Rui Peralta, Luanda
I - Em Setembro do
ano passado, o primeiro-ministro do governo do Hamas, em Gaza, repetiu um
pedido, efectuado vezes sem conta, ao primeiro-ministro egípcio, para que o seu
governo considerasse a possibilidade de estabelecer uma zona de comércio livre
entre Gaza e o Egipto. Desta forma o Egipto poderia apoiar a destroçada
economia da Faixa de Gaza e acabar-se de vez com o contrabando efectuado
através das centenas de tuneis que atravessam o subsolo na zona fronteiriça
entre Gaza e o Egipto.
Os palestinianos de
Gaza estão completamente dependentes do contrabando efectuado através dos
tuneis para poderem sobreviver. Com esta proposta de criação de uma zona de
comércio livre, Gaza resolveria o seu problema fundamental – o abastecimento de
bens alimentares, remédios e outros produtos de consumo geral – deixando de
estar dependente das redes de contrabando e podendo normalizar dessa forma as
suas relações comerciais, para além de atenuar, parcialmente, os assoladores
números do desemprego, quase generalizado.
O governo egípcio
prometeu estudar o assunto, indicando que era demasiado cedo para dar uma
resposta. Mas esta é uma proposta repetida ao Egipto em diversas ocasiões e á
qual os egípcios nunca responderam, ou utilizaram para qualquer tipo de
plataforma de discussão sobre o relacionamento entre Gaza e o Egipto. Desde o
assassinato de 16 guardas fronteiriços egípcios, realizado por desconhecidos,
que o governo do Egipto mandou destruir os tuneis de Gaza.
Segundo o
economista palestiniano Maher al-Tabaa, residente em Gaza, cerca de 30% dos
produtos encontrados em Gaza chegam pelos tuneis, embora outras fontes refiram
que o contrabando abastece 80% dos produtos encontrados no mercado. Seja como
for, sem os tuneis ou uma alternativa a longo prazo, Gaza cairá numa crise sem
precedentes e os níveis de pobreza, da miséria e da fome, serão os únicos a
crescer.
II - O
posicionamento egípcio em relação a Gaza, contribuindo para o bloqueio da
faixa, foi adoptada por Hosni Mubarak. A Primavera egípcia e a ascensão ao
poder da Irmandade Muçulmana (IM), não alteraram esta posição do Egipto em
relação a Gaza.
No fundo da questão
está o tratado de Camp David, assinado entre o Egipto e Israel em 1978 / 1979, que
implica que o Egipto seja um activo político permanente para os USA e Israel, a
troco de uma quantia acordada entre as partes e paga ao Egipto na forma de
ajuda militar. Ao manter os acordos de Camp David – ou ao não revê-los - a IM,
mantem a posição subalterna do Cairo em relação a Washington e Telavive.
Quando em 2006,
devido á vitória eleitoral do Hamas, Israel impôs o bloqueio a Gaza, pouco
importava para os sionistas que o Egipto e Gaza fossem fronteiriços. Israel
estava perfeitamente seguro da posição egípcia e o bloqueio foi assumido por
Mubarak e executado por Omar Suleiman, o falecido chefe dos serviços de
inteligência do Egipto.
Os ventos
primaveris, que de início transportaram algumas ilusões sobre uma eventual
revisão dos acordos de Camp David, rapidamente se dissiparam e quando ocorreram
os assassinatos dos soldados egípcios no Sinai, foram de imediato usados como
pretexto para aumentar ainda mais as medidas de bloqueio por parte das
autoridades egípcias. Aliás a forma como os militares e os serviços de
inteligência egípcios, acusaram de imediato o Hamas, em perfeita consonância
cronológica e semântica com Telavive e com eco nas paredes da Casa Branca, em
Washington, apenas revela que neste ponto o actual governo egípcio terá uma
maior participação nos objectivos do bloqueio.
III - O Egipto
administrou a faixa de Gaza entre 1948 e 1967. Esse período de administração
coloca-o em vantagem na resolução do problema de Gaza, até porque os egípcios são
vistos pelos palestinianos de Gaza como a única esperança politica e a única
solução que os livrará da catastrófica situação económica em que o bloqueio
mergulhou a faixa de Gaza.
Sugerir que o Hamas
orquestrou o assassinato dos soldados egípcios, é um absurdo, a não ser que
obedeça a uma acção concertada entre Telavive, Washington e alguns meios dos
serviços de inteligência egípcios e dos militares (a começar pelo actual
ministro da Defesa, o general Abdel Fattah al-Sissi), para pressionarem o
presidente Mursi e envolverem de forma directa a IM na resolução política do
problema de Gaza.
O presidente Mursi
e a IM abordam todas as questões relativas á Palestina com muito cuidado . Os proprietários da indústria mediática
egípcia efectuam fortes campanhas contra os palestinianos de Gaza e o Hamas,
acusando-os do tráfico de armas e drogas no Sinai para alem de controlarem o negócio
das viaturas roubadas. Cada vez que a IM e o presidente Mursi tentam dar algum
passo no sentido de uma eventual menorização do bloqueio, as campanhas surgem
com mais impacto e vão ao ponto de associar a IM a estas actividades ilícitas,
numa eventual parceria com o Hamas.
Desta forma a
direcção e o sentido são apontados a Mursi e ao IM, estabelecendo uma linha de
actuação, que demarca o que Washington e Telavive pretendem. A opinião pública egípcia
é bombardeada com notícias assustadoras sobre Gaza e os palestinianos de Gaza
são apresentados á opinião pública egípcia como perigosos traficantes de drogas
e contrabandistas de armas e carros roubados. Sobre a fome e a miséria em Gaza
nem uma palavra, ou pelo menos sobre o bloqueio.
Demasiado tímido e
enfraquecido para desafiar as forças em jogo no Egipto, Mursi e a IM seguem uma
política de vacilação em relação a Gaza. Quando os soldados egípcios foram
assassinados, o Ministro da Defesa informou o presidente que os USA estavam
dispostos a facilitar um satélite para localizar os tuneis de Gaza. Mursi deve
ter ficado surpreendido com dois factos: a) a rapidez com que os USA respondiam
ao assunto, sem serem solicitados oficialmente para tal; b) o facto de estar a
tomar conhecimento da ajuda norte-americana através do seu ministro da Defesa.
IV - Durante o ano
de 2011, Gaza acreditou que o Egipto deixasse de cooperar com os serviços de
inteligência ocidentais e abrisse a fronteira. Mas durante o ano seguinte ficou
patente, para os palestinianos de Gaza, que isso não iria ser tão fácil.
Nenhuma das forças que emergiram da Primavera egípcia eram suficientemente
fortes – e para alguns sectores, nem esse era o objectivo, mas sim o oposto –
para contrariar o bloqueio a Gaza.
Por sua vez a
situação da Síria obrigou o Hamas a sair de Damasco. Este factor associado ao
constante vacilar dos políticos das Primaveras egípcias e tunisinas, mais a
invasão da Líbia, levaram a que o Hamas estabelecesse ligações com alguns
serviços ocidentais e da região. É nesse sentido que deve ser vista a reposição
de Jaled Meshaal como chefe político da organização. A sua reposição na
liderança do Hamas – da qual fora afastado – foi uma imposição do chefe dos
serviços de inteligência egípcios, general Raafat Shehata. Com Jaled Meshaal na
liderança, o Hamas consegue a normalização de relações com a Jordânia e o Qatar
(que em tempos foram as principais fontes de financiamento do Hamas) e busca a
abertura ao Ocidente.
Enquanto aos líderes
do Hamas em Gaza é negada qualquer resolução para a gravíssima situação
humanitária em que o território está mergulhado, a alguns líderes da
organização, no exterior – considerados “moderados” - é passada a mensagem de
que serão os mais adequados para o processo de normalização de relações entre o
Hamas e o Ocidente.
Este cerco
desenha-se de forma lenta mas inteligente e coordenada. Para além do bloqueio
de Israel e das pressões egípcias, a ONU, através da Agencia das Nações Unidas
para o Auxilio aos Refugiados Palestinianos (UNRWA), anunciou um novo corte na
distribuição de ajuda básica aos 25 mil refugiados de Gaza. Sem um cenário
económico alternativo frente ao bloqueio terrestre e marítimo de Israel, com o
Egipto vacilante e a arrasar os tuneis de Gaza e a UNRWA a cortar o seu
orçamento, não restarão ao Hamas de Gaza grandes alternativas que não sejam a
de obter ajuda financeira através de um preço politico.
A longo prazo o
Hamas enfrentará opções difíceis, inclusive a divisão. O caminho que o Ocidente
e as potências da região apontam ao Hamas é o de enveredar pelo trilho da OLP,
que levou á política de Oslo, iniciada em 1993 e que transformou a Autoridade
Palestiniana na Cisjordânia em representantes indígenas das autoridades
coloniais sionistas, como acontecia nos bantustões da Africa do Sul do tempo do
apartheid.
V - Atirar pedras,
na Palestina, tornou-se uma “metáfora da resistência”, conforme escreve Amira
Hass, uma jornalista israelita que viveu duas décadas em Gaza e na Cisjordânia,
cujo trabalho foi premiado em 2009 pela International Women’s Media Foundation.
As pedras levaram a que uma das tarefas do colonialismo sionista fosse perseguir
crianças de 8 anos, que atiram pedras a soldados de 18 anos, comandados por
homens de 45 anos (também esta uma das muitas descrições de Amira Hass) Para
perseguir os que arremessam pedras, os sionistas institucionalizaram a
violência. Mas a violência institucionalizada que predomina em Gaza e na Cisjordânia,
já ultrapassou a fase burocrática da institucionalização e tornou-se numa
necessidade, em algo de orgânico, gerador da violação constante aos mais
básicos valores da condição humana.
A pedra, símbolo de
resistência é em simultâneo um símbolo da autonomia da vontade, da soberania,
do povo palestiniano. Autonomia não apenas em relação ao regime de ocupação,
mas também em relação aqueles que os sionistas e os arranjos da História,
nomearam seus representantes e que hoje arvoram-se como pavões, com o titulo de
Autoridade Palestiniana, os combatentes corrompidos, corruptos e corruptores,
que o dinheiro e o desejo de uma vida fácil transformaram em sipaios e
funcionários de uma imensa farsa manipuladora de vontades.
As pedras são
também a soberania real e manifesta de um povo que aprendeu a importância de
uma metralhadora, de uma carga explosiva, de uma palavra, de uma camara
fotográfica ou de filmar, de um discurso e de uma pedra. Um povo que conhece a
importância de resistir, de uma resistência assumida como acto inerente á sua
condição, assim como o acto de respirar e de comer.
VI - Os estados
árabes vêm os palestinianos como carne para canhão, uma infantaria barata que
nas últimas seis décadas estes Estados utilizaram nos seus jogos políticos e
nos interesses das suas elites nacionais. As constantes divisões no seio da
resistência palestiniana foram, em grande parte e para lá dos factores internos
inerentes á dinâmica social palestiniana (factores que foram, também, habilmente
aproveitados pelos serviços árabes de inteligência) criadas e geridas pelas
elites árabes e sob o olhar atento e astuto dos sionistas. A Síria, o Iraque, o Egipto, a Jordânia,
o Irão, a Arabia Saudita e restantes estados do golfo, têm as mãos manchadas de
sangue palestiniano.
A atitude egípcia
em relação a Gaza é mais um triste episódio deste drama complexo, composto por
inúmeras tragédias. A Primavera egípcia, afinal, importa as flores do Ocidente
e impede o desabrochar da sua flora, como acontece com todas as Primaveras
árabes.
Talvez por isso a
Palestina não se reveja na Primavera. Não porque rejeite o desabrochar das
flores e a temperança da estação, mas porque as duras lições da vida ensinaram-lhe
que são quatro as estações e que muitas vezes o frio e o calor surgem fora de
época, assim como a chuva e a seca nem sempre são previsíveis. Mas há uma
certeza: Quando a Palestina desabrochar não será apenas uma Primavera. Quando a
Palestina desabrochar assistiremos á Sinfonia das Quatro Estações, recriando a
partitura de Vivaldi (talvez que o andamento da Primavera seja interpretado por
um naipe de pedras).
Fontes
Hass, Amira http://www.haaretz.com/opinion/the-inner-syntax-of-palestinian-stone-throwing.premium-1.513131
http://www.ramzybaroud.net
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