver. Com esta proposta de criação de uma zona de comércio livre, Gaza resolveria o seu problema fundamental – o abastecimento de bens alimentares, remédios e outros produtos de consumo geral – deixando de estar dependente das redes de contrabando e podendo normalizar dessa forma as suas relações comerciais, para além de atenuar, parcialmente, os assoladores números do desemprego, quase generalizado.  

O governo egípcio prometeu estudar o assunto, indicando que era demasiado cedo para dar uma resposta. Mas esta é uma proposta repetida ao Egipto em diversas ocasiões e á qual os egípcios nunca responderam, ou utilizaram para qualquer tipo de plataforma de discussão sobre o relacionamento entre Gaza e o Egipto. Desde o assassinato de 16 guardas fronteiriços egípcios, realizado por desconhecidos, que o governo do Egipto mandou destruir os tuneis de Gaza.

Segundo o economista palestiniano Maher al-Tabaa, residente em Gaza, cerca de 30% dos produtos encontrados em Gaza chegam pelos tuneis, embora outras fontes refiram que o contrabando abastece 80% dos produtos encontrados no mercado. Seja como for, sem os tuneis ou uma alternativa a longo prazo, Gaza cairá numa crise sem precedentes e os níveis de pobreza, da miséria e da fome, serão os únicos a crescer. 

II - O posicionamento egípcio em relação a Gaza, contribuindo para o bloqueio da faixa, foi adoptada por Hosni Mubarak. A Primavera egípcia e a ascensão ao poder da Irmandade Muçulmana (IM), não alteraram esta posição do Egipto em relação a Gaza.

No fundo da questão está o tratado de Camp David, assinado entre o Egipto e Israel em 1978 / 1979, que implica que o Egipto seja um activo político permanente para os USA e Israel, a troco de uma quantia acordada entre as partes e paga ao Egipto na forma de ajuda militar. Ao manter os acordos de Camp David – ou ao não revê-los - a IM, mantem a posição subalterna do Cairo em relação a Washington e Telavive.

Quando em 2006, devido á vitória eleitoral do Hamas, Israel impôs o bloqueio a Gaza, pouco importava para os sionistas que o Egipto e Gaza fossem fronteiriços. Israel estava perfeitamente seguro da posição egípcia e o bloqueio foi assumido por Mubarak e executado por Omar Suleiman, o falecido chefe dos serviços de inteligência do Egipto.

Os ventos primaveris, que de início transportaram algumas ilusões sobre uma eventual revisão dos acordos de Camp David, rapidamente se dissiparam e quando ocorreram os assassinatos dos soldados egípcios no Sinai, foram de imediato usados como pretexto para aumentar ainda mais as medidas de bloqueio por parte das autoridades egípcias. Aliás a forma como os militares e os serviços de inteligência egípcios, acusaram de imediato o Hamas, em perfeita consonância cronológica e semântica com Telavive e com eco nas paredes da Casa Branca, em Washington, apenas revela que neste ponto o actual governo egípcio terá uma maior participação nos objectivos do bloqueio.

III - O Egipto administrou a faixa de Gaza entre 1948 e 1967. Esse período de administração coloca-o em vantagem na resolução do problema de Gaza, até porque os egípcios são vistos pelos palestinianos de Gaza como a única esperança politica e a única solução que os livrará da catastrófica situação económica em que o bloqueio mergulhou a faixa de Gaza.  

Sugerir que o Hamas orquestrou o assassinato dos soldados egípcios, é um absurdo, a não ser que obedeça a uma acção concertada entre Telavive, Washington e alguns meios dos serviços de inteligência egípcios e dos militares (a começar pelo actual ministro da Defesa, o general Abdel Fattah al-Sissi), para pressionarem o presidente Mursi e envolverem de forma directa a IM na resolução política do problema de Gaza.

O presidente Mursi e a IM abordam todas as questões relativas á Palestina com muito cuidado . Os proprietários da indústria mediática egípcia efectuam fortes campanhas contra os palestinianos de Gaza e o Hamas, acusando-os do tráfico de armas e drogas no Sinai para alem de controlarem o negócio das viaturas roubadas. Cada vez que a IM e o presidente Mursi tentam dar algum passo no sentido de uma eventual menorização do bloqueio, as campanhas surgem com mais impacto e vão ao ponto de associar a IM a estas actividades ilícitas, numa eventual parceria com o Hamas.

Desta forma a direcção e o sentido são apontados a Mursi e ao IM, estabelecendo uma linha de actuação, que demarca o que Washington e Telavive pretendem. A opinião pública egípcia é bombardeada com notícias assustadoras sobre Gaza e os palestinianos de Gaza são apresentados á opinião pública egípcia como perigosos traficantes de drogas e contrabandistas de armas e carros roubados. Sobre a fome e a miséria em Gaza nem uma palavra, ou pelo menos sobre o bloqueio.

Demasiado tímido e enfraquecido para desafiar as forças em jogo no Egipto, Mursi e a IM seguem uma política de vacilação em relação a Gaza. Quando os soldados egípcios foram assassinados, o Ministro da Defesa informou o presidente que os USA estavam dispostos a facilitar um satélite para localizar os tuneis de Gaza. Mursi deve ter ficado surpreendido com dois factos: a) a rapidez com que os USA respondiam ao assunto, sem serem solicitados oficialmente para tal; b) o facto de estar a tomar conhecimento da ajuda norte-americana através do seu ministro da Defesa.

IV - Durante o ano de 2011, Gaza acreditou que o Egipto deixasse de cooperar com os serviços de inteligência ocidentais e abrisse a fronteira. Mas durante o ano seguinte ficou patente, para os palestinianos de Gaza, que isso não iria ser tão fácil. Nenhuma das forças que emergiram da Primavera egípcia eram suficientemente fortes – e para alguns sectores, nem esse era o objectivo, mas sim o oposto – para contrariar o bloqueio a Gaza.
          
Por sua vez a situação da Síria obrigou o Hamas a sair de Damasco. Este factor associado ao constante vacilar dos políticos das Primaveras egípcias e tunisinas, mais a invasão da Líbia, levaram a que o Hamas estabelecesse ligações com alguns serviços ocidentais e da região. É nesse sentido que deve ser vista a reposição de Jaled Meshaal como chefe político da organização. A sua reposição na liderança do Hamas – da qual fora afastado – foi uma imposição do chefe dos serviços de inteligência egípcios, general Raafat Shehata. Com Jaled Meshaal na liderança, o Hamas consegue a normalização de relações com a Jordânia e o Qatar (que em tempos foram as principais fontes de financiamento do Hamas) e busca a abertura ao Ocidente.

Enquanto aos líderes do Hamas em Gaza é negada qualquer resolução para a gravíssima situação humanitária em que o território está mergulhado, a alguns líderes da organização, no exterior – considerados “moderados” ­- é passada a mensagem de que serão os mais adequados para o processo de normalização de relações entre o Hamas e o Ocidente.

Este cerco desenha-se de forma lenta mas inteligente e coordenada. Para além do bloqueio de Israel e das pressões egípcias, a ONU, através da Agencia das Nações Unidas para o Auxilio aos Refugiados Palestinianos (UNRWA), anunciou um novo corte na distribuição de ajuda básica aos 25 mil refugiados de Gaza. Sem um cenário económico alternativo frente ao bloqueio terrestre e marítimo de Israel, com o Egipto vacilante e a arrasar os tuneis de Gaza e a UNRWA a cortar o seu orçamento, não restarão ao Hamas de Gaza grandes alternativas que não sejam a de obter ajuda financeira através de um preço politico.

A longo prazo o Hamas enfrentará opções difíceis, inclusive a divisão. O caminho que o Ocidente e as potências da região apontam ao Hamas é o de enveredar pelo trilho da OLP, que levou á política de Oslo, iniciada em 1993 e que transformou a Autoridade Palestiniana na Cisjordânia em representantes indígenas das autoridades coloniais sionistas, como acontecia nos bantustões da Africa do Sul do tempo do apartheid.

V - Atirar pedras, na Palestina, tornou-se uma “metáfora da resistência”, conforme escreve Amira Hass, uma jornalista israelita que viveu duas décadas em Gaza e na Cisjordânia, cujo trabalho foi premiado em 2009 pela International Women’s Media Foundation. As pedras levaram a que uma das tarefas do colonialismo sionista fosse perseguir crianças de 8 anos, que atiram pedras a soldados de 18 anos, comandados por homens de 45 anos (também esta uma das muitas descrições de Amira Hass) Para perseguir os que arremessam pedras, os sionistas institucionalizaram a violência. Mas a violência institucionalizada que predomina em Gaza e na Cisjordânia, já ultrapassou a fase burocrática da institucionalização e tornou-se numa necessidade, em algo de orgânico, gerador da violação constante aos mais básicos valores da condição humana.

A pedra, símbolo de resistência é em simultâneo um símbolo da autonomia da vontade, da soberania, do povo palestiniano. Autonomia não apenas em relação ao regime de ocupação, mas também em relação aqueles que os sionistas e os arranjos da História, nomearam seus representantes e que hoje arvoram-se como pavões, com o titulo de Autoridade Palestiniana, os combatentes corrompidos, corruptos e corruptores, que o dinheiro e o desejo de uma vida fácil transformaram em sipaios e funcionários de uma imensa farsa manipuladora de vontades.

As pedras são também a soberania real e manifesta de um povo que aprendeu a importância de uma metralhadora, de uma carga explosiva, de uma palavra, de uma camara fotográfica ou de filmar, de um discurso e de uma pedra. Um povo que conhece a importância de resistir, de uma resistência assumida como acto inerente á sua condição, assim como o acto de respirar e de comer.    
                 
VI - Os estados árabes vêm os palestinianos como carne para canhão, uma infantaria barata que nas últimas seis décadas estes Estados utilizaram nos seus jogos políticos e nos interesses das suas elites nacionais. As constantes divisões no seio da resistência palestiniana foram, em grande parte e para lá dos factores internos inerentes á dinâmica social palestiniana (factores que foram, também, habilmente aproveitados pelos serviços árabes de inteligência) criadas e geridas pelas elites árabes e sob o olhar atento e astuto dos sionistas. A Síria, o Iraque, o Egipto, a Jordânia, o Irão, a Arabia Saudita e restantes estados do golfo, têm as mãos manchadas de sangue palestiniano.

A atitude egípcia em relação a Gaza é mais um triste episódio deste drama complexo, composto por inúmeras tragédias. A Primavera egípcia, afinal, importa as flores do Ocidente e impede o desabrochar da sua flora, como acontece com todas as Primaveras árabes.

Talvez por isso a Palestina não se reveja na Primavera. Não porque rejeite o desabrochar das flores e a temperança da estação, mas porque as duras lições da vida ensinaram-lhe que são quatro as estações e que muitas vezes o frio e o calor surgem fora de época, assim como a chuva e a seca nem sempre são previsíveis. Mas há uma certeza: Quando a Palestina desabrochar não será apenas uma Primavera. Quando a Palestina desabrochar assistiremos á Sinfonia das Quatro Estações, recriando a partitura de Vivaldi (talvez que o andamento da Primavera seja interpretado por um naipe de pedras).

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